versiones, versiones y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector, editor y operador: Diego Martínez Lora    Número 53 - diciembre 2003 - enero 2004


Isabel Galhano(*)

Canto de Malavita


 

Um dia a Margarida telefonou-me para me pedir um favor. Havia uma pessoa de quem ela gostava muito, um professor de Filosofia, marido de uma grande amiga, que tinha editado um livro de desenhos. Esse livro ia ser apresentado, e o autor tinha-lhe pedido que fosse ela a fazê-lo…  Vinha-me pedir que colaborasse. Eu primeiro não queria, porque era uma estranha, mas ela tanto pediu, que acabei por aceder.

 

Lá veio, com um envelope branco na mão, de onde tirou  um livro, que começou a folhear à minha frente… vi o primeiro desenho, o segundo … e disse “Mas isto tem que ser alguém da área do desenho humorístico! Olha este traço… Isto bate! Isto merece ser apresentado por alguém mais ligado à área… eu não sei o que hei-de dizer sobre isto… Vou ver se conheço alguém e depois falamos. Dormi a pensar ou pensei a dormir… e achei que devia ser ela. E ela, que devia ser eu, e, por fim, empatámos – ficámos as duas.

 

Vou então falar do que BATEU.

 

São imagens que geram sentimentos mistos. Imagens, por um lado, secas, duras, quase cruéis; por outro lado, de uma sensibilidade e delicadeza extremas. Imagens de desarrumações subtis do tempo e do espaço; de desarranjos da ordem das coisas do mundo – de um mundo que pensamos conhecer tão bem. São representações de objectos e de seres humanos que pertencem ao nosso mundo real. Com base no conhecimento compartilhado sobre o mundo em que vivemos, sabemos quais são os contextos temporais e espaciais a que esses elementos costumam pertencer e os valores que lhes costumam ser atribuídos.

 

Nos desenhos de Rogério, esses elementos encontram-se dispostos e combinados de acordo com novas ordens temporais e espaciais que nos proporcionam outras visões das coisas, fazendo-nos reflectir sobre a vida e os seus lados de sombra e de luz. Por outras palavras – os desenhos batem.

 

E como é que esse bater é conseguido?

 

Comecemos pelo próprio traço: logo no primeiro desenho, chamou-me a atenção a linha que contorna as formas reproduzidas. Não é uma linha suave, mole e fluida. É um traço que grita e que condiz com o sentido da epígrafe – des cris dant tout ce que j’écris. Um traço que muda aqui e ali de direcção, formando pequenos bicos e ângulos. Um traço sofrido que não se desenvolve livremente, porque, na sua viagem sobre o papel, os sobressaltos da vida e os momentos efémeros de maior beleza o fazem tremer. Não seria quase preciso mais texto (imagístico) para expressar esse grito… Ele não sai da voz do artista, sai-lhe do bater do coração no gesto de desenhar.

 

É esse traço que risca o papel criando bonecos. Estes bonecos não são uns bonecos quaisquer. São figuras muito expressivas, carregadas de humanidade. A sua expressão dos bonecos não é conseguida pelo desenho minucioso da mímica. É a forma da linha de contorno que, captando a postura de um indivíduo, transmite as informações mais importantes sobre os seus estados de espírito (emoções, atitudes e intenções).

Note-se que raros são os bonecos voltados de frente para o leitor. Geralmente estão de costas para o mundo exterior, concentrados no que se passa na cena de que fazem parte. Quando o autor dá importância à face, também é a posição da cabeça que revela as emoções ou intenções do boneco: um nariz para cima, com ou sem orientação do olhar, mostra o seu foco de interesse.

 

Convém aqui fazer um aparte e referir vários tipos de emoções. Damásio considera as

 

·        as emoções de fundo (um bem estar ou mal estar resultante de processos regulatórios do organismo a estímulos exteriores),

·        as emoções primárias (como o medo, a fúria, a felicidade, a tristeza e o nojo), e

·        as emoções sociais (como a simpatia, compaixão, vergonha, indignação, orgulho, ciúme, espanto, desprezo) de que fazem também parte as emoções primárias (ao desprezo está ligado o nojo).

 

Segundo Damásio, "o diagnóstico das emoções de fundo depende de manifestações subtis tais como o perfil dos movimentos dos membros ou do corpo inteiro - a força desses movimentos, a sua precisão, a sua frequência e amplitude - bem como de expressões faciais. No que respeita à linguagem, aquilo que mais conta para as emoções de fundo não são as palavras propriamente ditas nem o seu significado, mas sim a musica da voz, as cadências do discurso, a prosódia" (Damásio, Ao encontro de Espinosa, 2003, página 61).

 

As posturas dos bonecos revelam a capacidade de Rogério de ler as emoções de fundo e de as passar para o papel. E assim, por meio de pequenos pormenores, sinais muito subtis, o autor consegue realçar certos aspectos da natureza humana.

