Augusto e Maria Santos
 
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ÁLBUM DE RECORDAÇÕES

- 13 -

AUGUSTO LUIS DOS SANTOS

(Caçador Guia)

MARIA ISABEL SANTOS

(Caçadora Desportiva)

O casal Santos, em 1968, junto de um búfalo abatido pela Maria Isabel na região do Guro

 

1 – UMA ACTIVIDADE ALICIANTE

O continente africano - o berço da humanidade - sempre foi a região do globo mais fértil em animais selvagens, muitos deles cobiçados pelo valor dos seus troféus, das suas peles e da sua carne.

Com a colonização dos territórios de África por parte dos europeus, sobretudo a partir do século dezanove quando surgiram as primeiras armas adequadas ao abate dos grandes animais, apareceram os chamados aventureiros que se dedicaram exclusivamente à caça, atraídos nomeadamente pelo valor do marfim de elefante, na época uma espécie muito abundante praticamente em todo o continente.

Ficaram na história nomes de caçadores famosos  que foram motivo de inspiração de sucessivas gerações de praticantes desta arrojada e apaixonante profissão. Eles eram conhecidos por “White Hunters” (caçadores brancos), designação que chegou aos nossos dias mas que acabaria por cair em desuso devido às mudanças políticas entretanto surgidas com a independência dos países africanos. A palavra “White” foi abolida passando os caçadores a ser genericamente designados por “Professional Hunters”, não obstante serem ainda, na actualidade, de raça branca a esmagadora maioria dos caçadores guias que conduzem os safaris de caça em África. Uma situação bem enganadora da real capacidade dos negros como caçadores, mas justificada pelo facto de se tratar de uma profissão tradicionalmente exercida por brancos e que ainda hoje conserva o mito deixado pelos tais famosos “White Hunters”, à volta do qual os clientes se inspiram e encontram a confiança para enfrentar os grandes e perigosos animais da selva africana.

Esta realidade, aliás, tem sido aceite com alguma naturalidade pelos países africanos onde a indústria do turismo cinegético continua a ser praticada, destacando-se de entre eles a Tanzania, onde várias organizações se dedicam aos safaris de caça. Muito recentemente, uma das maiores empresas ali radicadas – a Tanganyika Wildlife Safari – divulgou no seu panfleto anual de promoção de safaris os nomes e fotografias dos seus caçadores guias, em número de vinte,  e,  todos eles, eram brancos,  quase todos famosos no ranking mundial da caça em África, destacando-se o conhecido português nascido em Moçambique, Luís Pedro de Sá e Mello (1), designado pelo International Safari Clube, na época venatória de 2003,  um dos melhores “Professional Hunters” deste continente.

Na primeira metade do século vinte muitos desses aventureiros afluíram ao território de Moçambique onde encontraram condições extraordinárias para exercerem a caça ao elefante, uma actividade que até era facilitada pelas próprias autoridades coloniais pelo facto destes animais serem considerados daninhos, havendo inclusivamente leis que estabeleciam prémios pelo seu abate em determinadas zonas do território.

Nas décadas de quarenta e cinquenta, esta actividade estendia-se praticamente a todo o território da colónia,  contando-se por alguns milhares as licenças  que nos últimos anos deste período eram emitidas pelos serviços do Estado que controlavam a fauna bravia, no caso Comissões Provincial e Distritais de Caça.

Atraídos pelo lucro fácil e, também, em muitos casos, movidos pelo espírito de aventura, muitos jovens abandonaram por essa altura as suas carreiras para se dedicarem a esta  profissão. Alguns deles, quando a chamada caça profissional foi abolida e foi criada a caça turística, em 1960, acabaram por se tornar  caçadores-guias, conduzindo safaris de caça nas coutadas oficiais então criadas. Foi uma alternativa  que abrangeu apenas um limitado número de caçadores, tanto pela reduzida capacidade das novas empresas operadoras de safaris, mas também pelo rigor  do  estatuto desta profissão (Regulamento do Caçador-Guia) que continha um conjunto de exigências, sobretudo  do ponto de vista técnico e físico, assim como falar línguas estrangeiras e ter conhecimentos  de enfermagem e de pronto socorro.

