Vladimir Safatle Revista Ágora
Rio de Janeiro, junho de 2000 • Página Inicial

A Ilusão da Transparência:

Sobre a Leitura Lacaniana do Cogito Cartesiano

Vladimir Safatle

Doutorando em Epistemologia da Psicanálise pela Universidade de Paris VIII. Mestre em Epistemologia da Psicanálise pela Universidade de São Paulo. Professor da Universidade Paulista. Bolsista do Programa de Aperfeiçoamento de Pesquisadores do Ensino Superior, da Capes.

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RESUMO Este artigo visa estabelecer a configuração da leitura lacaniana de Descartes. Como sabemos, é através do recurso a Descartes que Lacan procura articular a operação de subversão do sujeito moderno. Mas quais são exatamente as engrenagens desta operação e quais os problemas que ela coloca para uma teoria do sujeito e da consciência? Eis as questões que este artigo pretende responder.

Palavras-chave: sujeito, consciência, Lacan, Descartes, enunciação.

ABSTRACT The illusion of transparence: the Lacanian interpretation of the Cartesian cogito. This article aims to determine the configuration of the Lacanian interpretation of Descartes. As we know, Lacan used his interpretation of the Cartesian cogito to articulate the operation of subversion of the modern subject. The question is: what is the working mechanism of this operation and what problems does it pose for a theory of the subject and of consciousness?

Keywords: subject, consciousness, Lacan, Descartes, enunciation.

"Você é a condição
sine qua non da minha razão."
Serge Gainsbourg

Muito já se falou sobre a relação, até certo ponto inesperada, entre Descartes e Lacan. Inesperada porque não deixa de causar surpresa ver o sujeito lacaniano, sujeito da não-presença a si, ser insistentemente filiado ao gesto de enunciação do cogito claro e evidente de Descartes. Haveria, afinal, uma linha genealógica entre a fundamentação da modernidade e o inconsciente psicanalítico? Certamente que sim, ao menos para Lacan. Em outras palavras, segundo o psicanalista parisiense, o inconsciente freudiano seria o sintoma produzido pela noção moderna de subjetividade; assim como a verdade do projeto de estruturação do sujeito cartesiano seria o sujeito do inconsciente. Convém, então, analisar mais detalhadamente tal genealogia a fim de identificarmos o lugar de Lacan no horizonte do pensamento racionalista moderno.

Antes de mais nada, vale a pena recapitular a cartografia dos pólos que compõem a operação. Do lado cartesiano, temos o ato de configuração da modernidade, enquanto horizonte de autofundamentação da certeza de si mesmo, exposto através da enunciação da transparência reflexiva do cogito. É o princípio de subjetividade que aparece, na figura da autoconsciência, como o princípio mesmo da razão. Do lado lacaniano, temos a crítica a esta figura da racionalidade através da localização de um ponto absolutamente irreflexivo, chamado sujeito, no coração de uma consciência questionada graças a uma lógica da alienação de fortes matizes hegelianos. Entre os dois, o mesmo processo de fundamentar a razão a partir de uma subjetividade que tenta apresentar a pura identidade de si. Mas, aquilo que aparece em Descartes como certeza imediata retorna transfigurado em Lacan como pura inadequação. Lacan representa a formalização de um momento histórico no qual o sujeito reconhece, como irredutível, a alteridade que se aloja no interior do princípio de identidade. Quer dizer, não se trata apenas de demonstrar como a apresentação da identidade de si pressupõe o reconhecimento da anterioridade do Outro, pois tal demonstração já se encontra em Descartes.1 Mas trata-se de sublinhar o descentramento radical a que o sujeito é submetido ao passarmos à figura do Outro como estrutura lingüística desejante e originariamente inconsistente.

Aqui, já se percebe a existência de um nó górdio a ser desatado com cuidado. Esta filiação subversiva a Descartes não seria também uma certa maneira involuntária de entrar na metafísica do sujeito? Afinal, como impedir que o sujeito do inconsciente seja o último substrato de uma possível autopresença imediata, ainda que transcendental? Eis uma das questões centrais deste artigo.