 

Ainda respeito da mímica, pense-se no primeiro desenho, que representa um pintor, sem cara nem roupa, que pinta um retrato (o seu auto-retrato) – aí sim, existem olhos, nariz e boca, cabelo e também peças de vestuário. Qual será a mensagem deste desenho? Que a verdadeira indentidade de um homem se revela naquilo que ele faz? Quantas mais metáforas se encontram por trás desta imagem? E como são simples os meios que nos fazem entrar nas dimensões da metafísica (a nós leigos da filosofia), que nos levam a olhar para o espelho e questionar-nos sobre a nossa essência e a nossa existência. Cabe aos leitores interpretar cada mensagem à sua maneira… É aí que está a beleza e a grandiosidade dos desenhos do Rogério.

 

Dispostos no papel, os bonecos e outros elementos do mundo real constituem uma unidade – criam a imagem de uma cena – que pode, ou não, fazer parte de um quadro. Essas cenas são surrealistas – pois contêm elementos do mundo real dispostos e combinados de modos absurdos e impossíveis, ou seja, como já referi atrás, segundo novas ordens de tempo e de espaço.

 

Não quero interpretar as imagens, pois isso seria destruí-las. Vou apenas descrever os meios de que o autor se serviu para nos bater, ou seja, para nos emocionar, activando em nós vários sentimentos.

 

Note-se que é possível que os sentimentos evocados difiram de leitor para leitor. Isso deve-se ao facto de a associação do sentimento a um estímulo ser um fenómeno muito individual. Damásio define sentimento como " uma percepção de um certo estado do corpo, acompanhado pela percepção de pensamentos com certos temas e pela percepção de um certo modo de pensar. Todo esse conjunto perceptivo se refere à causa que lhe deu origem" (ibid., pág. 104). Essa causa - o estímulo emocionalmente competente que desencadeia uma emoção - provoca uma reacção no nosso organismo (processos regulatórios). Por isso, pode ser que, em indivíduos diferentes, um mesmo estímulo seja associado a diferentes temas e provoque diferentes sentimentos. Sendo assim, as emoções causadas pela leitura dos desenhos também podem dar origem a diferentes associações de ideias e interpretações.

 

A descrição dos meios usados por Rogério para nos emocionar obriga a decompor alguns destes desenhos nos elementos que os constituem. Não se pode, porém, esquecer que cada desenho é uma unidade (um todo) e que a verdadeira interpretação das suas partes só é possível dentro do contexto em que se encontram inseridas. No entanto, pelo seu significado sócio-cultural generalizado, alguns destes elementos têm conotações mais convencionalizadas e podem, por isso, ser analisados em separado.

 

Os elementos representados não parecem ser escolhidos ao acaso. São objectos e pessoas do mundo real, carregados de conotações negativas e positivas, são metáforas de qualidades, estados e valores sociais, que evocam sentimentos de carácter mais universal.

 

Um dos objectos preferidos pelo autor é o quadro; ligados a este, estão o museu, a janela e o palco. Muitos desenhos constituem, por si só, um cenário, pois estão emoldurados por uma cortina (pano do teatro); outros desenhos são delimitados por uma moldura. Por vezes a moldura confunde-se com o segundo plano do desenho (uns montes ao fundo). Por vezes o palco confunde-se com um quadro.

 

Qual é a função, ou os diferentes significados, desta emolduragem?

 

É sabido que o ser humano tem a tendência para estruturar o mundo em que vive em macro e micro-estruturas, estabelecendo divisões entre domínios diferentes. O termo moldura (frame) foi usado na área da Antropologia Social para designar diferentes estruturas de actividades sociais de uma comunidade. A noção de “frame” provém de Bateson, um antropólogo dos anos 50, que usa este termo para explicar como os indivíduos trocam sinais que dão indicações metacomunicativas – que comunicam sobre a comunicação – informando sobre o modo como a mensagem deve ser descodificada.

 

Também no seu discurso, o ser humano emoldura grande parte daquilo que transmite, dando indicações constantes sobre o que vai dizer ou sobre o modo como o que vai ser dito/ou o que acabou de ser dito deve ser entendido pelos que o ouvem. Há pedaços de enunciado que são delimitados por dispositivos linguísticos, como anúncios do tipo – “ora bem”, ou “pronto”, ou mais explícitos como “é assim”. A moldura funciona, assim, como uma caneta fluorescente, que sublinha o que é essencial para o falante e que ele quer que seja compreendido pelo ouvinte.

 

As molduras dos desenhos de Rogério parecem ter essa mesma função (de um modo mais ou menos consciente). Talvez a disparidade e o absurdo, que estão por trás da combinação dos elementos escolhidos, obrigue a uma delimitação do desenho, transformando-o numa mensagem de extrema importância.

 

Além disso, ao delimitar toda a informação contida no desenho, a moldura também parece servir de membrana de protecção para os sentimentos ambíguos evocados, envolvendo também o grito e evitando que ele caia.