 

O Luís fazendo pose junto de troféus de elefantes abatidos por

quatro clientes que ele e outro colega conduziram em Kanga N’Thole, em 1964

 

2 – O PERCURSO DO LUÍS SANTOS

Nascido na cidade da Beira a 6 de Outubro de 1932, o LUIS SANTOS passou a sua juventude na propriedade agrícola que seus pais possuíam em pleno coração do planalto de Chimoio, província de Manica, centro/oeste de Moçambique, uma fazenda de grandes dimensões circundada de florestas e savanas ricas em animais selvagens de pequeno, médio e grande porte, com destaque para os antílopes (elandes, cudos, palapalas e changos), para os dois grandes felinos (leões e leopardos) e outra fauna menor como facoceros, cabritos, lebres, hienas, babuínos, macacos, perdizes, etc,. Não muito longe, nas margens do rio Púnguè,  para além destas espécies abundavam ainda outras comuns da região centro de Moçambique, como elefantes, búfalos, zebras, impalas, bois-cavalo, inhacosos, inhalas e, até, rinocerontes. O próprio rio Púnguè era fértil em hipopótamos e crocodilos.

Dividindo o tempo nas lides agrícolas com o pai e nos estudos no colégio de Nª Srª dos Anjos, na Beira,  onde fez os estudos primários e secundários, ele aproveitava todos os momentos livres para caçar, tendo-se  iniciado nestas lides muito jovem ainda. Começou pelos pequenos animais (galinhas, lebres, pombos verdes, rolas,  perdizes, cabritos, etc,) que facilmente se encontravam a escassas centenas de metros da sua casa e à medida que avançava na idade e podia utilizar as armas mais potentes que faziam parte do armeiro do pai foi-se aventurando em incursões venatórias pelas áreas limítrofes e progressivamente foi abatendo exemplares de praticamente todas as espécies de caça grossa, à excepção do rinoceronte.

Foi seu mestre e companheiro inseparável um dos trabalhadores da fazenda, de nome Jambo, um negro que lhe ensinou não só as artes de caça como os segredos de sobrevivência na selva face às privações ocasionais como a fome e a sede e até como recorrer a certas raízes e folhas de plantas para tratamentos de emergência em casos de indisposições repentinas, febres, ferimentos e mordeduras de cobras. Ao longo da sua carreira o Jambo acompanhou-o sempre como  pisteiro, uma das principais tarefas de que depende o sucesso das caçadas.

 

O Luís Santos com os seus pisteiros junto de um elefante abatido na coutada 1,

em 1964. O seu fiel Jambo está do lado esquerdo.

 

Quando atingiu os 18 anos, o Luís Santos tirou a sua primeira licença de caça de 1ª classe, o “passaporte” que lhe permitiu conhecer novos horizontes. A partir daí todo o tempo livre durante o período venatório era passado na caça em áreas como  Marromeu, Chemba, Sena, Dombe, Chibabava e outras regiões de Manica e Sofala compreendidas entre os rios Save e Zambeze.

Entretanto, a carreira de topógrafo que seguiu após ter terminado o ensino secundário e que vinha desenvolvendo na Força Aérea (Base nº 10 da Beira), com passagens anteriores pela Brigada de Fomento e Povoamento do Revuè e pelo Colonato do Sussundenga,  tornava-se cada vez mais penosa e monótona à medida que as suas experiências de caça aumentavam. Aos 25 anos deixou para trás essa carreira e tornou-se caçador profissional, dedicando-se,  numa primeira fase (1957/1958)  à caça de crocodilos no rio Zambeze e depois à chamada caça grossa que na altura proporcionava bons rendimentos com a venda da carne, peles e marfim.

Para além dos seus vastos conhecimentos da vida selvagem e de possuir grande experiência como caçador de espécies  como leões (abateu o seu primeiro aos 15 anos), leopardos, elefantes, búfalos, hipopótamos, crocodilos e toda a espécie de antílopes, o Luís Santos reunia outras qualidades que tornavam o seu currículo invejável e dos mais ajustados às condições exigidas para caçador guia. Falava duas línguas estrangeiras das mais utilizadas nesta profissão (inglês e espanhol), dominava as línguas locais chissena, chindau, chinyungue e chiraparapa e possuía prática de enfermagem e de primeiros socorros com cursos tirados na Cruz Vermelha, onde trabalhou como voluntário.

