Retorna
O ato para além da Lei: Kant com Sade
como ponto
de viragem do pensamento lacaniano Vladimir Safatle Toda
tese drástica é falsa. No mais profundo delas mesmas, a tese dodeterminismo
e a tese da liberdade coincidem. Todas
as duas proclamam a identidade. Adorno[1] "Nossa
via é a experiência intersubjetiva na qual o desejo do sujeito se faz
reconhecer"[2].
Durante quase trinta anos, esta fórmula direcionou todos os esforços de Lacan
na tentativa de repensar a racionalidade da praxis analítica. Foi a defesa da
existência de uma lógica intersubjetiva em operação na psicanálise que
permitira a Lacan retornar a Freud sem que isto o levasse, necessariamente, a
compartilhar o vocabulário cientista e
o peso biologicista próprios a
algumas articulações fundamentais da metapsicologia freudiana. Sabemos como, através da adoção do paradigma da
intersubjetividade, o psicanalista parisiense foi capaz de reestruturar o
núcleo da experiência analítica e encontrar lá uma dialética do reconhecimento
do desejo 'inspirada' na Anerkennung
hegeliana. A cura viria através da nomeação de um desejo que, até então, só
pudera aparecer sob a forma do sintoma. Tratava-se pois de levar o sujeito a
assumi-lo na primeira pessoa do singular
em um campo simbólico estruturado como uma linguagem. De onde se seguia, por
exemplo, a famosa definição do fim de análise: "O sujeito, nós dizíamos,
começa a análise falando de si sem falar a você, ou falando a você sem falar de
si. Quando ele conseguir falar de si a você, a análise estará terminada"[3]. Sendo que 'falar de si' deve ser entendido aqui como,
principalmente, 'dar nome ao seu desejo'. Mas o motivo do reconhecimento
intersubjetivo será abandonado por Lacan. Assim, no Seminário sobre A transferência, de 1961, encontraremos
o psicanalista operando uma mudança radical de direção através de afirmações
como: "A experiência freudiana se petrifica
desde que ela [a intersubjetividade] aparece. Ela só desabrocha na sua
ausência"[4].
Uma proposição clara que indicava a necessidade de repensar o programa de racionalidade
e de redeterminar a cartografia conceitual que sustentava a praxis analítica.
Projeto ao qual Lacan dedicará os vinte anos restantes de suas reflexões sobre
a psicanálise. Infelizmente, uma questão central
ficou em aberto neste processo de reformulação interna da experiência
intelectual lacaniana. Um tanto quanto avesso a auto-críticas, Lacan nunca
expôs de forma direta os motivos de seu fracasso e da incompatibilidade entre
intersubjetividade e psicanálise. Ao contrário, em vários momentos posteriores
ao abandono do paradigma do reconhecimento intersubjetivo, ele chegará a
retomar alguns conceitos-chaves deste seu primeiro período a fim de mostrar sua
pertinência e atualidade[5].
O objetivo deste artigo é pois
indicar o locus de ruptura e de
esgotamento do paradigma lacaniano da intersubjetividade. Veremos como este locus, raramente reconhecido como tal,
não é outro que a crítica lacaniana à filosofia prática de Kant através da
articulação entre Kant e Sade. Neste sentido, Kant com Sade deve ser lido como sintoma maior do impasse da
racionalidade intersubjetiva no interior da clínica analítica. Mas antes de darmos dois passos à
frente em direção a Kant e a Sade, vale a pena dar um passo atrás a fim de
compreendermos o que Lacan entendia exatamente por intersubjetividade. É tal compreensão que nos esclarecerá
o que estava em jogo no momento em
que Lacan desenvolve sua crítica à moral kantiana, ou seja, nos anos 1959-1962. A transcendência negativa do desejo Normalmente, quando pensamos na coreografia intersubjetiva do reconhecimento do desejo pelo Outro, esquecemos de colocar duas questões centrais para Lacan: "qual desejo insiste em ser reconhecido?" e "o que significa exatamente dar nome ao desejo?". Questões que continuarão obscuras enquanto negligenciarmos a centralidade dada por Lacan à categoria de desejo puro: dispositivo que servira durante um bom tempo de orientação ao desejo do analista[6]. Pois, para Lacan, a cura analítica estava necessariamente ligada ao reconhecimento de que a verdade do desejo é ser desejo puro. A propósito desta categoria, lembremos que, na teoria lacaniana, a característica principal do desejo é ser
desprovido de todo procedimento natural de objetificação.
Quer dizer, ele é necessariamente sem objeto, desejo de "nada de nominável"[7].
Como notará Lacan com uma certa nostalgia: "Os antigos colocavam o acento
sobre a tendência enquanto que nós, nós a colocamos sobre seu objeto (...) nós
reduzimos o valor da manifestação da tendência, e nós exigimos o suporte do
objeto pelos traços prevalentes do objeto"[8]. Aqui, ouvem-se ecos do leitor atento de Kojève, o mesmo
Kojève que tentava costurar o ser-para-a-morte heideggeriano e a Begierde hegeliana a fim de poder afirmar
que a verdade do desejo era ser a: "revelação de um vazio"[9],
ou seja, pura negatividade que transcendia toda aderência natural e imaginária.
Um estranho desejo incapaz de se satisfazer com objetos empíricos e arrancado
de toda possibilidade imediata de realização fenomenal. Mas por que esta pura tendência que
insistia para além de toda relação de objeto transformou-se em algo de
totalmente incontornável para Lacan? Podemos fornecer duas respostas
esquemáticas. Primeiro, Lacan desenvolveu uma teoria da constituição dos
objetos exclusivamente a partir de considerações sobre o narcisismo. Neste
momento do pensamento lacaniano, os objetos, assim como os outros sujeitos
empíricos tomados na condição de objetos do desejo, sempre são projeções
narcísicas do eu. Lacan chega a falar de um caráter
egomórfico dos objetos do mundo empírico. De onde se segue um narcisismo fundamental guiando todas as
relações de objeto e a necessidade de atravessar este regime narcísico de
relação através de uma crítica ao primado do objeto na determinação do desejo.
Este tema da crítica ao primado do objeto aparece em Lacan principalmente
através da crítica às relações presas à dimensão do Imaginário, já que o
Imaginário lacaniano designa, em grande parte, a esfera das relações de
projeção e introjeção que compõem a lógica do narcisismo. Segundo, Lacan percebeu claramente que a psicanálise tinha
nascido em uma situação histórica na qual o sujeito era compreendido como
entidade não-substancial e marcada pelo selo de uma 'liberdade negativa' que o
permitia nunca ser totalmente idêntico a suas representações e identificações.
A operação de 'purificação do desejo' escondia assim uma estratégia maior. Na
verdade, tudo se passava como se Lacan projetasse a função transcendental
própria ao conceito moderno de sujeito em um uma teoria do desejo (sua
aproximação entre o sujeito do inconsciente e o cogito cartesiano é, no fundo, uma consequência
de tal estratégia). Isto permitiu ao psicanalista afirmar que, para além de
suas realizações fenomenais, havia uma: "permanência transcendental do
desejo"[10]. O
que nos leva à definição lacaniana do sujeito como manque-à-être: "O desejo é uma relação de ser à falta. Esta
falta e falta-de-ser propriamente dita. Não é falta disto ou daquilo mas
falta-de-ser através da qual o ser existe"[11].
Aqui, esta falta peculiar que não é nem disto nem daquilo é, na verdade, o
regime de experiência subjetiva da estrutura transcendental do desejo.
Transcendental porque o manque-à-être seria
a condição a priori para a
constituição do mundo dos objetos do desejo humano. A priori porque a falta não é derivada de
nenhuma perda empírica. O que explicaria porque Lacan parece querer operar uma
verdadeira dedução transcendental deste desejo puro, já que, ao contrário de Freud, ele não identifica a causa da falta própria ao
desejo à perda do objeto materno produzida pela interdição vinda da Lei do
incesto. Lembremo-nos como, para Freud: "Acima
de tudo, o homem está a procura da imagem mnésica de
sua mãe, imagem que o domina desde o início de sua infância"[12]. Até aqui é Lacan mas poderia muito bem ser, por exemplo,
Sartre, outro que também procurava articular a função transcendental (no seu
caso, a consciência como campo transcendental vazio) e a negatividade do
desejo. Basta, por exemplo sublinhar sua afirmação segundo a qual: "O
homem é fundamentalmente desejo de ser e
a existência deste desejo não deve ser estabelecida por uma indução empírica:
ela deriva de uma descrição a priori do
ser do para-si, já que o desejo é falta e que o para-si é o ser que é em si
mesmo sua própria falta de ser"[13].
Consequentemente, a manifestação deste desejo, que se confunde com o para-si, é
nadificação do em-si ou, como tinha dito Kojève, revelação de um vazio. Se
deixarmos de lado a aversão de Sartre pela noção freudiana de inconsciente, nós
chegaremos a uma descrição ontológica do desejo muito próxima daquela fornecida
por Lacan, até porque, a separação entre os dois encontra-se na compreensão da
estrutura da consciência (Lacan nos fornece uma definição materialista de
consciência que vai na contramão do campo transcendental sartreano),
e não na ontologia do desejo. Mas como Lacan pensava os procedimentos de
reconhecimento objetivo deste desejo sem objeto? Como reconhecer e dar estatuto
objetivo àquilo que é pura negatividade que não cessa de não se inscrever? Estaria
Lacan pregando algum tipo de ataraxia na
qual o sujeito tomaria distância de toda relação de objeto a fim de gozar de
uma certa indiferença absoluta? Por
outro lado, vários psicanalistas após Lacan insistiram no risco de hipostasiar
este désir de manque e de
transformá-lo em um puro desejo de morte e de destruição[14].
Como se o desejo puro fosse, na verdade, a simples manifestação de fantasmas
masoquistas O imperativo lacaniano de subordinar o desejo
puro ao desejo de reconhecimento tentava exatamente evitar tais derivas. Neste
sentido, ele mostrava que o verdadeiro problema da experiência analítica era:
como simbolizar, como escrever o manque-à-être que indica a
irredutibilidade ontológica da negatividade da subjetividade aos procedimentos
de objetificação. Simbolizar a negação sem dissolvê-la, ou ainda, instituir o manque-à-être no interior da relação de
objeto[15],
eis o programa a ser seguido pela racionalidade analítica intersubjetiva,
segundo Lacan. Unir um desejo à Lei A primeira condição para a realização de tal programa
apareceu através da distinção estrita entre os domínios do Imaginário e do
Simbólico. Isto permitirá a Lacan estabelecer uma diferenciação entre
intersubjetividade imaginária[16],
ligada à palavra narcísica que circula entre o eu e o outro empírico, e aquilo
que Lacan chama de "relações autenticamente intersubjetivas"[17].
Trata-se de um motivo estruturalista clássico. As relações interpessoais são
determinadas de maneira inconsciente por um sistema simbólico de leis[18].
Por exemplo, quando um homem e uma mulher se casam (quer dizer, quando eles
fazem uma escolha de objeto, estabelecendo vínculos afetivos que se traduzem em
um relação intersubjetiva de amor e ódio) eles não têm consciência das leis de
trocas matrimoniais que determinam sua escolha. Eles reificam um objeto cujo
valor vem simplesmente do lugar que ele ocupa no interior de uma estrutura
articulada como uma cadeia de significantes. Neste sentido, as relações com o
outro empírico tendem a impedir que os sujeitos apreendam a mediação das
estruturas sócio-linguísticas que determinam a conduta. A psicanálise deveria pois levar o sujeito a compreender como
o lugar da verdadeira relação
intersubjetiva encontrava-se na relação entre o sujeito e a estrutura
inconsciente que determina a conduta[19].
