versiones, versiones y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector, editor y operador: Diego Martínez Lora    Número 55 - Abril - Mayo 2004


Nuno Figueiredo(*)

Apresentação de Precário Registo de Maria Virgínia Monteiro


                                        

ESCOLA SILVA GAIO – COIMBRA

MANHÃ DE 23 DE JUNHO DE 2004

 

Tempos houve em que cegamente acreditei, com Miguel Torga e Manuel Alegre, que uma palavra podia fazer explodir o mundo ou que um verso o podia salvar; tempos houve em que não duvidava, escutando Herberto Helder, que a poesia é uma clandestinidade / na ditadura do mundo; tempos houve em que, no rasto luminoso de Sophia de Mello Breyner, juraria que o poema é / a liberdade.

Hoje afirmo apenas, pela voz de Paulo Teixeira, que com palavras se escreve o mundo; e conforta-me ouvir Luiza Neto Jorge esclarecer que o poema ensina a cair / sobre os vários solos. De Egito Gonçalves sigo o exemplo e com palavras me ergo em cada dia, e concordo com Saramago quando diz que há razões para pensar que a língua é, toda ela, obra da poesia.

Hoje sei, com Yvette Centeno, que há uma vida que é dada outra vida que é perdida e entre uma e outra a vivida. E tenho muito medo, como Antígona de Sófocles, de que não haja nada de melhor para o homem que cumprir, até ao último dia da sua vida, as leis que estão estabelecidas

Servem todas estas citações para situar Maria Virgínia Monteiro, e só por comodidade as transcrevi na primeira pessoa. Julgo não me enganar se disser que elas podem compor, a traços largos, o retrato da poetisa: do passado, das inevitáveis frustrações que sempre se carregam, do sofrimento e da desilusão; mas também de uma certa serenidade, resultante da assunção plena da precariedade da vida e da obra humanas, tanto como do seu registo, de um declinar da vontade a favor das leis incontornáveis da existência.

Basta ler atentamente a produção de Maria Virgínia Monteiro, percorrê-la desde “Mulher de Loth”, de 1992, até aos inéditos mais recentes de “As palavras, este canto, este rio”, para nos apercebermos de um percurso doloroso e cheio de atribulações, consciente que está a autora, como Herberto Helder, de que é amargo o coração do poema.   

Posto isto, há que dizer desassombradamente: estamos perante uma criação ímpar e de uma criadora fora do comum, e eu gostaria, no pouco tempo que me é concedido, de saber prová-lo.

Em primeiro lugar, diga-se que MVM começou tarde a publicar – ela mesma, em desabafo epistolar recente, chega a admitir um atraso de quatro décadas –, e que os seus primeiros textos reflectem, de facto, algum desfasamento entre a expressão (de ontem) e o conteúdo (de amanhã e sempre). Mas veja-se a espantosa velocidade com que recuperou, ao ponto de a sua escrita adquirir, nos últimos trabalhos, uma plasticidade verdadeiramente notável, não só do ponto de vista formal e conceptual mas também literário. Para trás ficou uma pontuação um tanto sobrecarregada e fértil em estremecimentos e hesitações – que reflectia o temor da poetisa diante do poema acabado – e passou a imperar o verso solto, ágil, independente.  

MVM recorre com insistência a poetas e escritores de sua predilecção para deles extrair citações e epígrafes que ilustram livros, e até poemas, como se umas e outras fossem necessárias à sua significação, ou servissem para justificá-los; e pede com frequência o apoio da gravura e do desenho, apagando-se um pouco numa atitude de modéstia que não valoriza convenientemente a sua arte. Esconde-se, por assim dizer, num excesso de pudor; e eu penso que a poesia de MVM vale por si, fala por si, e merecia o isolamento das palavras profundas e o silêncio todo que a poetisa tanto ama e me parece, assim, de alguma forma perturbado.