Vamos, então, começar levantando uma pergunta básica: por que Descartes? Por que, em um determinado momento da sua trajetória, Lacan sente a necessidade de fazer uma leitura psicanalítica do cogito para arrancar, do seu interior, o sujeito do inconsciente? A primeira resposta que posso dar é: Lacan deseja integrar a psicanálise ao quadro do debate sobre a racionalidade e afastar, de vez, qualquer crítica a respeito de um pretenso irracionalismo que se insinuaria nas entrelinhas da prática analítica. Em suma, Lacan deseja transformar Descartes em uma espécie de fiador da objetividade analítica. Operação sutil que define as bordas de contato entre a psicanálise e a ciência através da diferenciação entre uma objetividade almejada e uma cientificidade com a qual a psicanálise não saberia muito bem o que fazer.

Para Lacan, o problema da objetividade da subjetividade vinha da época das suas leituras da Crítica dos fundamentos da psicologia, de Georges Politzer: livro-panfleto lançado na década de 1920 e leitura obrigatória de Merleau-Ponty, Sartre e companhia.2 Aqui, já estava enunciada uma das questões centrais que percorrerão toda a aventura intelectual de Jacques Lacan: como é possível fundar uma ciência da subjetividade que não acabe por coisificar a própria subjetividade e perder exatamente aquilo que queríamos conservar. Questão que pode ser enunciada da seguinte forma: como formalizar um discurso articulado a partir da entrada do sujeito na cena da objetividade? Ou ainda, quais as condições para a consolidação de uma ontologia da primeira pessoa que recuse toda recaída em um vocabulário 'mentalista' de terceira pessoa? A resposta de Politzer já indicava o caminho a ser trilhado por Lacan: o fato psicológico não é um dado imediato. Antes, ele é constituído pela narrativa que o sujeito faz ao outro (ainda com o minúsculo). No que tange à subjetividade, fato e narrativa são uma só coisa. O aparecer e o ser são indiscerníveis, da mesma forma que são indiscerníveis a aparência da dor e a dor — velha intuição de Wittgenstein. O valor da psicanálise estava, então, na percepção de que uma ciência da subjetividade seria, necessariamente, uma lógica da enunciação.

É tendo em mente a transformação da psicanálise nesta lógica da enunciação que se dará, nos anos 50, a guinada estruturalista de Lacan. Afinal, o estruturalismo trazia uma noção de objetividade que se acomodava bem a tais propósitos. Contra a objetividade matemático-quantificadora advinda da física moderna, a antropologia de Lévi-Strauss colocava em circulação a idéia de sistemas diferenciais-opositivos articulados lingüisticamente tal qual um grande topos. Ou seja, uma matematização não-quantificável: embrião dos matemas lacanianos que começarão a aparecer a partir da guinada topo-logicista do final da década de 60.

Mas, a filiação estruturalista havia sido apenas o primeiro tempo da fundamentação da objetividade da psicanálise. Ela fornecia o método para uma análise sistêmica dos enunciados. Faltava ainda uma compreensão dos atos de enunciação, e aí entrava o cogito cartesiano. Como veremos, para Lacan, o cogito levanta o problema da identidade do sujeito no exato momento da auto-enunciação da certeza de si. É a questão da anatomia do ato de fala que se apresentava na antecâmara da metafísica cartesiana.

O momento deste retorno a Descartes não poderia ser mais elucidativo. É certo que a leitura lacaniana do filósofo já se fazia presente desde as Proposições sobre a causalidade psíquica, conferência pronunciada em 1946 (1966).3 Lá, tratava-se de tomar distância da interpretação psicologizante do sujeito cartesiano promovida por Henri Ey e impedir a confusão entre o dualismo pensamento/extensão de Descartes e um dualismo mente/corpo. Desde aquele momento, Lacan demonstrava ter uma leitura advertida da filosofia. A palavra de ordem de um retorno a Descartes já estava lançada.

Mas tal retorno terá seu início definitivo em 1957 (1966), com o texto "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud", um pronunciamento para estudantes de filosofia, realizado, coincidentemente, em um anfiteatro da Sorbonne denominado Descartes. A certa altura do pronunciamento, ao passar à questão do modo de produção do sentido (como uma cadeia significante pode produzir algo parecido com o fenômeno do sentido?), Lacan introduz a necessidade do sujeito ser pensado enquanto suporte dessa produção. Mas qual sujeito? Certamente o sujeito cartesiano lido à luz do inconsciente estruturado como uma linguagem. Leitura subversiva que transformava o Eu penso, logo existo no hoje famoso Eu penso onde não sou, logo sou onde não penso.