Quer dizer, em lacanês, ela deveria indicar ao
sujeito como o desejo do homem estava sempre ligado ao desejo do Outro: esta
figura que, no interior da experiência subjetiva, presentifica e singulariza a
ação da estrutura. Mas Lacan não é um estruturalista clássico. Se a verdadeira
estrutura intersubjetiva encontrava-se na dimensão da relação entre o sujeito e
a Lei simbólica ou entre o sujeito e o Outro, não era simplesmente porque
estaríamos diante de uma dimensão que nos daria acesso à lógica do processo de
constituição das fixações imaginárias de objeto. Se este fosse o caso, Lacan
teria simplesmente transformado a psicanálise em uma modalidade de crítica à reificação muito em voga no seu meio intelectual. Na
verdade, o ponto fundamental desta coreografia entre o sujeito e a Lei está na
aposta de que o sujeito pode ser reconhecido como sujeito através do
desvelamento de seu desejo como desejo da
Lei, desejo pelo significante da Lei, e não desejo por objetos. Chegamos
assim à fórmula central: a intersubjetividade
lacaniana fundamentava-se na possibilidade do reconhecimento do desejo puro
pela Lei. Este é um ponto importante porque, para Lacan, ao invés de se
opor ao desejo, a Lei simbólica poderia dar uma determinação objetiva ao desejo
puro, já que a Lei estaria: "a serviço do desejo"[20].
Quer dizer, o sujeito poderia, digamos, gozar
da Lei, como vemos na afirmação: "é necessário que o gozo seja
recusado para que ele possa ser alcançado na escala invertida da Lei do
desejo" [21]. Para além do
prazer proporcionado pela alienação do desejo em objetos empíricos e
narcísicos, haveria um gozo proporcionado pelo reconhecimento do desejo na
dimensão simbólica da Lei. Mas, a princípio, esta noção de um gozo da Lei parece um
contra-senso completo, já que Freud nos tinha advertido que a Lei sempre é
restritiva no que concerne às monções pulsionais do sujeito, ela sempre é Lei
da castração fundada na interdição do incesto. Para Freud, a Lei só se
reconcilia com a pulsão através da figura sádica do supereu: esta mistura
destrutiva entre consciência moral (Gewissen)
e pulsão de morte. Mas este não é o caminho trilhado por Lacan - que sempre
procurou distinguir a transcendentalidade da Lei simbólica e o sadismo do
supereu. Temos então uma questão complexa em aberto: como
o desvelamento da presença da Lei simbólica era capaz de resolver o problema do
reconhecimento do desejo puro e de
prometer um gozo alcançado na escala
invertida? Como uma Lei aparentemente restritiva poderia estar a serviço do
desejo? A resposta de Lacan passava por uma especificidade fundamental na sua
compreensão da Lei. Especificidade que derivava de sua filiação ao
estruturalismo de Lévi-Strauss. Segundo Lacan, a Lei simbólica seria apenas uma
cadeia fechada de significantes puros desprovidos
de significado. Ela seria, na verdade, uma pura forma vazia incapaz de enunciar uma norma sobre o gozo
ou sobre o objeto adequado ao gozo. A noção de significante puro é aqui fundamental.
Ela é o resultado da radicalização de uma concepção não-realista de linguagem
que acompanhou Lacan desde sua tese de doutorado, de 1932. Significantes puros
são termos desprovidos de força denotativa, eles não denotam nenhuma referência
extra-linguística. Como Lacan nunca cansou de sublinhar: "o
significante é um sinal que não remete a um objeto, mesmo sob a forma de rasto,
embora o rasto anuncie, no entanto, o seu caráter essencial. Ele é também o
sinal de uma ausência"[22].
Neste sentido, o significante puro pode ser compreendido como a formalização da impossibilidade da
linguagem adequar-se às coisas sensíveis. Se voltarmos à noção do desejo puro como desejo
desprovido de procedimento natural de objetificação, como desejo incapaz de se
satisfazer através do consumo de objetos fenomenais, já podemos vislumbrar o nó
da estratégia lacaniana. Pois, neste contexto, o que pode significar 'unir um
desejo à Lei' a não ser simbolizar, dar determinação objetiva à impossibilidade
do desejo em se ligar a um conteúdo objetal empírico? Através da noção de
linguagem como conjunto de significantes puros, Lacan tentava mostrar que nomear um desejo equivalia, no fundo, a
formalizar a não-identidade entre o desejo e os objetos do mundo fenomenal. Vale a pena exemplificar este ponto através da
descrição da estrutura do dispositivo central de simbolização
analítica que ocupa o lugar de significante-mestre capaz de fundamentar a Lei
simbólica. Refiro-me ao Falo, significante que articula a diversidade dos modos
possíveis de sexuação e de gozo. Há um interesse suplementar na discussão da
estrutura do Falo pois, atualmente, conhecemos várias críticas que acusam Lacan
de ter hipostasiado uma Lei simbólica de forte conteúdo normativo[23]. A partir do momento em
que ele teria pensado a totalidade dos modos de cura através do fortalecimento
da identificação simbólica a uma Lei paterna e fálica de aspiração universal[24] (a tentativa de não
articular desejo e Lei, através da forclusão do Nome-do-Pai e da negação da
castração, só pode dar em psicose), Lacan teria anulado a diferença irredutível
própria ao desejo e, por consequência, teria
restringido a multiplicidade plástica de identidades sexuais e sociais
possíveis. A crítica mais importante contra as consequências deste
'falocentrismo' veio de Derrida com o texto Le
facteur de vérité, onde o significante fálico aparece, no fundo, como
operador de simbolização hermenêutica e de totalização sistêmica[25].Mas esta leitura pode ser
relativizada se insistirmos na determinação opositiva fundamental às definições
do Falo. Por um lado, o Falo aparece como significante por
excelência do desejo. No universo lacaniano todos os sujeitos desejam o Falo,
seja sob a forma do ter - para os
homens, seja sob a forma do ser -
para as mulheres[26].
Ele é assim o único emblema possível à
simbolização do desejo. Mas o Falo é também o significante da castração, o que
aparentemente é uma contradição absoluta; a não ser se admitirmos a existência
de algo como um desejo de castração orientando a conduta dos sujeitos - o que é
evidente apenas para a histérica. A estratégia lacaniana
fica mais compreensível se lembrarmos que a castração lacaniana indica,
principalmente, a impossibilidade de um objeto empírico (o pênis orgânico) ser
função de gozo e objeto adequado ao desejo, então a estratégia fica mais clara.
O Falo é apenas uma maneira do sujeito dar determinação objetiva e permitir o
reconhecimento intersubjetivo da negatividade radical do seu desejo em relação
ao pênis orgânico (e a qualquer objeto empírico que tente substituí-lo como,
por exemplo, o fetiche). Neste sentido, o Falo é apenas a simbolização de uma negação. Seu conteúdo normativo e positivo é nulo, já que
ele não pode dizer nada sobre o objeto empírico adequado ao gozo. Era desta forma que a teoria da Lei como
formalização de negações procurava permitir a união do desejo puro ao significante
a fim de viabilizar uma experiência de reconhecimento intersubjetivo. Através da Lei fálica, o sujeito
poderia formalizar e permitir o reconhecimento da transcendência negativa do
desejo. Até porque, ele encontrava na ordem simbólica a mesma negatividade que
animava seu desejo. Um encontro que Lacan chamará mais tarde de separação[27].
Segundo Lacan, era assim que, graças a um desvelamento de negações, a
reflexividade própria à intersubjetividade podia se realizar. Mas, a partir de 1961, Lacan abandonará este
programa e irá criticar a mesma intersubjetividade que fora o fundamento da
metapsicologia e da praxis analítica. O que aconteceu? Como já afirmei, infelizmente não temos respostas
ou indicações diretas, já que Lacan nunca expôs criticamente os motivos de seu
impasse. Mas ele recorreu a um procedimento astuto e digno dos melhores golpes
de cena intelectual: ele colocou um outro em seu lugar para poder criticá-lo.
Este outro não era outro que Kant. O golpe era ainda mais teatral porque, ao
invés de criticá-lo diretamente, Lacan, em vários momentos, utilizou-se de Sade
e de Antígona: dois personagens encarregados de sustentar os desafios da
psicanálise ao discurso da dimensão prática da racionalidade moderna. Assim,
esta verdadeira peça de teatro entre dois personagens mais um (Kant com Sade,
mais Antígona) era, na verdade, um jogo orquestrado por Lacan contra si mesmo.
Jogo no qual se decidia os próximos movimentos da sua teoria analítica na
tentativa de pensar a dialética negativa do desejo Vejamos isto com calma. A intersubjetividade entre Kant e LacanKant como o duplo especular de Lacan. O que isto
pode significar? Uma boa estratégia para começar a responder tal questão
consiste em sublinhar que a dimensão prática da filosofia kantiana é, no fundo,
uma teoria da intersubjetividade. Eis algo que Lacan deve ter percebido, embora ele
nunca tenha tematizado a questão de forma explícita. Eu digo: 'ele deve ter
percebido' pois não é por acaso que, entre o seminário VI, O desejo e sua interpretação, onde a intersubjetividade ainda é
vista como o paradigma da racionalidade analítica, e o seminário VIII, A transferência, onde Lacan afirma que a
experiência freudiana se petrifica desde que a intersubjetividade aparece, há o seminário VII, espaço
privilegiado da operação de articulação entre Kant e Sade. O que demonstra como
Kant com Sade é, no interior da
trajetória lacaniana, um momento de ruptura e de reordenação do problema da
racionalidade analítica que colocará novos problemas à clínica e à questão do fim
de análise. Demonstrar que a dimensão prática da filosofia
kantiana comporta uma teoria da intersubjetividade em seu horizonte não é algo
realmente complicado. Mas o mais interessante é assinalar como ela é simétrica,
em mais de um ponto, a seu homólogo lacaniano. Comecemos por Kant. Nós sabemos que o filósofo
alemão quer reconciliar a razão com sua dimensão prática através da
fundamentação de uma Lei moral incondicional, categórica e de aspiração
universalizante. Lei válida: "em todos os casos e para todos os
seres"[28].
Se a razão não pudesse postular a realidade objetiva de uma Lei moral válida
universalmente, então o agir seria determinado pela contingência da causalidade
natural ou histórica. O homem seria apenas o resultado de suas circunstâncias,
uma vontade livre seria sem sentido e: "seria então a natureza que
forneceria a lei"[29].
A fim de exorcizar este determinismo na dimensão prática, Kant deve primeiramente defender a possibilidade de todos
os homens, inclusive os perversos, escutarem imediatamente a voz interior da
Lei moral: "Todo homem, enquanto ser moral, possui em si mesmo, originalmente, uma tal consciência"[30].