Entusiasmado com os sucessos obtidos pelos seus colegas durante os primeiros dois anos de safaris  e também pela motivação que lhe foi incutida pelo seu amigo de infância e colega de caça,  de nome Janak, filho de gregos também agricultores radicados em Maforga, perto de Vila Pery (actual Chimoio)  e um dos primeiros caçadores-guias de Moçambique que iniciaram os safaris nas coutadas oficiais criadas em 1960, o Luís acabou por ingressar, em 1963, na organização Simões Safaris (2), na altura concessionária de três das melhores coutadas da província de Manica e Sofala (nºs 6, 7 e 10).

Junto de um belo exemplar de Cudo, abatido em 1967 numa das coutadas da SAFRIQUE.

Em 1964 transferiu-se para a empresa de Alberto Araújo (3), concessionário da famosa coutada nº 1, confinada com os limites Norte do Parque Nacional da Gorongosa.

Em 1965 actuou nas coutadas 9 e 11, em colaboração com os respectivos concessionários, a Agência de Turismo da Beira e Amílcar Coelho.

Em 1966, ingressou na mega  empresa Safrique, entretanto criada sob a égide do Banco Nacional Ultramarino e que se tornou a maior e mais famosa empresa de safaris em África. Para além da coutada nº 13, que lhe fora directamente concessionada, a Safrique explorava as coutadas da Simões Safaris ( nºs 6, 7 e 10), de Alberto Araújo ( nº 1), da Agência de Turismo da Beira (nº 9), de Virgílio Garcia (nº 12) e de Armindo Vieira (nº 13), coutadas estas que foram integradas  na empresa e que formavam um verdadeiro império da caça em África, sem igual neste continente.

Em 1973 substituiu, durante três meses, o gerente do complexo turístico do Chitengo – Parque Nacional da Gorongosa, que era também explorado pela  Safrique.

 

O Luís no Chitengo em 1973. A seu lado um  Elande (juvenil) criado no acampamento

Devido ao cancelamento dos safaris nas coutadas da Safrique, em 1974, em consequência da situação de guerrilha dos nacionalistas moçambicanos, o Luís Santos viria a terminar a sua carreira de caçador-guia na empresa Moçambique Safarilândia,  actuando na coutada nº 5, junto do rio Save, nesse mesmo ano, aliás o último em que tiveram lugar os safaris de caça em Moçambique da era colonial.

Nos intervalos dos safaris de caça, efectuava safaris fotográficos e também safaris de pesca, nomeadamente nas águas de Santa Carolina, a chamada “Ilha do Paraíso”, situada na província de Inhambane, onde fez e conduziu excelentes pescarias aos fabulosos peixes marlin e veleiros . Era ainda um entusiasta do desporto automóvel, onde alcançou alguns êxitos como cronometrista em ralis  locais e nos países vizinhos.

Da lista dos  caçadores turistas que o Luís conduziu  durante a sua carreira em Moçambique, constam nomes de figuras internacionais de destaque, dos meios políticos,  financeiros e artísticos, assim como médicos de renome e dirigentes de organizações internacionais de protecção à vida selvagem. De entre essas figuras ele salienta aquelas que mais o marcaram no tocante ao relacionamento humano e que ficaram seus amigos para o resto da vida: o Rei Simeão II da Bulgária (no exílio) e esposa, a Princesa Margarita Rylsky; Carmen Franco, Marquesa de Villaverde, filha do chefe de Estado de Espanha; François Edmond Blanc, presidente do Comité Francês de Caça Grossa; Charles Van du Elst, presidente da Associação Protectora dos Animais da Suiça; Manuel Frade, presidente da companhia aérea portuguesa TAP; Alberto Pipia, proprietário de uma grande cadeia de restaurantes em Chicago; Dutra Faria, escritor português;  o Almirante George Anderson, da Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa; o Dr. Castro Fernandes, presidente do Banco Nacional Ultramarino e José João Mata,  empresário espanhol.