Mas será só a partir da primeira metade da década de 60 que as conseqüências do retorno a Descartes serão aprofundadas. São desta época os textos mais marcados pela recorrência cartesiana: A ciência e a verdade (1965/1966) e os seminários sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1973) e sobre A lógica do fantasma (1966-67). Durante os anos 1963-1966, o comentário do cogito cartesiano dará a Lacan uma geografia do sujeito, uma escrita do fantasma além de ajudá-lo na sistematização da questão da transferência.

Este período foi politicamente determinante para Lacan. Em 1963, o psicanalista não era mais reconhecido pela International Psychoanalytic Association como analista didata. Seus seminários precisaram mudar de local, passando do Hospital Saint-Anne para a Escola Normal Superior. No ano seguinte, Lacan rompeu de vez com a legalidade psicanalítica fundando a Escola Freudiana de Paris fora dos ditames da IPA. Em um momento tão hostil à praxis e à teoria lacaniana, a leitura do cogito cartesiano aparece como um campo privilegiado e legitimador. Através dele Lacan poderá estabelecer a relação entre a psicanálise e o discurso da ciência, expondo as bases da teoria analítica através da sua inserção no discurso da modernidade.

O COGITO COMO SUJEITO DA CIÊNCIA

A transformação de Descartes no fiador da objetividade psicanalítica mobilizava um conjunto heteróclito de leituras. Primeiro, tal operação só poderia ser bem sucedida porque, para Lacan, o cogito nada mais é do que o sujeito da ciência. O que o permitirá afirmar:

Ouso enunciar, como uma verdade, que o campo freudiano não seria possível senão certo tempo depois da emergência do sujeito cartesiano nisso que a ciência moderna só começa depois que Descartes deu seu passo inaugural (LACAN, 1964/1973, p. 47).

O cogito cartesiano encarna o estatuto de sujeito que suporta o discurso da ciência moderna. Eis uma afirmação que a princípio parece não dizer de onde veio. Afinal, a racionalidade objetiva do discurso científico moderno sempre baseou-se na exclusão do lugar do sujeito. Neste sentido, não há exemplo melhor que a medicina; ciência cujo ideal de objetividade alcança sua melhor expressão no imperativo de Bichat: "Abram alguns cadáveres". Abrir alguns cadáveres significa, aqui, fechar o ouvido para as manifestações da subjetividade veiculadas pela fala do sujeito; ou seja, para a maneira como ele formula as queixas sobre sua doença. Só através desta espécie de forclusão, a acuidade do olhar clínico pôde impor-se em toda a sua extensão.

É na contramão desta forclusão do lugar do sujeito que Lacan irá posicionar a psicanálise. Primeiro, trata-se de mostrar a existência de um sujeito da ciência. Para isto faz-se necessário utilizar Koyré como guia. Não que a proposição da existência de um sujeito da ciência esteja claramente formulada em Koyré. Na verdade, ela havia sido cunhada por Alexandre Kojève.4 Mas o fato é que Lacan não terá nenhuma grande dificuldade em derivá-la dos postulados do filósofo da ciência russo, cuja obra ele conhecia bem.

O postulado central de Koyré, e que também é amplamente adotado por Lacan, diz que a ciência moderna nasceu a partir do momento em que Galileu estruturou a física matemática. Sabemos que, pelas mãos desta física, articulava-se um corte epistemológico que destruía a idéia de Cosmos e transformava o mundo em um espaço uniforme de geometria reificada. Lugar onde não havia nada a não ser matéria e movimento. Matéria esta que formava objetos quantificáveis que obedeciam a um determinismo causalmente fechado, tal como as engrenagens de uma máquina. A ciência galilaica, ao matematizar seu objeto, o desproveu de toda qualidade sensível para transformá-lo em pura extensão e movimento.