Não há espaço aqui para algo como uma gênese da Lei moral, já que sua realidade
objetiva é o resultado de uma dedução transcendental. Nós estamos longe, por
exemplo, de Nietzsche e da tarefa filosófica de
estabelecer as coordenadas históricas da genealogia da moral. Nós estamos
igualmente longe de Freud, para quem a gênese da
consciência moral (Gewissen)
era indissociável de um fato da história do sujeito: a ameaça de castração
vinda do pai[31]
- de onde se segue a afirmação de que só háá consciência moral lá onde há
pressão vinda do supereu. Para o materialista Freud, a experiência moral é o resultado do sentimento de
culpabilidade vindo da rivalidade com o pai. Mas nos interessa aqui sublinhar como o reconhecimento da
presença da Lei moral em todos os homens vai permitir a construção de um
horizonte regulador de validação da conduta racional. Um horizonte intersubjetivo que levará o sujeito a guiar suas ações
tendo em vista a realização do que Kant denomina
"o reino dos fins", quer dizer: "o vínculo sistemático dos
diversos seres racionais por leis comuns"[32].
Através da temática do reino dos fins, Kant demonstra
como a Lei moral pode aparecer como elemento capaz de fundamentar um espaço
transcendental de reconhecimento intersubjetivo da
autonomia e da dignidade dos sujeitos[33]. A questão que fica em aberto aqui é: qual é a relação entre
tudo isto e a intersubjetividade lacaniana,
espaço no qual a negatividade do sujeito seria reconhecida através de uma Lei
fálica e paterna constituída por significantes
puros? Primeiramente, é necessário sublinhar a maneira com que Lacan
também defendia a possibilidade de uma Lei de aspiração universal capaz de fundamentar
um espaço de reconhecimento intersubjetivo. A crença
na importância da função do Universal da Lei na clínica levou Lacan a afirmar:
"Só existe progresso para o sujeito através da integração a que ele chega
de sua posição no universal"[34].
Mas nós sabemos que, no caso de Lacan, o Universal era construído pela Lei
fálica. Lei que mostrava como o sujeito só seria reconhecido a partir do
momento em que o desejo passasse pela função universal da castração. Este deslizamento um tanto inesperado da Lei moral à Lei
fálica pode ser explicado se nos lembrarmos da maneira como o psicanalista
tentou introduzir uma erótica 'sob' a
moral. Resultado de uma certa perspectiva materialista que procurava: colocar a
relação homem/mulher no centro da interrogação ética"[35].
É verdade que Kant nunca interoduzirá a diferença sexual nas considerações sobre a
éticas. Ele preferiu se dirigir ao genérico de 'todo homem'. Para Kant, introduzir aqui a diferença sexual mostraria uma
confusão imperdoável entre os domínios da antropologia e da moral que nos
levaria a submeter a transcendentalidade da função do
sujeito a algo da ordem material da lei da natureza. Mas, se a psicanálise
segue Kant no seu programa de reconciliar a razão com
a dimensão prática, ela nos assinala também que a fundamentação do Logos deve levar em conta a lógica de Eros. E se a ética é inseparável da
pressuposição de um horizonte intersubjetivo de
validação da praxis, não podemos esquecer que a
relação intersubjetiva por excelência é (ou, ao
menos, deveria ser) a relação sexual. Ela é a única relação onde o sujeito
poderia estar presente ao Outro
através da materialidade do corpo (isto, é claro, se houvesse relação sexual). De onde se segue, para Lacan, a necessidade de colocar a relação homem-mulher no centro da interrogação ética. A lei moral é o desejo
em estado puro Neste ponto da análise, eu gostaria de notar que
a convergência entre Kant e Lacan não se limitava apenas à tentativa de abrir
uma perspectiva universalista através da fundamentação de um campo
transcendental de reconhecimento intersubjetivo. Havia ainda uma convergência
muito importante de método. Tanto
Kant quanto Lacan procuraram afirmar a dimensão da Lei contra o primado dos objetos empíricos na determinação da vontade e
através de um "rebaixamento do sensível"[36]. No que concerne a Kant, nós conhecemos sua
coreografia. Trata-se, para ele, de defender a existência de uma vontade livre
e incondicionada do ponto de vista empírico, vontade que age por amor a priori à Lei (e não apenas conforme à Lei - tal como a criança que segue a
ordem paterna não devido à consciência da obrigação do dever, mas apenas na
esperança de ganhar algo em troca). Uma vontade que age sem ser condicionada pelo
empírico, quer dizer, que fez: "abstração de todo objeto, ao ponto deste
não exercer a menor influência sobre a vontade"[37], só pode ser pensável se
admitirmos que o sujeito não determina a totalidade de suas ações através do
cálculo do prazer e da satisfação própria ao bem-estar. Para Kant, há uma vontade para além do princípio do prazer. Aqui,
nós não podemos esquecer a distinção maior entre das Gute (ligado a uma determinação a priori do bem) e das Wohl (ligado ao prazer e ao bem-estar do sujeito). Os objetos ligados a das
Wohl e, por conscquência, ao prazer (Lust) e ao desprazer (Unlust) são todos empíricos, já que: "não podemos conhecer a priori nenhuma representação de um
objeto, não importa qual seja, se ela será ligada ao prazer, à dor ou se ela
lhes será indiferente”[38].
O sujeito não pode saber a priori se
uma representação de objeto será vinculada ao prazer ou à dor porque tal saber
depende do sentimento empírico do
agradável e do desagradável. E não há sentimento que possa ser deduzido a priori (exceção feita ao respeito - Achtung) já que, do ponto de vista do
entendimento, os objetos capazes de produzir satisfação são indiferentes. Logo,
a faculdade de desejar é determinada pela capacidade de sentir (Empfänglichkeit), que é particular à
patologia das experiência empíricas de cada eu e desconhece invariantes universais.
Isto permite a Kant afirmar que não há universal no interior
do campo dos objetos do desejo, já que aqui cada um segue seu próprio
sentimento de bem-estar e os princípios narcísicos ditados pelo amor de si. De
outro lado, nós não devemos esquecer que não há liberdade lá onde o sentimento
fisiológico do bem-estar guia a conduta. Pois, neste caso, o sujeito é
submetido a uma causalidade natural onde o objeto e os instintos ligados à
satisfação das necessidades físicas determinam a Lei à vontade, e não o
contrário. De onde se segue a afirmação: "Estes que estão habituados
unicamente às explicações fisiológicas não podem colocar na cabeça o imperativo
categórico "[39].
Neste nível, o homem não se distingue do animal. Só há liberdade quando o sujeito pode determinar de maneira
autônoma um objeto à vontade. A fim de poder produzir tal determinação, ele
deve se apoiar na razão contra os impulsos patológicos do desejo. O homem é o
único animal que tem: "a faculdade (facultas)
de se elevar por sobre (Überwindung) todo impulso sensível "[40]
e de desenvolver o : "poder de transformar uma regra da razão em motivo de
uma ação”[41]. É
através deste vazio, desta rejeição radical da série de objetos patológicos,
que a conduta humana com seu sistema de decisões pode ser outra coisa que o
simples efeito da causalidade natural. Assim, ela pode se afirmar em seu
próprio regime de causalidade, chamado por Kant de causalidade pela liberdade (Kausalität durch Freiheit). O que não
surpreende ninguém já que, para Kant, a verdadeira liberdade consiste em:
"ser livre em relação a todas as leis da natureza, obedecendo apenas
àquelas que ele mesmo [o sujeito] edita e a partir das quais suas máximas podem pertencer a uma legislação
universal "[42]. A
liberdade consiste em determinar a vontade através da universalidade da razão. Apesar disto, tal
purificação da vontade através da rejeição radical da série de objetos
patológicos coloca um problema, já que toda vontade deve dirigir sua realização
através de um objeto. Faz-se necessário um objeto próprio à vontade livre. A
fim de resolver tal impasse, Kant introduz o conceito de das Gute: um bem para além do sentimento utilitário de prazer[43].
Sua realidade objetiva indica que a razão prática pode dar uma determinação a priori à vontade através de um objeto
supra-sensível desprovido de toda qualidade fenomenal. Ele é tanto o princípio
regulador da ação moral quanto o princípio de toda conduta que se queira
racional. Dizer que o ato moral é dirigido por um objeto desprovido de
realidade fenomenal nos leva longe. Pois isto significa dizer que não é
possível termos nenhuma intuição correspondente a este objeto (há intuições
apenas de fenômenos categorizados no espaço e no tempo). Isto não parece
colocar problemas a Kant já que, se algo devesse ser gut: "seria apenas a maneira do agir (...) e não uma coisa que
poderia ser assim chamada"[44]. Quer dizer, a vontade que quer das Gute quer apenas uma forma de agir, uma forma específica para
a ação, e não um objeto empírico privilegiado. A forma já é o objeto para a vontade livre. Ou, como nos diz Lacan:
"a forma desta lei é também sua única substância "[45]. E de qual forma trata-se aqui? Nós sabemos que a encontramos
no conteúdo da máxima moral: "Age de tal maneira que a máxima da tua
vontade possa sempre valer como princípio de uma legislação universal".
Nós estamos aqui diante de uma pura forma vazia e universalizante, forma que
não diz nada sobre as ações específicas legítimas, já que ela não enuncia
nenhuma norma. "A lei", diz Kant, "não pode indicar de maneira
precisa como e em que medida deve ser realizada a ação visando o fim que é ao
mesmo tempo dever""[46].
O que não invalida o empreendimento moral kantiano, já que o contentamento
próprio à vontade livre vem da determinação desta vontade pela forma da máxima moral. Aqui, nós podemos compreender porque Lacan afirmou que:
"A lei moral não é outra coisa que o desejo em estado puro""[47].
A operação que Lacan tem em vista consiste em aproximar os conceitos de vontade livre e de desejo puro. Cada um destes dois dispositivos indica uma
inadequação radical entre o desejo do sujeito e a satisfação prometida pelos
objetos empíricos. Enquanto Kant critica o desejo
aprisionado aos grilhões do egoísmo e do amor de si, Lacan desenvolve uma vasta
análise a respeito da necessidade de criticar a alienação do desejo na lógica
narcísica do Imaginário. Nestes dois casos, o sujeito só pode ser reconhecido
como sujeito a partir do momento em que ele assume sua identificação com uma
Lei que é pura forma vazia, desprovida de conteúdo positivo. No caso de Kant,
trata-se da Lei moral. No caso de Lacan, nós temos a Lei fálica e paterna. Nós
estamos diante de dois procedimentos simétricos de abertura à realização de um
campo transcendental de reconhecimento intersubjetivo através da identificação
do desejo à Lei. Das Ding, das Gute e o gozo para
além do prazer Tais simetrias não são um acaso. Tanto Lacan quanto Kant
definem o sujeito a partir de uma função transcendental e procuram pensar as
consequências deste encaminhamento na dimensão da pragmática (mesmo que no caso
de Lacan, tenhamos uma noção 'ampla' de pragmática na qual ética, erótica e
estética se misturam). A transcendentalidade aparece na dimensão prática como
resistência à tentativa de explicar a totalidade da racionalidade da praxis
através de argumentos utilitaristas. Kant é claro na recusa em confundir o bom
e o útil[48]. Ele
chega a sublinhar o sentimento de dor que das
Gute produz, já que o sujeito deve sacrificar a procura incondicional ao
bem-estar, à felicidade e deve humilhar seu amor-próprio. Lacan, por sua vez,
não permite que a ética da psicanálise se transforme em uma melhor maneira de
organizar o service des biens com seu
princípio utilitarista. Tanto o filósofo alemão quanto o psicanalista
parisiense percebem, no verdadeiro ato moral, a afirmação de uma satisfação
para além do princípio do prazer. No entanto, esta determinação transcendental do ato não pode
ter apenas uma definição negativa como aquilo que resiste aos argumentos utilitaristas. Ela deve também ter uma definição
positiva enquanto ato feito por amor à
Lei. Desta forma, Kant promete uma reconciliação através da determinação
perfeita da vontade pela Lei. Momento no qual a vontade seria Logos puro[49].