 

Com o Rei Simeão II da Bulgária e esposa, junto de um excelente exemplar de leão

abatido durante  aquele que foi um dos seus melhores safaris da sua carreira

 O fim dos safaris de caça em Moçambique não desencorajou este profissional de continuar a trabalhar na sua terra natal. Com efeito, o Luís Santos manteve-se na cidade da Beira como inspector de vendas da conhecida fábrica de tabacos Velosa e só uma doença grave surgida em 1976, que lhe afectou os nervos ópticos, o levou a deixar o país nesse mesmo ano.

Radicado em Portugal, valeu-lhe naquela difícil situação a ajuda do seu ex-cliente, e amigo, o empresário espanhol José João Mata, que o conduziu a consultas no famoso Instituto Barraquere, em  Barcelona e posteriormente a operação em Madrid, na clínica Ruben, efectuada por outro amigo das lides de caça, o Dr. Gonçalo Bravo, um conceituado neurocirurgião que conheceu quando este efectuava um safari conduzido pelo seu colega  Mário Lopes.

Graças a estes amigos, foi debelada a grave doença de que padecia. Só que,  infelizmente, ficou com a visão afectada e não voltou, por isso mesmo, a poder exercer qualquer actividade laboral.

 

 

No Buçaco, em 1991, no dia do  habitual encontro anual de ex-residentes

 nas províncias de Manica e Sofala.

Da esquerda para a direita: Dr. Joaquim Morais Gradil, Dr. Armando Rosinha, Luís Santos,

Artur Troni e o autor.

3 – UMA AMIZADE QUE PERDURA

O fim da chamada  caça profissional em Moçambique, no final da década de 50 e o surgimento da indústria dos safaris de caça no início da década de 60, foram duas das mais acertadas medidas jamais levadas a cabo naquele território no respeitante à utilização deste recurso e à sua consequente preservação.

A primeira dessas medidas pôs termo a uma actividade que afectou grandemente os efectivos dos animais de grande porte, precisamente os mais caçados para obtenção de carne, peles e  marfim, que eram a fonte de rendimento dos muitos caçadores profissionais que então operavam. Por outro lado, os safaris de caça, para além de fornecerem consideráveis divisas estrangeiras, não afectavam a sobrevivência das espécies na sua globalidade, já que os abates eram selectivos e visavam apenas a obtenção de troféus de machos,  normalmente velhos e já desintegrados do ciclo da procriação.

A indústria dos safaris de caça, devidamente estruturada e regulamentada, abriu também novas perspectivas no combate à caça furtiva, agora a contas com mais vigilantes que eram os caçadores-guias, os seus auxiliares e todos os trabalhadores ao serviço das empresas concessionárias das coutadas. Nestas áreas os agentes de fiscalização do Estado passaram a ter as suas tarefas mais facilitadas graças à preciosa colaboração  deste pessoal.

 

O Luís junto do posto de observação de caça (Tree Top)

 que a Safrique construíu no interior da coutada 1

Quando fui colocado em Manica e Sofala, em 1963, foram-me atribuídas tarefas (para além daquelas que me competiam como fiscal de caça), que me proporcionaram um relacionamento muito especial com os caçadores-guias que operavam nas coutadas oficiais daquela região centro de Moçambique. Refiro-me  à supervisão de safaris oficiais, que por norma tinham o acompanhamento de um representante do Estado ligado aos Serviços de Fauna Bravia e que era uma presença que tinha a  ver mais pela atenção e cordialidade que o país anfitrião dispensava aos seus convidados  do que propriamente  com o desenrolar  das caçadas, pois estas, quando efectuadas nas coutadas oficiais, eram efectuadas sob a responsabilidade dos  respectivos concessionários  e seus caçadores-guias.

Logo  no início da campanha venatória desse mesmo ano, conheci,  entre outros, o LUÍS SANTOS. Fomos companheiros de algumas caçadas que ocorreram nas coutadas oficiais concessionadas à empresa Simões Safaris e que envolveram membros da comitiva dos Marqueses de Villaverde, convidados do Presidente da República Portuguesa. Voltamos a estar juntos no  ano seguinte, no segundo safari deste mesmo grupo de espanhóis, durante outras caçadas que decorreram em Kanga N’Thole – coutada 1 .

 

 

A equipa que participou no segundo safari dos Villaverdes, em 1964, em Kanga N’Thole,

junto dos troféus dos animais ali abatidos por estes convidados do governo.