 

Por outro lado, a emolduragem provoca a interpenetração de dois planos diferentes: do real e do virtual. Na verdade, a representação fictícia do real – como no teatro, num museu, num quadro ou na televisão … - está sempre presente

 

Sendo assim, a moldura (quadro, museu, teatro) funciona como um símbolo do irreal, do fictício - um palco onde se desenrola a vida (como se pode ver, o pensamento filosófico é uma constante em Rogério).

 

Mas, o que me pareceu mais importante nos elementos quadro, museu e palco foi um outro aspecto. Todos eles implicam a existência de um observador: um indivíduo isolado, ou um conjunto de indivíduos.

 

Com efeito, o sentir-se observado foi um sentimento que me acompanhou durante a leitura do livro, como se a sombra de um Big Brother emanasse de todo o lado. Isso já parece ser anunciado pela figura a espreitar por cima do prefácio - que funciona como uma moldura, indicando o modo como o que vai ser apresentado deve ser entendido.

 

Esta presença obsessiva do olhar detecta-se a diferentes planos:

 

 

- em que é o próprio leitor que observa o que se passa no desenho-quadro/desenho-teatro

(Exemplos: páginas 21, 25,29, 39, 43, 45, 51, 53, 55, 57),

- ou em que são as personagens do desenho que olham para o leitor (Exemplos: páginas 57,  55, 53,35 59).

 

 

Aqui podem-se considerar várias situações distintas, de acordo com os papéis das personagens e dos objectos, no que diz respeito à sua qualidade de observador:   

 

- ou são as personagens (ou parte delas), que, dentro do desenho, olham para um quadro - Exemplos: págins 17 (homens das cavernas), 19 (cruxifixo), 23 (carrasco), 25, 33 (sofá), 41 (televisão) e 43 (voyeurismo colectivo;

 

- ou são as personagens que olham para alguma coisa que não se encontra emoldurada (págnias 21, 27, 29, 45, 49);

 

- ou são os objectos do desenho que observam: objectos observadores (não-humanos mas animados) como o sol - que parece assumir diferentes estados de espírito (páginas 41 e 61) - e as caras (sisuda e risonha) ladeando o palco  (páginas 5 e 57).

 

 

Os outros elementos mais frequentes são símbolos do poder e de submissão, de prisão e de liberdade, de morte e de esperança de vida, da relação entre ricos e pobres (página 47).

 

Rogério recorre a esses elementos para criticar, de um modo incisivo, certos aspectos "mais difíceis", injustos e cruéis da nossa sociedade. Retrata frequentemente a figura de personagens poderosas – o professor, o júri, o omnipotente (o controle social omnipotente?)– que observam de cima - os que deles dependem - os alunos (página 29), o réu - o leitor?- (página 53), a mulher nua (página 15).

 

Assim são representadas relações de poder e de controle angustiantes e sufocantes. E, mais uma vez, é a disposição dos elementos no espaço do papel - nas coordenadas abaixo-acima que, metaforicamente evoca essa relação de poder - o mais poderoso está em cima; o mais fraco em baixo; o mais poderoso é grande, o menos poderoso é pequeno (desenhos das páginas 29, .

 

A respeito de grandeza/pequenez convém lembrar o desenho da página 33, em que um casal, sentado num sofá, de costas para o leitor, observa o seu retrato, de corpo inteiro, da perspectiva de uma criança. Rogério falou-me de uma música dos Bee Gees que começava pelas palavras "Quando somos pequenos e as árvores de Natal são grandes…" (When we are small, and Christmas Trees are tall…).

 

A que se refere esta pequenez? Quantas são as possíveis leituras deste conjunto de elementos? As respostas ficam ao critério de cada um. Como já disse, não quero interpretar os desenhos. Isso seria como explicar uma anedota a alguém desprovido da capacidade de entender humor.

 

Através de todos estes elementos simbólicos e transpondo o mundo real para a dimensão do irreal, por vezes duplamente irreal, quando cria o palco no palco, o artista elabora uma crítica social do mundo em que vive.

 

Há ainda um desenho que me toca pela extrema solidão que conota - sem cor, sem moldura, sem observador - com uma personagem apenas, curva, de costas voltadas para o leitor. Parece que alguém desistiu de viver… e parte.

 

Mas logo o desenho seguinte - o último - vem mostrar que há uma solução, uma esperança: um grupo de pessoas caminha na mesma direcção, atrás da flor azul … e até o sol se espanta.

 

São todos estas situações representadas no tempo e no espaço – na maioria dos casos, com personagens que não pertencem a esse tempo e a esse espaço, mas que têm um significado simbólico importante - que nos conduzem aos recantos da vida, ou ao canto de malavita, e nos deixam reconciliar com as nossas angústias e encontrar conforto nas pequenas grandes coisas.

Isabel Galhano Rodrigues

Diana Bar

Póvoa de Varzim, 31 de Janeiro de 2004


(*)Isabel Galhano, crítica e professora portuguesa.


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