Das Gute se confunde aqui com o amor
pela Lei, o que permite a Kant reintroduzir o conceito aristotélico de Soberano Bem enquanto síntese entre a
virtude e a felicidade. Síntese que produziria um: "agradável gozo da vida
(Lebensgenuss) e que no entanto é
puramente moral"[50].
Um gozo próprio ao contentamento de si (Selbstzufriedenheit)
vindo do respeito à Lei aparece no horizonte regulador do Soberano Bem.
Guardemos esta fórmula: a conformação
perfeita da vontade à Lei promete um gozo para além do prazer. E Lacan? Nós sabemos que ele também está à procura de um gozo
perdido, gozo para além do princípio do prazer. Se formos ao Seminário VII, nós
o veremos procurando tal gozo através de um questionamento sobre o verdadeiro
estatuto da distinção freudiana entre o princípio do prazer e o princípio de
realidade. Devido ao não-realismo precoce de suas concepções, Lacan já tinha
criticado a pretensão epistemológica do princípio de realidade[51].
Mas aqui ele situa a distinção no plano ético. Pois reconhecer a distinção é
reconhecer a existência de um Real que impulsiona a experiência humana a ir
para além do princípio do prazer. Este Real será designado por
Lacan como das
Ding. Um conceito que o psicanalista acreditava ser simétrico ao das Gute kantiano. Lacan irá encontrar das
Ding em um manuscrito de Freud, Projeto
para uma psicologia científica. Após o Seminário VII, das Ding vai praticamente desaparecer dos textos lacanianos, já
que, de uma certa maneira, sua função será absorvido pelo objeto petit a[52].
O que irá complicar radicalmente a distinção entre fantasma e Real. Se retornarmos a Freud, veremos que o movimento próprio ao
desejo é pensado através da repetição
alucinatória de experiências primeiras de satisfação. Estas primeiras
experiências deixam imagens mnésicas de satisfação no
sistema psíquico. Quando um estado de tensão ou de desejo reaparece, o sistema
psíquico atualiza de uma maneira automática tais imagens, sem saber se o objeto
correspondente está ou não está efetivamente presente. A fim de não confundir
percepção e alucinação, faz-se necessária a presença de um princípio de
realidade. No Projeto, Freud fala da
necessidade de um índice de realidade
(Realitätszeichen) vindo da percepção
de um objeto no mundo exterior. O fator complicador é que Freud sabe como a articulação entre
a percepção de um objeto no mundo exterior e a imagem mnésica de satisfação
pressupõe uma possibilidade de julgamento (Urteil)
feito pelo eu. A estrutura sintática do julgamento vai permitir ao eu
desenvolver operações mais complexas do que a simples comparação biunívoca. Por
exemplo, ele poderá aproximar o objeto e a imagem através da divisão sintática
entre sujeito e predicado. Se um objeto é apenas parcialmente semelhante à imagem mnésica, o eu poderá julgar que as
diferenças dizem respeito aos predicados, aos atributos, ou seja, dizem respeito
a acidentes, e não ao núcleo do objeto, que aparece no sujeito proposicional.
Isto permite ao eu estabelecer uma relação de identidade a partir do sujeito
proposicional e submeter a realidade ao prazer. A divisão entre percepção e
alucinação readvém fluída. Mas há um segundo tipo
de caso; este é o que interessa realmente a Lacan. Em certas situações pode
surgir: "uma percepção que não se harmoniza de maneira alguma com a imagem
mnemônica desejada"[53].
No Projeto, Freud a introduz através
do chamado complexo do semelhante ou, ainda, do humano-ao-lado
(Komplex des Nebenmensch),
quer dizer, a primeira experiência na qual o objeto vindo do exterior é um
semelhante, "um objeto da mesma ordem deste que trouxe ao sujeito sua
primeira satisfação (e também seu primeiro desprazer) "[54],
quer dizer, a mãe. O que acontece quando a criança é diante de um semelhante
pela primeira vez? Aqui, nós vemos uma inversão em relação ao exemplo anterior.
O eu divide o objeto, mas é o sujeito da proposição que continua opaco. Freud
diz que ele continua unido como coisa (als
Ding beisammenbleibt); isto enquanto os atributos, os predicados, serão
compreendidos e transformados em representações (Vorstellung) mnésicas. Esta articulação é
extremamente importante pois, como nos assinala Lacan, trata-se de uma:
"fórmula totalmente surpreendente na medida que ela articula fortemente o
ao-lado e a semelhança, a separação e a identidade"[55].
Quando a criança está diante de um semelhante, o eu inscreve
no interior do sistema psíquico tudo o que é familiar: os traços do rosto do
outro, os movimentos do corpo etc. Tudo isto transforma-se em um complexo de
representações. Mas há qualquer Coisa que continua inassimilável à
representação, inassimilável à imagem e que no entanto aparece na posição gramatical
do sujeito do julgamento. Trata-se da irredutível estranheza do próximo, a
mesma irredutibilidade que aparecerá mais tarde em Freud sob o conceito de das Unheimliche e que indica, entre outras coisas, a angústia
vinda da percepção do duplo. Angústia que nos lembra como a verdadeira
alteridade vem daquilo que nos é mais familiar, já que ela embaralha a divisão
entre diferença e identidade, entre próximo e distante, entre eu e outro[56]. Lacan articula o Projeto ao texto freudiano sobre A
negação (Die Verneinung) afim de
indicar como das Ding não é outra coisa que o
que foi forcluído (verworfen)
pelo Eu-prazer (Lust-Ich)
através de um julgamento de atribuição. Lembremo-nos que, através de um
julgamento de atribuição, o eu procurava expulsar para fora de si o Real
(sobretudo o real das monções pulsionais) que rompia
com o princípio de constância no plano das excitações do aparelho psíquico. Tal
expulsão permitia o desenvolvimento das operações primordiais de simbolização que formarão o sistema de representação significante. Aqui, a astúcia de Lacan,
mobilizada para aproximar sua construção metapsicológica
da estratégia kantiana de determinação de uma vontade moral, consistia em
mostrar como há um desejo que sempre procura alcançar das Ding. Trata-se de um desejo que quer a transgressão de
um gozo para além do princípio do prazer, já que alcançar das Ding significa necessariamente aniquilar o sistema de
determinação fixa de identidades e de diferenças que funda o eu. E a
aniquilação da ilusão de identidade própria ao eu só pode produzir a angústia
da dissolução. Este desejo é nosso bem conhecido desejo puro, que tem agora um objeto próprio a seu estatuto
transcendental[57]. Mas
sublinhemos que o preço pago pela aproximação entre a psicanálise e a
problemática kantiana é um certo distanciamento do encaminhamento freudiano
inicial. No Projeto, das Ding está mais
próximo da irredutibilidade do sensível ao
pensamento fantasmático do que desta irredutibilidade do transcendental à inscrição
fenomenal que Lacan parece tentar sustentar, ao aproximar das Ding e das Gute. Para terminar, notemos como a temático de das Ding se liga ao problema do
reconhecimento. Das Ding apareceu em
Freud como o limite ao reconhecimento do outro já que se trata da manifestação
da negatividade própria à alteridade[58].
Em Lacan, ele continua a desempenhar este papel. A Lei não nos diz como
alcançar de maneira positiva o gozo de das
Ding. Ao contrário, ele é inscrição da ausência da Coisa. A aposta da Lei
lacaniana consiste em transformar a alteridade de das Ding em negatividade inscrita no interior do sistema simbólico.
O que nos explica afirmações como: “No final das contas, é concebível
que os termos de das Ding devem apresentar-se
como trama significante pura, como máxima
universal, como a coisa mais desprovida de relações ao indivíduo”[59].
Mas esta promessa de reconciliação entre Lei e objeto
do desejo puro não vai mais funcionar e será aos poucos abandonada por Lacan.
Mesmo o conceito de desejo puro sofrerá um processo de relativização em prol da
recuperação do conceito de pulsão (Trieb).
O que nos permite interrogarmos as coordenadas deste fracasso. Notemos primeiro que, se a trama significante
pura podia apresentar os termos de das Ding
era porque haveria uma maneira de simbolizar, através da negatividade
transcendental do significante puro, o que foi verworfen como
real. Aqui, repete um impasse próprio às articulações entre real e simbólico no
primeiro Lacan. Mesmo se aceitamos que das Ding é o que, do real, padece (pâtit) do significante, mesmo se aceitamos
que a Lei não fornece enunciado positivo algum sobre a maneira de alcançar das
Ding, não podemos esquecer que das Ding é um limite pressuposto pela ação do significante e, enquanto limite do significante,
sua negatividade é inscrita no interior da Lei do sujeito através de uma
inversão que nos lembra a dialética do limite (Granze) e da borda (Schranke) na
lógica hegeliana do ser. No caso de Lacan, esta inversão pode seguir duas
estratégias diferentes. Se a Lei resta uma pura forma transcedental
que não diz nada sobre o conteúdo empírico adequado à ação, então é possível
reconciliar Lei e das Ding. Quer dizer, para
que a negatividade de das Ding seja inscrita
na Lei : “é necessário suportar o lugar vazio ao qual é chamado este significante [o Falo] que só pode ser ao anular todos os
outros"[60]. É
necessário que o desejo se vincule ao significante
puro da Lei e que ele deseje a pura forma da Lei[61].
Como nós veremos, esta estratégia vai produzir neessariamente
um impasse que levará Lacan a revisar sua clínica analítica. Mas se a Lei assume uma faticidade
e prescreve interdições superegóicas, então nós
entraremos em um infinito ruim que é bem ilustrado através da apropriação lacaniana do dito de São Paulo: “A Lei é a Coisa?
Certamente que não. No entanto, eu não teria conhecimento da Coisa se não fosse
pela Lei. Eu não teria idéia de cobiçar se a Lei não tivesse dito: Não
cobiçarás (...) sem a Lei, a Coisa é morta"[62].
Quer dizer, quando a Lei diz o que devemos ou não
devemos fazer (Não cobiçarás), ela produz uma má dialética entre desejo
e Lei. Pois ela produz situações semelhantes a um neurótico que precisa de
correntes exatamente para poder quebrá-las. A Lei nomeia das Ding como o lugar marcada pela interdição, como no caso
da nomeação de das Ding como a mãe, o que nos
explica porque Lacan afirma que: “É devido à lei nos proivir
de ficar coma mãe que ela nos impõe desejá-la, pois, no final das coisas, a mãe
não é em si o objeto mais desejável”[63].