Da esquerda para a direita: O autor, José Simões, Marquesa e Marquês de Villaverde, Loli Aznar, Adelino Serras Pires e Luís Santos.

Vêm-se ainda na foto 7 trabalhadores da coutada segurando peles de zebras, de cudo e de palapala.

O Luís Santos tinha duas curiosas alcunhas. A primeira delas da autoria de um seu amigo – o Bráulio – de Vila Pery e que  espelhava bem o seu porte algo senhorial assim como   a sua  forma de estar na vida e de se comportar perante os que o rodeavam. “Barão de Almada” era o epíteto que nunca o molestou, até por que  Almada era o nome da propriedade de seus pais, que ele tanto adorava e ser chamado de Barão não era nada desprestigiante.

A segunda alcunha relacionava-se com a sua estatura, de um metro e oitenta e três centímetros  de altura e perto de cem quilos. “Cambange” (designação local da planta mais vulgarmente conhecida por suruma) era  o nome que lhe atribuíram os nativos da região do Guro, numa associação da força e do feitio muito autoritário deste homem com os efeitos  algo perversos desta planta. Por onde quer que andasse rapidamente se espalhava esta alcunha, pela qual era tratado pelas populações rurais que ignoravam o seu nome.

De facto, o primeiro daqueles epítetos fazia muito sentido já que o  Luís tinha atitudes muito próprias dos antigos senhores que nasceram apenas para mandar. Na sua actividade de caçador-guia ele distinguia-se dos seus colegas em muitos aspectos, nomeadamente no relacionamento com os caçadores-turistas, que tratava de igual para igual e, até, por vezes, tomando atitudes que mais parecia ser ele o turista.  Não abdicava, mesmo perante os clientes mais exigentes, da sua personalidade e do seu carácter de homem e de caçador que sabe o que faz, não cedendo facilmente aos seus caprichos,  correndo algumas vezes o risco de  quebrar as regras da cortesia que nesta actividade são aconselháveis para cativar a simpatia dos turistas que pagam fortunas para caçar em África.

Numa das visitas de inspecção às coutadas oficiais que efectuei com o director dos Serviços de Fauna Bravia, Dr. Armando Rosinha, na época venatória de 1971, constatámos que a fama do Luís, no que respeitava ao trato para com os clientes, continuava a fazer sentido. Pernoitámos no acampamento principal  da coutada 13, na Macossa, onde decorriam dois safaris simultâneos, um deles de um turista americano que ele conduzia. Na manhã seguinte, na hora habitual da partida para a caçada, deparámos com o americano  sentado no banco/palanque do jipe à espera do seu guia e a barafustar pelo facto deste estar atrasado. Alguns tempo depois o Luís surgiu da sua cabana na maior das calmas, ainda semi vestido e em preparativos higiénicos. Ao aperceber-se do nervosismo do seu cliente limitou-se a dizer: o gajo que espere!

 

Decorreu seguramente um período de meia hora para se preparar e tomar o matabico (pequeno almoço) e antes de partir foi-nos dizendo  que na véspera havia feito uma excelente caçada com o americano, com  redobradas canseiras e muitos quilómetros a pé, daí ser compreensível que necessitasse de mais descanso antes de novas caçadas. Para além disso, acrescentou,  era caçador-guia e não escravo!

Compreendemos a situação. Só que o americano não estava pelos ajustes, como bem se notava pela carranca que manteve durante todo o tempo que esperou o seu guia lá no poleiro do jipe.

Mas por detrás daquela aparente altivez, estava um homem e um profissional de personalidade e carisma muito próprios, que todos admiravam e respeitavam. Depressa se revelou um excelente camarada e bom colaborador, qualidades que nem sempre se reconheciam na maioria dos seus colegas. Daí ter nascido entre nós uma amizade muito especial, sem dúvida das melhores que estabeleci entre todos os profissionais da caça que conheci. Essa amizade cresceu depois do seu casamento com a Maria Isabel, uma simpática beirense que era funcionária da Camara Municipal da Beira e que também tinha grande paixão pela caça e pela vida animal. Ambos passaram a frequentar assiduamente o Parque Nacional da Gorongosa onde nos encontrávamos com regularidade. Daí aos  convívios familiares foi um passo e ainda hoje se mantêm,  só não  sendo mais frequentes porque estamos longe uns dos outros.