Mas, se tal processo foi inaugurado por Galileu, é com a estruturação do cogito cartesiano que ele alcançará sua fundamentação. Não é novidade para ninguém a afirmação de que o aparecimento do cogito traz como conseqüência a destruição do Cosmos ordenado e finito através da aplicação metódica da dúvida hiperbólica. Por outro lado, sabemos que a fundamentação de todo saber científico possível só advém através da certeza absoluta do cogito. Para que nossas idéias forneçam um conhecimento certo deste mundo matemático rigidamente uniforme elas precisam dar conta de um duplo imperativo. Primeiro, enquanto representações, elas devem corresponder a um mundo dotado de autonomia metafísica e acessibilidade epistêmica. Mas, por outro lado, e é isto o que nos interessa agora, os conteúdos mentais precisam ser transparentes ao sujeito. Eles precisam estar dispostos em um espaço representativo translúcido indexado através da primeira pessoa: outro nome possível para a noção de consciência que nasce com o cogito. Desta forma: "A cada enunciado do saber científico se encontra co-presente o enunciado 'Eu penso' que é o lugar representativo onde ele se enuncia" (SIPOS, 1994, p. 40). O cogito aparece como condição transcendental de possibilidade para a experiência científica da modernidade. Conclusão de Lacan: a emergência da ciência moderna produz um sujeito, o sujeito cartesiano.

Diga-se de passagem, aqui percebe-se a astúcia de Lacan ao determinar a articulação entre psicanálise e ciência e sua diferença, neste ponto, em relação a Freud. Para Lacan, a psicanálise comunga com a ciência o seu conceito de sujeito e não necessariamente o seu Ideal. Até porque, comungar com o Ideal da ciência levaria a psicanálise a pleitear-se, no limite, como ciência ideal. Por outro lado, Freud nunca teve a intenção de desviar a psicanálise dos trilhos do Ideal da ciência, como comprova sua metapsicologia dependente dos paradigmas da física termodinâmica.

O PONTO EXTREMO

Mas como Lacan interpreta a estrutura deste sujeito da ciência que, antes de mais nada, é cartesiano? Podemos fazer ressoar a tese de Jean-Claude Milner (1995, p. 40) e afirmar que a leitura lacaniana é baseada em uma tentativa de privilegiar o que chamaríamos de "ponto extremo" do cogito; ou seja, o momento instantâneo da sua primeira enunciação (ego sum, ego existo).

É importante salientar que a primeira enunciação do cogito é ego sum, ego existo e não cogito ergo sum.5 Esta diferença é essencial pois, ao menos neste ponto extremo, que é enunciação do cogito fechada sobre si mesma, não há a sua substancialização como coisa pensante (res cogitans). Basta lembrarmos da afirmação de Descartes, logo após a primeira enunciação: "Mas não conheço ainda bastante claramente o que sou, eu que estou certo de que sou" (DESCARTES, 1973, p. 100). Uma leitura atenta da Segunda Meditação demonstra que a certeza de ser res cogitans realmente só entra na ordem da razão após o momento lógico da primeira enunciação do cogito. É só após tal passagem que o 'eu sou algo indeterminado' dá lugar ao 'eu sou uma coisa que pensa'.

Privilegiar tal "ponto extremo" traz uma série de conseqüências. Primeiro, ele nos permite perceber como o sujeito que nasce com o cogito é totalmente distinto de uma individualidade empírica. Daí deriva todo o mote anti-humanista de Lacan. Um homem, para existir, pressupõe a existência de alguma espécie de co-naturalidade em relação a um determinado conjunto de atributos físicos e psíquicos. Ao contrário, para Lacan, se há algo no qual o cogito não nos autoriza a acreditar é em uma relação de co-naturalidade. O sujeito cartesiano nasce arrancado de qualquer aderência natural, nasce totalmente despsicologizado. Prova disto encontra-se no fato de a consciência que advém com o cogito não ser, em absoluto, a consciência de um "eu" que anda, que sente dor e que tem recordações. Antes, ela é consciência de um "eu" descolado de qualquer atributo psíquico ou orgânico. Na realidade, o sujeito do cogito nasce através do esvaziamento de toda esfera dita psíquica. Ele é um "eu" absolutamente sem introspecção.

Sobre a autopresença determinada pelo cogito, Lacan afirma que, já em Descartes, ela é pontual e evanescente. Pontual porque aparece como um ponto, como um resíduo resultante do esvaziamento de toda esfera psíquica, de todos os conteúdos mentais. Um esvaziamento que levará o sujeito a reconhecer-se no vazio do puro pensamento transparente a si mesmo. Pois o cogito nada mais é do que a condição de representação de toda representatividade. Ele não é um conteúdo mental mas, antes, a condição a priori da existência de tais conteúdos.