Neste sentido, Lacan pode dizer que “desejamos através da proibição”. Um modo
do desejo que, no fim, só pode produzir o desejo de morte, já que o desejo
transforma-se pois em um puro desejo histérico de destruição da Lei [64].. Mas é o primeiro impasse que nos interessa, já que ele
obrigará Lacan reformular radicalmente o programa de racionalidade da cura
analítica. A armadilha sadeana Eu
gostaria de fazer aqui um curto-circuíto. Vamos
deixar de lado por instante esta questão sobre a Lei, das Ding e das Gute. Vou
tentar resolver o nó da questão através de um desvio. Trata-se de um desvio
através de Sade, até porque, aos olhos de Lacan, Sade traz a verdade da razão
prática kantiana. Mas o que significa fazer, neste
contexto, uma comparação entre Kant e Sade? Minha hipótese consiste em afirmar
que, longe de limitar-se a dar uma dignidade moral ao empreendimento sadeano, o
objetivo maior de Lacan consistia em demonstrar como a Lei moral era incapaz de
anular o desafio do discurso perverso[65].
Quer dizer, para o psicanalista, é possível ser perverso e kantiano ao mesmo
tempo. De outro lado, se é verdade que Kant aparece neste contexto com um duplo
especular de Lacan, então Sade deverá também trazer a verdade de Lacan, ou ao
menos da Lei lacaniana, já que o problema da perversão vai colocar em xeque uma
racionalidade analítica fundamentada no reconhecimento do desejo puro através
da pura forma da Lei. Sade representa um desafio à praxis analítica de Lacan.
Vejamos isto com mais calma. Se Kant soubesse que no século XX
sua filosofia prática encontraria críticos que a acusariam de não ser capaz de
responder à perversão, ele teria certamente achado isto, no mínimo, cômico.
Pois Kant concebera uma réplica possível a críticas desta natureza. Para ele, o
ato de transgredir a Lei já demonstrava como o perverso aceitava a realidade
objetiva de uma lei: "que ele reconhece o prestígio ao
transgredi-la""[66].
Quer dizer, ao transgredir eu reconheço a
priori a presença da Lei em mim mesmo. Eu apenas não sou capaz de me
liberar da cadeia do particularismo do mundo sensível. O desejo de transgressão
apenas funciona como prova da universalidade da Lei. Infelizmente
para Kant, o argumento é falho. A natureza do desafio sadeano, por exemplo, é
de uma ordem mais complexa. Sua perversão também não consiste na hipocrisia ou
na má-fé de esconder interesses particulares através da conformação da ação à
forma da Lei. Quinze anos antes do texto lacaniano, Adorno já havia mostrado
como os personagens de Sade eram impulsionados pela obediência cega a uma Lei
moral estruturalmente idêntica ao imperativo categórico kantiano. O que
permitia a Adorno dizer que, neste sentido: ""Juliette não encarna
nem a libido não sublimada, nem a libido regredida, mas o gosto intelectual
pela regressão, amor intellectualis
diaboli, o prazer de derrotar a civilização com suas próprias armas"[67].
Juliette não está acorrentada ao particularismo da patologia de seus
interesses; ela também age por amor à
Lei. Ela apenas demonstra
como : “mesmo lá, na perversão, onde o desejo apareceria como aquilo que
faz a lei, quer dizer, como o que subverte a lei, ele é, no fundo, o suporte de
uma lei” [68]. Mas como esta perversão
através da estrita obediência à Lei é possível? Primeiramente, Kant e Sade partilham uma noção de Universal
fundada através da mesma rejeição radical do patológico. Ou seja, através da
mesma desconsideração pelo sensível e pela resistência do objeto[69].
Como nos afirma Lacan: "Se eliminarmos da moral todo elemento de
sentimento, em última instância o mundo sadista é concebível"[70].
Pois Sade também está à procura de uma purificação da vontade que a libere de
todo conteúdo empírico e patológico[71].
de onde se segue, por exemplo, o conselho do carrasco Dolmancé à vítima
Eugénie, na Filosofia na alcova:
"todos os homens, todas as mulheres se assemelham: não há em absoluto amor
que resista aos efeitos de uma reflexão sã”[72].
Uma indiferença em relação ao objeto que pressupõe a despersonalização e o
abandono do princípio de prazer. Este é o sentido de um outro conselho de
Dolmancé à Eugénie: "que ela chegue a fazer, se isto é exigido, o
sacrifício de seus gostos e de suas afeições"[73].
Por outro lado, tal incondicionalidade e indiferenciação do desejo sadeano em
relação ao objeto empírico nos leva a uma máxima moral que tem pretensões
universais análogas ao imperativo categórico kantiano. Trata-se do direito ao
gozo do corpo do outro: Sade dirá que: "todos os homens tem um direito de
gozo igual sobre todas as mulheres", isto sem esquecer de completar
afirmando que, naquilo que concerne às mulheres: "quero que o gozo de todos
os sexos e de todas as partes de seus corpos lhes seja permitido, tal como aos
homens”[74].
Chegamos assim à fórmula forjada por Lacan: "Empresta-me a parte de seu
corpo que pode me satisfazer um instante e goze, se você quiser, desta parte do
meu que pode te ser agradável"[75].
Lacan não se limita a afirmar que
tanto Sade quanto Kant são filhos do esclarecimento em matéria de moral. Para a
psicanálise, Sade revela o que estava recalcado na experiência moral kantiana. Neste ponto, Lacan faz duas
considerações. Primeiro, ele afirma que: "a máxima sadeana é, por ser
pronunciada pela boca do Outro, mais honesta do que a voz do interior, já que
ela desmascara a clivagem do sujeito, normalmente escamoteada"[76].
Segundo, Lacan fala do desvelamento deste:
"terceiro termo que, nas palavras de Lacan, estaria ausente da experiência
moral. Trata-se do objeto, o qual, a fim de garanti-lo para a vontade no
cumprimento da Lei, ele é obrigado a remeter ao impensável da Coisa-em-si
"[77].
O que estas colocações podem querer significar? Ato e divisão subjetiva Quando Lacan insiste na maneira como
Sade mostra a voz da consciência que enuncia a Lei moral vir da 'boca do
Outro', ele pensa principalmente em uma certa estrutura triádica própria aos
romances sadeanos. Vemos sempre três personagens centrais com papéis bem
definidos. Na Filosofia na Alcova, por
exemplo, temos: Madame de Saint-Ange (que representa e enuncia a Lei), Dolmancé
(o carrasco que deve executar a Lei de maneira apática, sem permitir-se ser guiado pelo prazer) e Eugénie (a vítima
que deve ser educada, assujeitada à Lei e arrancada do domínio do desejo
patológico)[78].
Para Lacan, com este minueto a três, Sade coloca em cena a divisão subjetiva
própria a toda experiência moral. Madame de Saint-Ange é o Outro que aparece
como representante da Lei. Eugénie é o eu patológico que recebe a imposição da
Lei e Dolmancé é o termo médio cujo estatuto
descobriremos logo em seguida. Notemos que, ao colocar em cena a divisão
subjetiva fragmentada em três personagens, Sade evita inseri-la no interior de
um personagem. Isto mostra a maneira com que: "o sadismo rejeita ao Outro
a dor de existir"[79]. À primeira vista, Kant também não descarta a idéia de uma
divisão subjetiva no ato de enunciação do imperativo categórico. Ou seja,
aparentemente ele não escamoteia a clivagem do sujeito. Basta irmos ao capítulo
da Metafísica dos costumes que leva o
título sintomático de: "Do dever do homem em relação a si-mesmo como juiz
natural de si mesmo". Kant fala aí de um tribunal interior inscrito no homem e no qual nossa conduta é
julgada pela voz terrível da consciência moral. Ele chega a afirmar que:
"a consciência moral do homem, a propósito de todos seus deveres, deve
necessariamente conceber, como juiz de suas ações, um outro (a saber, o homem em geral). Dito isto, este outro pode muito
bem ser tanto uma pessoa real quanto uma pessoa ideal que a razão se dá"[80].
Podemos escutar aqui ecos da divisão lacaniana entre sujeito do enunciado e
sujeito da enunciação. Mas o outro, segundo Kant, não é
exatamente o Outro lacaniano. O outro, segundo Kant,
é apenas uma dobra da consciência, na medida que a divisão a qual Kant faz
alusão situa-se entre a consciência moral
e a consciência empírica. O Outro
lacaniano, por sua vez, é inconsciente. Isto implica em várias consequências.
Por exemplo, em Lacan a exterioridade da Lei ganha a forma de uma alteridade radical da Lei. Eis algo de inadmissível para Kant, já que isto significaria
assumir uma alteridade radical da consciência em relação à voz da razão. Kant
seria então obrigado a reconhecer uma opacidade fundamental entre o princípio
transcendental do imperativo e sua realização empírica. O que ele está longe de
aceitar, pois isto o levaria a assumir a impossibilidade da consciência julgar
de forma a priori a ação. Ora, para ele: "Julgar o que deve
ser feito partir desta lei [a Lei moral], não deve ser algo de uma dificuldade
tal que o entendimento mais ordinário e menos exercido não saiba resolver
facilmente, mesmo sem nenhuma experiência
do mundo "[81].
É verdade que Kant reconhece um limite à consciência
cognitiva na dimensão prática devido à impossibilidade radical de conhecermos a realidade da idéia de
liberdade e, consequentemente, de conhecermos a realidade de das Gute, já que a consciência da
liberdade não é fundada em intuição alguma. O que nos leva a aceitar a Lei
moral como um fato (faktum) da razão.
E se não podemos conhecer a realidade objetiva da liberdade, então é
impossível: "descobrir na experiência um exemplo que demonstre que esta
lei foi seguida"[82]. Mas isto não coloca problemas a Kant, já que, com ele, nós
sempre sabemos em que condições um ato deve ser realizado para que ele seja o
resultado de uma vontade livre. Nosso não-saber incide sobre a presença efetiva
de tais condições. Em suma, eu não saberei jamais se digo a verdade por medo
das consequências da descoberta da mentira ou por amor à Lei. Mas eu sempre sei
que, em qualquer circunstância, contar mentiras é contra a Lei moral. Mesmo que não exista transparência entre a
intencionalidade moral e o conteúdo do ato, resta um princípio de transparência
entre a intencionalidade moral e a forma do ato. Eu sempre saberei como devo agir. Não há indecibilidade no
interior da praxis moral. Como nos demonstrou Adorno, Kant crê que a
determinação transcendental e a realização empírica da Lei moral estão
submetidas a um princípio de identidade e, por que não dizer de maneira mais
clara, a um princípio de imanência[83].
Isto demonstra que, para Lacan, o verdadeiro erro de Kant teria consistido em
acreditar que a pura forma do ato determinaria a priori sua significação. A significação do ato apresentar-se-ia
como simples indexação transcendental da particularidade do caso; o que
esvaziaria toda dignidade ontológica do sensível no interior da experiência
moral. Aqui, o procedimento
transcendental parecia suficiente para dar significação à pragmática, até
porque haveria entre das Gute e a Lei
uma relação de completa imanência. Neste ponto, devemos sublinhar a maneira com que Lacan
crê que a anatomia do ato kantiano é, na verdade, próxima do ato sadeano. Para ele, Kant e Sade defendem uma imanência absoluta entre a Lei moral e a
consciência. Dolmancé também crê que não há nada mais
fácil do que julgar o que devemos fazer a partir da Lei do gozo. Esta Lei está:
"escrita no coração de todos os homens, e basta interrogarmos este coração
para desvendarmos o impulso"[84].
É neste sentido que devemos compreender a afirmação de Deleuze:
“Quando Sade invoca uma Razão analítica universal
para explicar o mais particular no desejo, não devemos ver aí a simples marca
de sua dívida para com o século XVIII. É necessário que a particularidade, e o
delírio correspondente, sejam também uma Idéia da razão pura”[85].