  

Em 1969 o casal Santos passou férias conosco no Sul de Moçambique. Esta foto registou uma inesquecível estadia na praia da Ponta do Ouro. A Maria Isabel está à direita do autor,  mulher (Lurdes) e  filha (Paula). O Luís foi o fotógrafo.

  

 

4 – RECORDAÇÕES QUE MARCARAM

 A vida de um caçador em África é repleta de acontecimentos, de emoções e de experiências muito ricas, daí ser muito comum designarem-se por aventuras praticamente todas as caçadas ou incursões pelo interior povoado de animais selvagens.

As narrativas dessas aventuras foram sempre muito apreciadas e divulgadas através de livros, filmes e revistas, destacando-se sobretudo as genuínas biografias e memórias pessoais de famosos caçadores que actuaram naquele continente durante as épocas áureas da caça ao elefante.

Em  Moçambique  actuaram ao longo dos tempos muitos e experimentados caçadores, mas só um punhado deles deixou para a posteridade as suas memórias, destacando-se: Harry Manners (Kambaku); José Pardal (Cambaco I e Cambaco II – Caça grossa em Moçambique); João Augusto Silva (Animais Selvagens e Gorongosa – Experiências de um caçador de imagens); Adelino Serras Pires (Ventos de Destruição – Memórias e aventuras de caça em Moçambique) (4); e Francisco Magalhães (African Trails – Percursos de um caçador em Moçambique) (5). Estes exemplos merecem a maior admiração já que se trata de  obras que para além do caris pessoal que encerram, são, sobretudo,  documentos valiosos que descrevem para a posteridade o fantástico potencial faunístico que existia no território na época pré independência.

Sabemos que três outros conhecidos caçadores-guias  - Luís Pedro Sá Mello (1), Victor Cabral (6) e Amadeu Peixe (7)  -  se preparam para publicar as suas memórias, facto que, a concretizar-se, virá enriquecer a escassa bibliografia sobre a caça em Moçambique daquela época.

Foto extraída do Livro “Ventos de Destruição”, que regista um encontro no mato dos funcionários da SAFRIQUE , Luís Santos (esquerda) e Adelino Serras Pires (direita), com guerrilheiros da FRELIMO, logo após o fim da guerra colonial, em 1974.

 O Luís Santos, que fez parte do número de caçadores que actuaram em duas épocas distintas, a primeira como  profissional dedicado ao abate das espécies mais rendosas para venda da carne, peles e marfim e a segunda como caçador-guia conduzindo safaris de caça nas coutadas oficiais, percorreu e observou os locais de maior concentração de animais selvagens e caçou praticamente todas as espécies, vivendo por isso grandes e emocionantes momentos. Tem por isso muitas histórias para contar que bem mereciam ser publicadas em livro.

Contudo, neste   espaço limitado, para além dos aspectos biográficos e das  impressões já aduzidas, ficam bem as breves anotações do Luís sobre a sua carreira de caçador:

 

O “bichinho” da caça, que me “atacou” desde miúdo, fez com que

      trocasse  a  carreira profissional de Topógrafo  pela de

      caçador profissional,  porque esta era uma das actividades mais aliciantes para

      um jovem que adora a vida em contacto com a Natureza. Vivi com grande paixão

        todos esses anos de constantes aventuras e conheci locais maravilhosos

        que     nunca alcançaria se não abraçasse a carreira de caçador.

 

*

  Foi graças a essa actividade  que conheci pessoas 

        de grande craveira internacional, algumas delas que ficaram excelentes

        amigos  para o resto da vida. A grave doença de que fui acometido, em 1977,

        só     foi  vencida devido à intervenção oportuna de dois desses bons amigos.

         

*

 Tenho óptimas recordações desses bons tempos e

guardo para sempre na memória as principais emoções vividas

 durante as caçadas e também  muitos episódios relevantes que ocorreram no mato.

Um deles foi mesmo notícia nos jornais em Moçambique e  Portugal,

por ter salvo a vida ao meu amigo Jaime Alves Gomes, de Vila Pery,

quando este foi mordido por uma cobra – víbora do Gabão - altamente venenosa.