Evanescente porque o sujeito cartesiano é habitante de um tempo instantâneo, um tempo sem duração: "O cogito é a afirmação de uma certeza instantânea, um julgamento, um raciocínio, prensado em um instante" (WAHL, 1932, p. 54). Lembremo-nos da resposta cartesiana à questão de quanto tempo dura a certeza do cogito: o tempo da enunciação desta evidência. Ou seja, o tempo que gasto para dizer: Eu sou, eu existo. Assim, o momento da aparição do sujeito é, também, o momento de seu desvanecimento.

Despsicologizado, pontual e evanescente; esta é, segundo Lacan, a configuração do sujeito cartesiano que vem ao mundo na aurora da modernidade. Sendo assim, fica fácil perceber que para Lacan extrair do cogito cartesiano a estrutura do sujeito do inconsciente não será necessário nenhum deslocamento drástico de terreno conceitual. O que o psicanalista precisará fazer é operar um movimento dito de subversão. Subversão porque trata-se de fazer com que o enunciado transforme-se no contrário do que se queria enunciar. Movimento que tira, das engrenagens montadas para garantir a identidade imediata de si, a própria proposição da des-identidade.

Admiremos a astúcia de Lacan. Através da sua leitura de Descartes, o psicanalista transformou seu sujeito do inconsciente em representante legítimo do racionalismo moderno. Um racionalismo cujas pretensões serão corrigidas a partir da subversão do sujeito.

Tal subversão só pode ser compreendida à luz de uma teoria da enunciação. Isto porque, para Lacan, o cogito tem a estrutura de um ato de fala através do qual o sujeito fundamenta a certeza da sua identidade consigo mesmo, abstraindo-se de toda diferença. Não é por outra razão que, em lacanês, o cogito pode ser escrito na forma: Eu penso: "logo existo" (LACAN, 1965/1966, p. 864).

O mais interessante é que esta interpretação lacaniana converge com a leitura de alguns comentadores cartesianos ligados à filosofia analítica, tais como Jaakko Hintikka (HINTIKKA, 1962). Como sabemos, Hintikka lê o cogito como um ato de fala cuja negação pressupõe um caso particular de contradição performativa denominado inconsistência existencial.6 A certeza do cogito não é derivada da dedução de um princípio lógico. Ela vem de uma constatação existencial típica dos atos de fala auto-referenciais. Mas o que, para Hintikka, não passa de transposição de uma experiência filosófica a uma sintaxe aparentemente desinflacionada do ponto de vista metafisico é, para Lacan, uma verdadeira subversão. Ou seja, a teoria dos atos da fala muda de valor quando atravessa o Atlântico e o canal da Mancha. No mundo saxão, ela se liga a uma noção realista de linguagem (basta lembrarmos o uso que dela faz John Searle [1969]). No Hexágono, ela é o pivô de uma crítica cerrada à teoria correspondencialista da verdade e a seus produtos; o que permite transformá-la na mola mestra da desmontagem do conceito moderno de sujeito. Mas eis aí uma questão para outro artigo.

No momento, devemos salientar que a interpretação lacaniana do cogito cartesiano como um ato de fala é ainda mais inusitada se levarmos em conta que, para articular tal interpretação, Lacan apoiou-se nos ombros da leitura heideggeriana de Descartes. Podemos perceber isso claramente nos textos A ciência e a verdade (1965/1966) e A instância da letra (1965/1966). Desta forma, se quisermos compreender bem a subversão lacaniana do sujeito, devemos ir de encontro a Heidegger.

HEIDEGGER E A GUINADA LINGÜÍSTICA DE LACAN

A crítica heideggeriana ao cogito passa pela definição do estatuto do pensamento em Descartes. Para Heidegger, encontramos em Descartes uma noção representativa de pensamento estruturada a partir de um princípio de reflexividade objetificadora. Aqui, Heidegger utiliza uma metáfora ótica elegante. Seguindo os rastros do texto cartesiano, ele demonstra como a palavra cogitare é em alguns momentos utilizada como sinônimo de percipere e, em outros, de idea; de onde segue-se que pensar só pode significar: "tomar possessão de algo, conquistar e aqui claramente no sentido de dispor diante de si, da maneira como colocamos alguma coisa diante de nós devido ao fato de representá-la" (HEIDEGGER, 1962, p. 212). O que o permite afirmar que, para Descartes, pensar é colocar a representação do objeto diante de si. Cogitatio é, na verdade, Vorstellung. Moral da história: a fórmula completa do cogito é cogito me cogitare. O eu penso do cogito deve pois ser compreendido como uma espécie de sinônimo de "Eu me represento para mim mesmo" ou, ainda, "Eu me objetifico diante de mim". Daí, seguem-se diversas conclusões.