Em “Precário Registo” nota-se ainda algum desse suporte, traduzido, também, nas críticas diversas (e muito justamente favoráveis), inseridas no final do volume. A verdade é que MVM não precisa de muletas, nem de disfarces, ou de enfeites, nem sequer do aval de ninguém: ela está, por direito próprio, entre as vozes mais límpidas e sentidas da nossa poesia contemporânea

Não tem a autora de temer a modernidade, de alimentar o conflito entre a modernidade e a sua ausência. Um bom poeta de qualquer época, lembra Fernando Pinto do Amaral, é sempre nosso contemporâneo. A sua permanente e delatada obsessão pela modernidade, o receio constantemente aceso sobre o teor das críticas, sugerem a fragilidade comovedora de alguém que nos fala d’ “O silêncio todo” com uma sensibilidade e um encantamento que mergulham, directamente, na dor das palavras jamais ditas – leia-se o poema “Instante” do livro “As palavras, este canto, este rio”: e esse cântico antigo, amordaçado / distante música de um outrora / não morreu / escuta então este planger, este recado / este cantar sem espera nem demora / esta flauta de Pan que assim perdura / no silêncio das palavras que em mim mora.   

A obra de MVM é una e indivisível. Pessoal, inconfundível, com o selo de qualidade que garantem a cor e o paladar dos vinhos antigos e sem preço. A poetisa de que falamos é de uma cultura laboriosa e vasta, sem que tal facto se revele em ostentação ou exibicionismo: antes pelo contrário, MVM quase parece envergonhar-se do seu profundo saber da literatura, e às vezes pouco falta para pedir desculpa por privar, no seu dia a dia de uma vida apaixonada, com tantos e tão grandes obras e autores.

Os débeis conhecimentos que muitos dos escritores de hoje exibem, mergulhados em real ignorância, contrastam com a imensidão de referências e memórias que – subliminares, intertextuais, metalinguísticas – naturalmente fluem e enobrecem a palavra da nossa autora. Adivinha-se toda uma existência de reflexão e de leitura, escolhida e atenta, cobrindo amplas áreas e muitos géneros. Esse facto, que é evidente em cada texto de MVM, não pode deixar de emergir na poesia que labora, e de a enriquecer. De muitos dos novos que nos chegam às mãos se pode dizer, em resumo, que lhes falta leitura, cultura poética, conhecimento do passado. O que origina, quase sempre, a frouxidão e a vulgaridade, a cedência ao assédio das modas da linguagem: poesia emanente, a brotar das pedras da calçada; ou panfleto estrepitoso e risível, ou pântano de palavras ocas. Ou, pura e simplesmente, o vazio disfarçado em tiques e estertores pseudo-intelectuais. 

Já foram detectadas em MVM as raízes maiores e mais fecundas: Antonio Machado, Octávio Paz, Pessoa, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Pessanha, Florbela Espanca, Mallarmé. E já se disse das correntes onde bebeu esta poesia: modernismo, simbolismo, saudosismo, romantismo. Estarão provavelmente certos os críticos, tão lestos em buscar influências e paternidades como em mostrar toda a panóplia dos seus conhecimentos na matéria. Acaba o pobre do poeta, muitas vezes, por ficar soterrado sob esses vultos enormes, de um peso descomunal, pouco mais dele restando que destroços plagiados: aquilo que é intrínseco, medular, visceral e genuíno no poeta torna-se mais difícil de decifrar, e a tendência é para o não comprometimento: escorados nos consagrados, todos se sentem mais seguros, e pouquíssimos são os que arriscam no pavor de se enganarem na praça pública. 

Eu prefiro falar de MVM naquilo que nela é único e superior: a música dos seus versos, por exemplo, esse outro lado do ar, como lhe chamou Rilke. Uma música onde as notas são de uma tristeza cheia de lirismo, de uma nostalgia omnipresente, de um clamor intimista e confessional que uma elegância extrema resguarda e contém. Com alicerces na verdade e na autenticidade, leva a autora este intimismo para o universal, escapando com clarividência ao conceito curto do “eu”, sempre redutor. 