Fiz-lhe uma incisão no sítio da mordedura e chupei-lhe o sangue.

Depois dei-lhe para mastigar umas raízes que conhecia e transportei-o de imediato ao Hospital.

Eu próprio tive de ser igualmente assistido pois o contacto com o veneno

 também me atingiu com alguma gravidade.

 

 

 5 – A COMPANHEIRA QUE TARDAVA

 

O nosso homem, tão ocupado que andou nas lides da caça a partir dos 18 anos, que se distraiu durante muitos anos com a escolha de uma companheira. Já tinha ultrapassado os trinta anos quando, finalmente, Cupido o inspirou.

O Luís começou a notar que no elevador do prédio onde morava (prédio Vumba, na Beira), entrava e saía com regularidade uma jovem bonita e descontraída, com quem propositadamente passou a cruzar-se na  intenção de provocar uma aproximação. Como isso não resultasse indagou do seu amigo Ladas, que o visitava com regularidade, quem era esta estranha beldade. Perante as informações que identificaram a menina como sendo funcionária da Camara Municipal, que tinha o gosto pela caça e que  fazia parte de um grupo que habitualmente caçava na Coutada do Clube dos Caçadores da Beira (Coutada 8), o Luís ficou verdadeiramente entusiasmado e a conselho deste seu amigo contactou o casal Girão, com quem a moça costumava passar os fins de semana no mato.  Combinaram uma caçada.

Um fim de semana passado em pleno mato, no convívio de amigos onde as conversas à fogueira se prolongam pela noite fora, proporcionou a aproximação tão desejada. Passado pouco mais de um mês, em Janeiro de 1966, o Luís e a Maria Isabel estavam casados!

A companheira que tardava!...

(Foto de 1968, em Inhamacororo – coutada 10)

Tal como o Luís, também a Maria Isabel  nascera na cidade da Beira e era uma fervorosa entusiasta pela caça, fruto de uma grande parte da sua infância e juventude passadas no interior de Manica e Sofala, por virtude das funções de seu pai que a levou desde muito pequena a caçadas e a locais remotos e famosos em animais selvagens.

Para além do gosto pela caça a Maria Isabel passou a dedicar-se ao tiro de Stand e ao desporto automóvel, participando em vários torneios e ralis ao nível da cidade da Beira. Obteve vários troféus em ambas as modalidades, destacando-se a vitória no 3º Rali Automóvel Feminino da Beira, em 1968.

 

No final do III Rali da Beira, em 1968, a Maria Isabel (direita)

 com a colega de equipa, também de nome Maria Isabel,

 junto do Mini que as levou à vitória.

 

Desde os 18 anos que a Isabel fazia parte de um grupo de caçadores de fim de semana, sendo uma das poucas mulheres da cidade que praticava este desporto. O seu casamento com o Luís Santos tornou-a ainda mais activa como desportista, sem descurar a sua brilhante carreira de funcionária pública, como comprovou a atribuição, por parte da Camara Municipal da Beira, da medalha de prata de serviços distintos,  por altura da sua promoção a 1º oficial.

Este casal era caso único entre os caçadores-guias, pelo facto de ambos serem caçadores. Como caçadora desportista ela  coleccionou troféus praticamente de todas as espécies da chamada caça miúda,  de antílopes de médio e grande porte e ainda dos poderosos e perigosos búfalos.

Depois do casamento a Isabel passou a viver novas e mais arrojadas aventuras  de caça, acompanhando o marido durante muitas das suas incursões cinegéticas pelo interior de Manica e Sofala. Ela orgulhava-se de ser  a única mulher de um caçador-guia  que também era caçadora e uma das raras mulheres em Moçambique que praticavam este desporto e que conheciam  bem de perto a fabulosa fauna selvagem deste país.

Dos seus apontamentos para este Álbum constam passagens que, pelo seu cunho pessoal e genuíno,  merecem reprodução integral:

 

Deliciava-me o “silêncio” e os “ruídos” da selva; o nascer e o pôr-do-Sol,

únicos em África; as conversas amenas à noite à volta da fogueira;

assistir aos batuques em noites de luar!