Como não ver aqui o reconhecimento de uma princípio de imanência entre Lei e
ato? A única diferença em relação a Kant
é que, em Sade, o verdadeiro Outro é a Natureza. É a
Natureza que goza através dos atos do libertino e da libertina. Dela vem o gozo do Outro. Digamos que a razão
prática em Sade é uma razão naturalizada e que a
Filosofia na Alcova é uma Filosofia da Natureza. O que nos explica outra
afirmação interessante de Deleuze: “Com Sade, aparece um estranho spinozismo
– um naturalismo e um mecanicismo penetrados de
espírito matemático”[86].
Como nos dirá Sade: “Nada é amedrontador
em matéria de libertinagem, pois tudo o que a libertinagem inspira é igualmente
inspirado pela natureza "[87].
Uma natureza que esconde, para-além do conceito de
movimento vital onde articulam-se conjuntamente
criação e destruição, uma natureza primeira concebida como poder
absoluto do negativo, como pulsão eterna de
destruição. Uma natureza primeira que aparece sob a figura do Ser-supremo-na-maldade. O que nos permite dizer que a transcendentalidade
de Kant e o materialismo de Sade,
a priori divergentes,
encontram-se na mesma crença da imanência entre a razão e a consciência. Uma
imanência que restringe as consequências da divisão
subjetiva. Dolmancé tem a Lei da Natureza em seu
coração; o mesmo coração que porta a Lei moral do sujeito kantiano. Assim,
devemos colocar um limite à afirmação lacaniana sobre
a máxima sadeana como desvelamento
da clivagem do sujeito, normalmente escamoteada. O desvelamento
apresenta-se ao libertino e à libertina, cuja conduta será submetida à certeza
subjetiva advinda da pressuposição de uma princípio de imanência entre desejo
puro e Lei. Para que a clivagem possa ser reconhecida, faz-se necessário um
trabalho psicanalítico de interpretação. Aos olhos de
Lacan, a vantagem de Sade sobre Kant
consistirá no fato de que Sade nos fornece a configuração
exata da operação de construção de tal princípio de identidade. Nós sabemos como esta operação passa pela
identificação do sujeito ao objeto do gozo do Outro da Lei. O melhor exemplo
desta estrutura não é outro que Dolmancé, o agente sadeano executor do mandamento da Lei. Eu tinha notado
anteriormente que ele era o termo médio entre o eu empírico da vítima e o Outro
da Lei. Ele executa de maneira apática a Lei sem se deixar guiar por impulso
empírico algum. Uma apatia que aparece como obediência aos desígnios deste
representante do Outro da Lei que é Madame de Saint-Ange: “eu me oponho a este
efervescência, Dolmancé, comporte-se”, ela dirá, “o
derramamento desta semente diminuirá a atividade de seu espírito animal e irá freiar o calor de suas dissertações"[88].
Quer dizer, trata-se de negar a efervescência do prazer sensível ligado ao eu
para que o calor do poder demonstrativo da Lei se faça sentir. Considerações desta natureza permitirão a Lacan
afirmar, a propósito de Dolmancé, que: "sua presença, no limite, resume-se
a ser um instrumento""[89]
do gozo do Outro. Lacan falará também de um “agente aparente [que] se congela na rigidez do objeto” [90],
de um “fetiche negro” a fim de caracterizar tal posição. A apatia aqui é
negação radical do desejo ainda ligado às escolhas particulares de objeto. Deleuze falará da apatia sadeana
como: “o prazer de negar a natureza em mim e fora de mim, e de negar o próprio Eu”. O verdadeiro carrasco sadeano é pois aquele que primeiramente negou seu eu a fim
de transformar-se em puro instrumento da Lei.
Assim, Dolmancé, o
verdadeiro sujeito da experiência moral, é na verdade o objeto do gozo do
Outro. Ele identificou-se com o objeto, passando por um destituição subjetiva a
fim de sustentar a consistência deste Outro desejante
que é a Natureza. Eu sublinho a idéia de ‘destituição subjetiva’ porque quando Dolmancé fala, ele acredita que é a Lei da Natureza que
fala através dele; isto graças à negação que reduz seu eu empírico ao silêncio.
Quando ele age e goza, é a Lei que age e goza através dele. Em suma, ele se
coloca como um particular negado, um objeto que se nega a fim de
poder encarnar, de maneira invertida, o Universal da Lei. Toda inadequação e
toda resistência que poderia se manifestar na relação de identificação entre o sujeito
e a Lei deverá ser negada. Não há nada na ação que escape às coordenadas de uma
economia fantasmática de gozo. Ato de costurar um
princípio de imanência que nos explica como o perverso pode ser: “um singular
auxiliar de Deus”[91]. É
possível julgar o ato? Não há nada mais distante desta imanência do que a noção
lacaniana de ato. E não é por acaso
que ele dirá que: "o sujeito nunca reconhece o ato em seu verdadeiro
alcance original, mesmo que ele seja capaz de ter cometido tal ato"[92].
Há uma opacidade objetiva
do ato, pois o simples recurso à Lei (mesmo que se trate da Lei da ética do
desejo) não nos permite apreendermos seus efeitos e seu produto. A faticidade da realidade sensível na qual o ato se efetiva
não permite a indexação através da Lei, algo que Adorno também sabia[93].
Nós podemos pois completar : “O sujeito não reconhece jamais o verdadeiro
ato através da Lei”. Lembremo-nos como, após Kant
com Sade, o verdadeiro ato, ou seja, esta que nos
leva às vias do gozo feminino, da experiência do corpo para-além
da imagem, da sublimação, da experiência do Real e da pulsão,
será sempre aquilo que excede a Lei fálica e paterna. Trata-se de um ato para-além do reconhecimento intersubjetivo
prometido pela Lei, já que ele nos permite atravessar a Lei. Este ato
expõe a necessidade da clínica pensar novos procedimentos de subjetivação que
não se reduzam à simbolização do desejo através do
Falo e do Nome-do-Pai. Esta opacidade irredutível inscrita na anatomia do ato
será fundamental para os desdobramentos da clínica analítica. Nós sabemos que,
a partir de Kant com Sade,
Lacan verá a psicanálise não exatamente como uma terapêutica, mas como uma ética
com consequências clínicas. Mas, no caso de
Lacan, fundar uma clínica da subjetividade a partir de considerações de ordem
ética só é uma operação viável se admitirmos a possibilidade de julgar nossas
ações a partir da Lei da ética do desejo, esta Lei que nos manda não ceder
em nosso desejo. Trata-se pois de saber se é possível avaliar nossas ações
a partir do julgamento: “Agistes em conformidade ao desejo que vos habita ? ”[94].
Mas o que
significa sustentar uma relação de conformidade entre o desejo e o ato,
neste contexto? A ética do desejo teria seu fundamento em um princípio
regulador de identidade e de adequação entre a Lei do desejo e a dimensão
da praxis do sujeito? Lembremo-nos que, se a Lei do
desejo encontra sua melhor exposição na transcendentalidade
da Lei fálica, já que o Falo é a “presença real”[95]
da negatividade do desejo em sua relação aos objetos
empíricos, então nossa questão é, no fundo: como indexar a efetividade através
de um dispositivo transcendental de justificação. Questão kantiana, nos parece.
Mas, contrariamente ao que poderíamos acreditar, é neste ponto que o pensamento
de Lacan está mais perto da tradição da dialética hegeliana. O
problema lacaniano da ação feita em conformidade à
Lei do desejo nos leva à problemática hegeliana do Mal e do seu perdão:
figura maior da última parte da Femonenologia
do espírito. Aqui, a consci6encia que age deve também responder au mandamento: “Agistes em conformidade à Lei que vos
habita?”. Mas a resposta da consciência que age era necessariamente negativa.
Para Hegel, em um certo sentido, nós somos sempre culpados desde que agimos
e damos uma determinação particular à pura forma da Lei. “nenhum ato (Handlung) pode escapar a tal julgamento, pois o
dever em nome do dever, esta finalidade pura (dieser
reine Zweck), é o inefetivo"[96].
Neste sentido, para Hegel, a tentativa de indexar a efetividade através de um
dispositivo transcedental de justificação era
impossível. Nunca podemos agir em conformidade à Lei. Mas
o que dizer de uma culpabilidade que obedece a tais coordenadas ? Há algum
sentido em culpabilizar o sujeito por algo que é
marcado pelo selo do impossível? Notemos
que estamos perto de uma problemática lacaniana, já
que podemos nos perguntar também sobre o sentido de julgar a ação a partir de
uma conformidade impossível entre ato e Lei do desejo, salvo na
perversão ou graças ao retorno ao imediato da certeza subjetiva. Devemos pois
abandonar completamente o mandamento de não ceder no
desejo? Neste contexto, o recurso a Hegel é extremamente útil
para compreender a ética do desejo sem cair em um impasse. Pois, nestes dois
casos, o julgamento ético é composto por um movimento
duplo que mostra como o sujeito deve assumir a Lei e superá-la colocando
um ato para-além da Lei. Retornemos a este momento da Fenomenologia do
Espírito no qual a consciência que age: “confessa-se abertamente e espera
da mesma maneira que o outro [Andre- na
verdade, trata-se do Outro da Lei] - já que na ação (Tat)
ele colocou-se no mesmo plano que ela - repita também seu discurso [Rede –
trata-se do discurso da confissão], e nele exprima sua igualdade com ela "[97].
Esta confissão (Geständnis)
da consciência é um modo de construção de uma reconciliação possível com a
efetividade. (Hegel fala de anerkennende
Dasein eintreten werde :
algo como “o ser-aí entrando no momento do
reconhecimento”). Há dois movimentos aqui, um duplo movimento que permite
a resolução do impasse. Primeiramente, confessar-se signfica
ser: “particularidade abolida” e reconhecer a Lei em seu coração. É graças à
confissão que o sujeito pode romper com toda imediaticidade
com a ção e por um princípio de transcendência que o
permite de se reconhecer como sujeito da Lei. Ele reconhece que sua ação é má
e, neste movimento, ele põe sua diferença em relação à ação. Mas pedir que a Lei repita, ela também, o discurso da
confissão um movimento totalmente
diferente do que o simples reconhecimento da não-identidade
entre Lei e ação. Na verdade, a consciência que age quer que a Lei reconheça a
racionalidade da não-conformidade da ação à matriz
transcendental de justificação, o que nos leva à via do reconhecimento da
opacidade radical do ato (opacidade, pois há um ‘resto patológico’ presente no ato que não é mais signo de
vínculo ao imediato[98]).
Neste sentido, é possível dizer que, para Hegel, o verdadeiro ato sempre
ultrapassa a matriz transcendental de significação determinada pela Lei. E se :
“as feridas do espírito curam-se sem deixar cicatrizes”[99],
é porque não há nada de mais conforme à Lei hegeliana que o reconhecimento da
necessidade de trair a Lei. Nós poderíamos dizer, com Lacan, que todo
ato comporta um fracasso (ratage) na sua
relação à Lei, o que nos explica porque: “o ato só se realiza ao fracassar
"[100].
Pois para não perverter a Lei, é necessário saber atravessá-la. Nós podemos entender esta anatomia do ato lacaniano através de seu comentário a respeito de Sygne de Coûfontaine, o
personagem central de O refém, de Paul Claudel.