Digamos que, de uma forma incubada ou manifesta, a poesia de MVM é composta por mil versos de amor: um amor dorido onde a lágrima assoma entre fonias e jogos de som inquietantes, e o silêncio se assume como depositário de uma esperança esvanecida. Esta música reflecte a intemporalidade, mais do que a modernidade, e, juntamente com o ritmo seguro, a cadência e a contenção do verso, transmite de facto à poesia de MVM a enorme probabilidade de permanecer – apesar do precário registo que é. 

Deixo de lado propositadamente a análise pormenorizada dos poemas deste livro. Mais importante me parece falar do assombro desamparado de MVM perante o efémero e a vacuidade: Nada é sempre. / O tudo passa / e o nada segue a vida, como escreve no poema “Sombra”; ou Nada assim, nada mais triste / que, triste, / a palavra nada. / Nada de nada existe / além do nada, no início do poema da página 47. E mesmo no poema “os pássaros” se pode escutar o murmúrio lancinante da poetisa que se conhece condenada às cinzas do anonimato, como todos nós, mas também injustiçada, ferida por não atentarem no seu verso, desprezada na sua arte: eu, nada que permaneça / para além do nada.

Maldades há, neste mundo, que se deviam pagar com privações e castigos. Maldades do coração e da memória cujo perdão é longínquo e requer a santidade. Por exemplo: ignorar esta poesia de MVM, tocar-lhe uma vez e deixá-la inviolada; abrir “Precário registo” e não se dar conta de que a tarde, hora dorida, / já desceu, ou fechá-lo e continuar ignorando A dor / a que gela, a que arde / na tarde, na noite.  

O maior prejuízo será do não-leitor ou do leitor desatento. Quanto à poetisa, por favor, não se atormente, escreva, escreva sempre, e diga com António Ramos Rosa: Escrevo para não viver sem espaço, / para que o corpo não morra na sombra fria. Quanto à poetisa, por favor, erga-se sempre à criança que foi, obedeça-lhe, continue a dar-lhe voz da forma genuína com que o tem feito. Lembra-se, tenho a certeza, da pergunta de Al Berto: em que idade do coração se apaga o riso dos homens? E, contudo, é tão belamente triste o seu poema “as rosas bravas, minha Mãe”! da pág. 43: aonde está, agora, o pátio de brincar / aonde eram as rodinhas, as mãos dadas? / aonde estão as outras mãos, de aconchegar? / aonde, aonde, as rosas brancas, que eram bravas?  

“Precário registo”, pois. Precário e, talvez por isso mesmo, de uma beleza comovente: …ó, não! / não me deixem só / a chorar o inimigo morto, pede-nos a poetisa na pág. 32. E mais adiante insiste: lembrem-me sim, que não chore / que o inimigo é morto. Haveríamos nós de ficar indiferentes a tão lancinante apelo? Acudimos todos à poetisa de poema entre os dedos, delicadamente suspenso do quotidiano obscuro. O que podemos fazer é estar unidos sob a palavra tutelar de Sophia de Mello Breyner: Não há nada que possa separar aqueles que estão unidos por uma fé e por uma esperança. Contamos com a poetisa, ela mesma o promete no poema “quando”: se me deixarem ficar / eu ficarei / silenciosa ao vosso lado

“Precário registo” é a história de um passado sofrido e consentido, uma conta-corrente, um ajuste com a história individual da autora. Uma catarse elegíaca, uma confissão que nada redime, na verdade, antes abre com volúpia as feridas de um vestígio pungente (pág. 38): o silêncio o som aflito / quer ser voz / como um eco de lembranças / voz inteira / dos espaços da portagem / na fronteira / dos caminhos de mim / de ti / de nós.

E para terminar direi: não se fica impassível diante destes versos. Não se fica igual depois de ler este livro. E não conheço maior elogio para um autor do que estas palavras. Justas palavras, que de elogios frustes e balofos está o inferno das letras cheio.

E um voto final, que bebo em MVM e com o qual começa o poema “Canto in/acabado” do seu próximo livro “As palavras, este canto, este rio”: que nunca o tudo acabe / onde o nada principia.

É pedir muito? Creio que não: um poeta nunca pede de mais.


(*)Nuno Figueiredo,   Escritor portugués.


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