 

*

 Adorava passar os fins de semana no Parque Nacional da Gorongosa,

onde todos os funcionários eram nossos amigos. Quantas vezes acompanhámos o Dr. Rosinha e

assistimos a cenas novas que nos entusiasmavam e surpreendiam,

como eram as grandes manadas de elefantes e de búfalos na época de reagrupamento,

as lutas entre os machos das várias espécies na disputa do seu território junto das fêmeas,

as caçadas dos leões; o nascimento das crias dos cocones e das impalas, etc,.

 

*

 Fora do Parque e mesmo quando caçava, troquei muitas vezes a carabina

pela máquina fotográfica para registar momentos belos que os animais me proporcionavam!

 

*

  Nunca quis matar elefantes, leões e leopardos,

apesar de ter visto muitos nas zonas de caça em boa situação de os atingir a tiro.

As fotografias destes animais em liberdade entusiasmavam-me sempre muito mais!

 

*

 Conheci todos os acampamentos de caça da Safrique e da Safarilândia

e convivi com famosas personalidades do mundo da caça,

muitas delas ficaram nossos amigos para o resto da vida!

 

*

 Aprendi a estimar e a respeitar as populações rurais com o mais elevado respeito e

em toda a parte onde passávamos ou acampávamos distribuía medicamentos e

fazia tratamentos de emergência, sobretudo a feridas ulceradas, diarreias, febres, etc,.

 

*

O casal Santos e seu filho Miguel vivem em Alte – Algarve, uma das aldeias mais bonitas do país onde a esposa herdou de seus pais uma  típica e confortável  moradia. É ali que habitualmente os visitamos e nos juntamos com outro casal de amizade comum, o Fernando e a Julieta Soares (8), curiosamente naturais de Alte onde mantêm, apesar de viverem em Loulé, uma moradia precisamente na mesma rua onde vivem o Luís e a Isabel.

 

 

 No terraço da sua casa de Alte, em 1998, o Luís (à direita), com o autor (centro)

 e o amigo comum Fernando Soares (esquerda).

É bem visível o emblema da prestigiosa International Professional Hunters Association,

 que o Luís ostenta  com muito orgulho e que é um privilégio concedido apenas

 a caçadores de reconhecidos méritos.

 

Marrabenta, Outubro de 2004

 Celestino Gonçalves

 

 

REFERÊNCIAS

(1)-Ver  “ÁLBUM”  nº 4Luís Pedro de Sá e Mello.

(2)-Ver “ÁLBUM” nº 6 – José Joaquim Simões.

(3)-Ver “ÁLBUM “ nº 2– Alberto  Novaes de Sousa Araújo.

(4)-Ver “ÁLBUM” nº 12– Adelino Serras Pires.

(5)-Ver “ÁLBUM” nº 1 – Francisco Magalhães.

(5)-Ver “ÁLBUM” nº 8 – Victor Cabral.

(7)-Ver  “ÁLBUM” nº 7 –Amadeu Peixe.

(8)- O Fernando Correia Soares teve uma carreira brilhante no Quadro Administrativo em Moçambique, onde, paralelamente,  desenvolveu com sua esposa um importante papel cultural junto das populações rurais, nomeadamente em Nairoto e Metuge, na Província de Cabo Delgado. Ali, eles criaram ranchos folclóricos infantis, que na época foram muito apreciados e galardoados pelas autoridades. Graças ao seu entusiasmo ele dinamizou, pouco depois do seu regresso a Portugal, em 1977, a criação do “Grupo de Amigos de Loulé e do Rancho Folclórico Infantil de Loulé”, sendo actualmente o Presidente da respectiva Direcção e Director do Rancho, que dirige com sucesso há vinte e sete anos, sendo também professor de Cultura Tradicional Popular nas Escolas de E.B. da cidade de Loulé.Trata-se de mais um casal que faz parte das nossas melhores amizades criadas em Moçambique e que, com inteira justiça, terá direito a um  lugar especial no próximo capítulo do sector “Crónicas & Narrativas”, intitulado “Memórias – Capº IV – Fauna Bravia, Caça e Caçadores do Norte de Moçambique”.

FONTES:

-         Dados genéricos (datas, nomes, locais e acontecimentos): dos biografados;

-         Dados complementares: dos apontamentos e da memória do autor;

-         Fotografias: dos biografados e dos arquivos do autor.

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