Muito haveria a se dizer a respeito desta peça e de seus impasses éticos. Mas
sublinhemos apenas como a tragédia de Sygne segue a
maneira lacaniana de pensar o ato moral. A história de Claudel une
todos os elementos de uma escolha feita por alguém que atravessou a Lei. A fim
de salvar o Papa de ser entregue a seus inimigos, a devota Sygne
deve aceitar uma chantagem, casar-se com aquele que exterminou sua família e
anular um pacto de amor que a unia a seu primo, já que sua fé católica marca o
casamento com o selo da adesão ao dever do amor. Lacan sublinha como ceder a tal chantagem significa
renunciar a seu vínculo a esta Lei paterna da família na qual ele engajou toda
sua vida e que já era marcada com o signo do sacrifício. O que lava Lacan a
afirmar: “Lá onde a heroína antiga [Lacan pensa a Antígona]
é idêntica a seu destino, Atè, a esta
lei para ela divina que a sustenta em todas as provações, - é contra sua
vontade, contra tudo o que a determina, não em sua vida, mas em seu ser, que,
por um ato de liberdade, a outra heroina [Sygne] vai
contra tudo o que diz respeito a seu ser, até as raizes
mais íntimas "[101] Mas se a peça terminasse aí nós teríamos uma simples
submissão do sujeito à Lei transcendental da fé que relativiza
a centralidade da Lei paterna. Sygne
nega sua ligação a todo objeto patológico, a seu sangue e à terra. Mas isto
poderia ser compreendido como uma hipostase da Lei
que a leva a uma ética do sacrifício a fim de, na verdade, permitir-lhe
preservar a consistência fantasmática do lugar da
Causa. Não nos esqueçamos da justificação dada por Sygne
à racionalidade de seu ato: “Eu salvei o Pai dos homens”[102],
mesmo se, no fundo, ela sabe que este pai é um pai humilhado e, logo,
impossível de ser salvo. Uma afirmação que mostra a ligação de seu desejo à
Lei. Neste momento, a fé de Sygne na Causa é o objeto
a que suplementa a falta, a não-consistência da
Causa e de seus mandamentos[103].
O verdadeiro ato de Sygne pode ser
compreendido como uma negação desta negação produzida pela Lei. Ele é feito no
momento de sua morte, quando ela diz “não” e recusa perdoar seu marido e
renovar o dever de amor. Aqui, há um retorno ao sensível contra o primado da
Lei. Ela sabe que este “não” representa uma ruptura de seu engajamento com a
Lei, assim como representa a defesa de uma escolha patológica de objeto,
mesmo se ela é fundada no ódio, mais do que no amor. Neste sentido, Sygne faz um ato moral que não é suportado por Lei alguma,
um ato que não pode ser reconhecido no interior de um campo intersubjetivo.
Através da primeira negação, ela foi para além de toda imanência e imediaticidade de seu desejo a objetos patológicos. Mas
restava uma imanência entre o sujeito e a forma da Lei. Aqui, o verdadeiro ato
consiste na ruptura desta imanência através do retorno ao patológico. Mas
notemos que se trata de um patológico que não é suportado por matriz
transcendental alguma capaz de lhe fornecer coordenadas de sentido, nem por
vínculo fantasmático algum (já que todo imediato foi
apagado pelo primado da Lei posto através da primeira negação). Trata-se pois
de um patológico que se apresenta como opacidade radical: o mesmo estatuto do
patológico reconhecido pela Lei em Hegel. Tal como Hegel, o “não” dito por Sygne diante do padre que vai lhe dar a extrema unção é
demanda de reconhecimento da irredutibilidade do
sensível. Mas, também neste caso, a Lei continua muda. BibliografiaADORNO, Negative
Dialektik, Frankfurt, Suhrkamp,1975 ADORNO ET HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, BAAS, Le désir pur, Peteers:
Louvain, 1992, BLANCHOT,
Lautréamont et Sade, Paris, Minuit,
1949 BOURGEOIS,
Etudes hégéliennes: raison et
décision, Paris, PUF, 1992 CLAUDEL,
L'otage, Gallimard: Paris, 1972 DAVID-MÉNARD,
Les constructions de l'universel,
Paris, PUF, 1997, DELEUZE, Présentation de Sacher-Masoch, Paris, Minuit, 1967 DERRIDA,
La
carte postale: de Socrate à Freud et au-delà, Flammarion, Paris, 1980 FREUD, Gesammelte Werke, Frankfurt, Fischer
Taschenbuch, 1999 GUYOMARD,
La jouissance du tragique, Paris, Flammarion, 1998 HEGEL, Phänomenologie desGeistes,
Hamburg, Felix Meiner, 1988 KANT, Kants Gesammelte Schriften, Berlin:
Walter de Gruyter, 1969 KOJÈVE,
Alexandre, Introduction à la lecture de
Hegel, Paris, Seuil, LACAN, Autres Ecrits. Paris, Seuil, 2001 ___; Escritos, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1998 ___; Seminário I: Os
escritos técnicos de Freud, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar ___; Seminário II : O eu
na teoria de Freud e na técnica psicanalítica,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar ___; Seminário III: As
psicoses, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ___; Seminário IV : As
relações de objeto, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ___; Seminário VII: A
ética da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ___; Seminário VIII; A
transferência, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, ___; Séminaire
X: L’angoisse, não publicado ___; Seminário XI: Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ___; Séminaire
XIV: La logique du fantasme, não publicado ___; Séminaire
XVI: D’un Autre à l’autre, não publicado LÉVI-STRAUSS,
Claude, Introduction à l'oeuvre de Marcel Mauss, PUF: Paris, 1991 PETTIGREW et RAFFOUL, Disseminating Lacan, SUNY: New York, 1996, SADE, La philosophie dans le boudoir, Paris: Gallimard, 1975 SARTRE,
L’être et le néant, Paris, Seuil, 1943 ZUPANCIC, Ethics of the real, Verso: London, 2001 [1] ADORNO, Negative Dialektik, Frankfurt,
Suhrkamp, p. 261 [2] LACAN, Escritos., p. 279
(tradução modificada) [3] LACAN, ibidem,
p. 373 [4] LACAN, Seminário VIII, p. 19 [5] Ver, por exemplo, a maneira com que
o conceito de palavra plena retorna
no Seminário D'un discours qui ne serait
pas du semblant,
sessão de 10/03/71. [6] Como podemos deduzir da afirmação:"o lugar puro do analista, tal como podemos defiíí-lo em e pelo fantasma, seria o lugar do desejante puro " (LACAN, Seminário VIII, p.
432). É verdade que Lacan dirá mais tarde: "o desejo do analista não é um
desejo puro" (LACAN, Seminário XI, p. 247 - tradução modificada).
Mas esta mudança de estatuto do desejo puro só pode ser compreendida como
resultado da crítica lacaniana a Kant,
mais precisamente, como resultado da afirmação de que a Lei moral kantiana não
é outra coisa que o desejo em estado puro. [7] LACAN, Seminário II, p. 261 [8] LACAN, Seminário VII, p. 117 [9] KOJÈVE, Alexandre, Introduction à la lecture de Hegel, p. 12 [10] LACAN, Seminário VIII, p.
102. Poderíamos perguntar por que, ao invés de falar
em uma "permanência transcendental" do desejo, Lacan não falou
simplesmente em uma "transcendência" do desejo, seguindo aí a trilha
de Kojève. Lacan estaria confundindo transcendentalidade
e transcendência? O fato é que há uma certa duplicidade na determinação da
estrutura do desejo. Por um lado, o desejo puro transcende toda possibilidade
de realização fenomenal, já que ele é desprovido de objeto empírico e se
manifesta como pura negatividade. Mas, por outro, Lacan não se engaja em uma
espécie de 'gênese empírica' da negatividade do desejo (no que ele se
diferenciaria de Freud). Ao contrário, ele parece, em
vários momentos, mais interessado em defender uma certa dedução transcendental
do desejo. De onde se segue a possibilidade de falarmos em uma 'estrutura
transcendental' do desejo lacaniano, assim como de
sua transcendência.. [11] LACAN, Seminário II, p.
261.). [12] FREUD, Drei Abhanlungen zur Sexualtheorie, in Gesammelte Werke,Fischer Taschenbuch, Frankfurt,
1999, p. 129. [13] SARTRE, Jean-Paul, L’être et le néant, Paris, Seuil, 1943, p. 61 [14] Ver, por exemplo, GUYOMARD, Patrick, La jouissance du tragique, Paris,
Flammarion [15] Segundo a fórmula lacaniana: "É a ordem mesma na qual um amor ideal pode
se realizar - a instituição da falta na relação de objeto ". (LACAN, Seminário
IV, p. 157) [16] LACAN, Seminário II, p. 213 [17] LACAN, ibidem,
p. 285 [18] Basta seguir Lévi-Strauss
em sua afirmação que a resolução do problema da comunicação entre os sujeitos
passa pela: "apreensão (que só pode ser objetiva) das formas inconscientes
da atividade do espírito", já que a oposição entre o eu e o outro nos
levaria à incomunicabilidade se ela não pudesse:
"ser ultrapassada em um terreno, que também é um terreno onde o objetivo e
o subjetivo se encontram, nós queremos dizer no inconsciente [enquanto sistema
simbólico de leis]”(LÉVI-STRAUSS, Claude, Introduction à l'oeuvre de Marcel Mauss, p. XXXI) [19] É verdade que se trata de uma intersubjetividade estranha pois não-recíproca.
A Lei simbólica determina o sujeito sem possibilidade de um movimento inverso.
Mas é possível continuar falando em intersubjetividade
quando as relações recíprocas desaparecem? Lacan acreditava que sim, devido a
possibilidade de reconhecimento do sujeito na Lei. [20] LACAN, Escritos, p. 852.
Lembremo-nos, por exemplo, da afirmação canônica de Lacan: "A verdadeira
função do pai é unir, e não opor, um desejo à lei" (LACAN, ibidem. p. 824) [21] LACAN, idem, p. 827 [22]LACAN; Seminário III, p. 192 [23] Uma questão bem levantada por Borch-Jacobsen: « Faz
algum sentido tentar reestabelecer esta Lei [paterna
e fálica], como Lacan parece fazer, ao identificá-la
com a Lei do símbolo e da linguagem em geral? Ora, por outro lado, não
deveríamos finalmente admitir que ela foi absolutamente anulada? » (BORCH-JACOBSEN, The Oedipus Problem in Freud and Lacan in
PETTIGREW et RAFFOUL, Disseminating
Lacan, SUNY: New York, 1996, p. 312). [24] Graças a isto, Lacan
poderá afirmar, por exemplo que o Falo é: "a
chave do que é necessário saber para terminar uma análise" (LACAN, Escritos.,
p. 630) [25] Pois o Falo é o elemento
transcendental que tem por efeito guardar a presença:
"É o que torna possível e necessário, através de certas reordenações, a
integração do falocentrismo freudiano em uma semiolinguística saussureana
fundamentalmente fonocêntrica" (DERRIDA, La carte postale, Paris: Flammarion, 1980p. 506). [26] Cf. a fórmula: "O homem não é
se tê-lo "e "A mulher é sem tê-lo" [27] Segundo a definição de separaçào: "Esta função modifica-se, aqui, por uma parte retirada da falta pela falta, através da qual
o sujeito reencontra no desejo do Outro sua equivalência ao que ele é como
sujeito do inconsciente" (LACAN, Escritos., p. 842) [28] KANT, Kritik
der praktischen Vernunf in KantsWerke V,Walter
de Gruyter, Berlin, 1969, p. 25 [29] KANT, Grundlegung
zur Metaphysik der Sitten in KantsWerke IV, Walter de Gruyter, Berlin, 1969, p. 444 [30] KANT, Die
Metaphysik der Sitten in KantsWerke VI ,Walter
de Gruyter, Berlin, 1969, p. 400 [31] De onde se segue a afirmação um tanto quanto surpreendente: "O supereu, a consciência moral [Gewissen] que opera em seu interior, pode então se mostrar duro, cruel, inexorável em relação ao eu, que está sob sua guarda. O imperativo categórico de Kant é assim o herdeiro do complexo de Édipo" (FREUD, Die ökonomische Problem des Masochismus in Gesammelte Werke,Fischer Taschenbuch, Frankfurt, 1999, p.380). A afirmação perde um pouco do seu caráter surpreendente se aceitarmos, com David-Ménard, que: "a construção do conceito de universalidade, em Kant em todo caso, mas também em vários pensadores, é solidária de sua ligação à uma antropologia dos desejos e a uma análise muito particular e masculina da experiência de culpabilidade". (DAVID-MÉNARD, Les contructions de l'universel, PUF: Paris, 1997, p. 2). [32] KANT, Grundlegung,
p. 434 [33] Se Lacan
não fala muito sobre a temática do reino dos fins é sobretudo porque ele estuda
a Crítica da razão prática e deixa um
pouco de lado a Fundamentação da metafísica
dos costumes, onde esta questão encontra-se mais desenvolvida.. [34] LACAN,
Escritos., p. 227 [35] LACAN, Seminário VII, p. 192 [36] Une idée bien développé par DAVID-MÉNARD, Monique; Les constructions de l'Universel. [37] KANT, Grundlegung,
p. 441 [38] KANT, Kritik
der praktischen Vernunft, p. 21 [39] KANT, Die
Metaphysik der Sitten, p. 378. [40] KANT, Die
Metaphysik der Sitten, p. 307 [41] KANT, Kritik
der praktischen Vernunft, p. 60 [42] KANT, Grundlegung,
p. 435 [43] "Wohl ou Uebel designam apenas uma relação àquilo que em nosso
estado é agradável ou desagradável (...)Gute et Böse indicam sempre uma relação à vontade,
enquanto que ela é levada pela lei da
razão a fazer de alguma coisa seu objeto" (KANT, Kritik der praktischen Vernunft,
p. 60). Lacan notou claramente que: "a procura pelo bem seria um
impasse se ela não reencontrasse das Gute, o bem que é objeto da lei moral" (LACAN, Escritos.,
p. 766) [44] KANT, ibidem,
p. 60 [45] LACAN, ibidem.,
p. 770 [46] KANT, Die Metaphysik der Sitten,
p. 390 [47] LACAN, Seminário XI, p.
247, ou ainda: "A Lei moral não representaria o desejo no caso em que não
é mais o sujeito, mas o objeto [empírico] que está ausente?» (LACAN, Escritos, p. 780) [48] KANT, Kritik
der praktischen Vernunft, p. 59 [49] Cf. ADORNO, Negative Dialektik, p. 227. Não esqueço que, para
sustentar esta reconciliação possível, Kant coloca em
cena as Idéias reguladoras de imortalidade da alma, da existência de Deus e da
liberdade.. [50] KANT, Die
Metaphysik der Sitten, p. 485 [51] Ver, por exemplo, Para além do princípio do prazer in LACAN, Escritos, op. cit. [52] Esta passagem de das Ding ao objeto merece uma análise detalhada que,
infelizmente, não cabe neste artigo. Digamos apenas que, a partir dos anos 60,
Lacan irá operar um certo retorno ao
sensível e ao primado do objeto repleto de consequências para a clínica e, principalmente, para
a noção de Imaginário. É através de tal retorno que poderemos, por exemplo,
compreender o abandono progressivo do conceito de desejo puro em prol da rearticulação do conceito de pulsão. Neste contexto, a experiência
de alteridade responsável pela ruptura do narcisismo
fundamental não virá de um reconhecimento de si como função transcendental
(lógica à qual das Ding
pareceria estar ligada) mas de um reconhecimento de si na materialidade opaca
de um objeto que não é mais polo de projeçãoo narcísica (refiro-me à identificação do sujeito com o objet petit a, como
resto, no fim de análise). Mas isto é assunto
para um outro artigo. [53] FREUD, Entwurf einer Psychologie in Gesammelte
Werke,Fischer
Taschenbuch, Frankfurt, 1999, p. 426 [54] FREUD, :idem, p. 426 [55] LACAN, Séminaire
VII, p. 64 {O seminário VII, p. 68] [56] Lembremo-nos de como Freud joga com a ambivalência do termo heimlich: "o termo heimlich não é unívoco, mas ele pertence a dois
conjuntos de representações que, sem serem opostos, não deixam de ser
fortemente estrangeiros um ao outro: de um lado, o familiar, o confortável e,
de outro, o escondido, o dissimulado (...) Heimlich é pois uma palavra cuja significação evolui em direção a uma
ambivalência, até acabar por se confundir com o seu contrário unheimlich"
(FREUD, Das Unheimliche
in Gesammelte Werke, pp. 235-237) [57] No Seminário VII, Lacan ainda não estabeleceu uma distinção clara entre
desejo e pulsão. Isto o permite definir das Ding tanto: “o lugar dos Triebes”
(p. 138, na versão brasileira) quanto aquilo
que se revela na relação dialética do desejo e da Lei (p. 106) [58] "Esta análise de um complexo perceptivo foi qualificada de reconnaissance (erkennen), implica um julgamento
e termina com este último" (FREUD, Entwurf, p. 427) [59] LACAN, Séminaire VII, p. 68 {O seminário VII, p. 72] [60] LACAN, Séminaire VIII, p. 311, [O seminário VIII, p. 257] [61] Sigamos Zupancic
na afirmação: "Neste contexto, a ética do desejo apresenta-se como um ‘heroismo da falta’, como a atitude através da qual, em nome
da falta do objeto Verdadeiro, nós rejeitamos todo objeto "
(ZUPANCIC, Ethics of the real, Verso:
London, 2001, p. 240). Mas talvez seja necessário corrigir a proposição e
afirmar que o sujeito não age em nome da falta de objeto, mas em nome do objeto
como falta, como objeto trasncendental que só se
manifesta como falta de adequaçao à empiria. [62] LACAN, Séminaire VII, p. 101 [O seminário VII, p. 106] [63] LaCAN, Séminaire X: L'angoisse, sessão de 16/01/63, [64] “A relação dialética do desejo e da
Lei faz nosso desejo não arder senão em uma relação à Lei, onde ele advém
desejo de morte" LACAN, Séminaire VII, p.
101 [O seminário VII, p. 106] [65] Para uma opinião contrário ver
ZUPANCIC, Alenka, The ethic of real, op.
cit. [66] KANT, Grundlegung,
p. 455. [67] ADORNO ET HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
pp. 92-93 [68] LACAN, Séminaire X, sessão de 27/02/61, [69] Sobre este ponto ver, por exemplo, DAVID-MÉNARD, Les constructions de l'universel [70] LACAN, Séminaire VII, p. 96 {O seminário VII, p. 103] [71] A propósito do projeto sadeano, Blanchot fala do desejo
de: « fundar a soberania do homem sobre um poder transcendente de negação
» (BLANCHOT, Lautréamont et Sade, Paris,
Minuit, 1949, p. 36)
[72] SADE, La philosophie dans le boudoir, Paris: Gallimard, 1975, p, 172 [73] SADE, ibidem, p. 83 [74] SADE, idem, p. 227. [75] LACAN, Séminaire
VII, p. 237 [O seminário VII, p. 248] [76] LACAN, E., p. 770 [77] LACAN, E., p. 772 [78] Sigo aqui uma intuição sugerida por BAAS, Le désir
pur, Peteers: Louvain, 1992, p. 40. Notemos aqui como, em um jogo de
escritura muito próprio ao século XVII, as iniciais dos três personagens compõe
o nome próprio do autor S A - D - E. O que reforça hipótese lacaniana
da divisão subjetiva. [79] LACAN, Escritos., p. 778 [80] KANT, Die
Metaphysik der Sitten, pp. 438-439 [81] KANT, Kritik
der praktischen Vernunft, p. 36 [82] KANT, Kritik
der praktischen Vernunft, p. 40 [83] Ver, por
exemplo a afirmação: "Ela [a causalidade pela liberdade] hipostasia a forma como obrigatória para um conteúdo (Inhalt) que não se apresenta por
si mesmo sob esta forma".(ADORNO, Negative Dialektik, p.232) [84] SADE, La philosophie dans le boudoir, p. 199 [85] DELEUZE, Présentation de Sacher-Masoch, Minuit: Paris, 1967, p. 22 [86] DELEUZE, ibidem.,
p. 22 [87] SADE, idem, p. 157 [88] SADE, idem,
p. 97 [89] LACAN, Escritos, p. 773 [90] LACAN, ibidem, p. 774 [91] LACAN, Séminaire XVI:, sessão de 26/03/69, [92] LACAN, Séminaire
XIV, sessão de 22/02/67 [93] Pois: "o desesperador
no bloqueio da prática fornece, paradoxalemente, um
tempo (Antepause) para o pensamento. Não
utilizar este tempo seria um crime. Ironia maior: o pensamento aproveita-se
atualmente do fato de não termos o direito de absolutizar
seu conceito” (ADORNO, Negative Dialektik, idem.,
p. 243). [94] LACAN, Séminaire VII., p. 362 [O seminário VII, p. 376] [95] LACAN, Séminaire VIII, p. 294 [O seminário VIII, p. 244] [96] HEGEL, Phänomenologie desGeistes, Hamburg, Felix
Meiner, 1988, p. 436 [97] HEGEL, ibidem, p. 197 [98] Neste sentido, podemos seguir Bourgeois e afirmar que, para Hegel “é
racional que tenha o irracional. Pois, devido a seu estatuto, o que em seu
conteúdo é irracional é racional, o reconhecimento, o acolhimento espaculativo da empiria pura não
manifesta a impotência desta especulação, mas sua liberalidade"
(BOURGEOIS, “La spéculation
hégélienne” in Etudes hégéliennes: raison et décision, Paris: PUF, 1992, p. 100) [99] HEGEL, ibidem, p. 440 [100] LACAN, Autres Ecrits. Paris, Seuil, 2001, p. 265 [101] LACAN, iSéminaire VIII, p. 327 [O seminário VIII, p. 271] [102] CLAUDEL, L'otage, Gallimard: Paris, 1972, p. 123 [103] O que nos explica o impasse da
idéia lacaniana segundo a qual: “À heroína da
tragédia moderna, pede-se que ela assuma como gozo a injustiça mesma que lhe
horroriza" (LACAN, Séminaire VIII, p. 359). Nada nos impede de
operarmos uma reviravolta perversa e afirmar, por exemplo, que esta é a
realização do fantasma sádico. Tudo o que pedimos a Justine,
só para ficar na vítima por excelência, é a
angústia de gozar do que lhe horroriza. |