Uma delas é que Descartes pensaria a questão da certeza do cogito como se fosse um problema de visibilidade. Segundo Heidegger, isto advém do fato de Descartes pensar o ser enquanto representaidade — enquanto aquilo que pode ser representado. É como se eu pudesse ir polindo minhas representações, da mesma forma como vou iluminando um objeto a fim de ter uma visão mais exaustiva do mesmo, até adequá-las à verdade do ser que é representado.

É fácil perceber que a verdade é pensada como a correspondência adequada entre a representação e a coisa. Esta verdade enquanto adequação precisa situar-se em um terceiro lugar que funcione como fiador da certeza advinda da clareza da minha representação da coisa. Um lugar-Outro que, como sabemos, é ocupado por Deus. Sublinhemos o papel deste lugar-Outro pois ele será de grande importância mais à frente.

Neste ponto, já podemos apreender a metáfora ótica que estrutura a estratégia interpretativa heideggeriana. A evidência do cogito é uma espécie de evidência visual na qual eu me coloco diante de mim mesmo, ou seja, como Lacan afirma no seminário XI, utilizando uma metáfora de Paul Valéry, em que eu me vejo me vendo (LACAN, 1964/1973, p. 76). Fazendo um pequeno curto-circuito, o que temos na experiência do cogito, no final das contas, é algo simétrico à experiência da auto-apreensão de si através do espelho. A consciência é este olhar que examina minhas representações e o pensamento é como um espelho que reflete, de forma clara e distinta, os objetos, dentre os quais o próprio eu (moi). De onde se vê que a consciência é como o olhar que examina e suporta o "eu".7

Um ponto interessante a notar é que Heidegger compreende a história desta metáfora ótica, que encontra no cogito sua exposição mais bem acabada, como a própria história da metafísica ocidental. Por seu lado, Lacan longe de abandoná-la, irá, de certa forma, levá-la à exaustão até que fique evidente o ponto cego que ela traz.8

Através desta interpretação heideggeriana, o horizonte estava pronto para o projeto de subversão. A fim de dar ao cogito a estrutura de um puro ato de fala através do qual o sujeito procura apresentar a identidade imediata de si, Lacan deverá fazer apenas uma espécie de deslocamento a fim de permitir que o lugar do "Eu me represento diante de mim" seja ocupado por um "Eu falo de mim". Uma guinada lingüística que não será difícil, graças à articulação entre consciência e lingüisticidade. Afinal, como nos lembra Lacan: "Esse eu penso não pode certamente ser destacado do fato de que ele só pode formulá-lo dizendo-o para nós, implicitamente — o que é esquecido por ele" (LACAN, 1964/1973, p. 36).

A pergunta que fica é uma das questões clássicas de Lacan, a saber: "quando falo de mim, sou o mesmo de quem falo?". Pergunta que Lacan formula da seguinte forma: "Não se trata de saber se eu falo de mim da maneira conforme ao que eu sou mas se, quando eu falo de mim, sou o mesmo que este de quem eu falo" (LACAN, 1957/1966, p. 5l6).

A resposta lacaniana, neste caso, é não. Só posso me auto-representar à condição de transformar o "eu" em um objeto. Só posso falar de mim pondo-me como um outro. Desta forma, teria faltado a Descartes a distinção entre sujeito da enunciação e sujeito do enunciado. Pois o cogito será visto como uma auto-enunciação que produz uma duplicidade entre o "eu" [je transcendental — sujeito da enunciação] que diz "eu penso" e o "eu" que aparece no enunciado eu penso [o moi-objet empírico — sujeito do enunciado]. É esta distinção tópica que encontramos na fórmula: "Penso onde não sou, sou onde não penso". O sujeito da enunciação é sempre um não-dito que só pode se fazer presente ausentando-se do enunciado, tal qual o inconsciente. Ele sempre ek-siste ao enunciado. Operação que Lacan chamará de sutura.

Mas podemos perguntar se esta crítica realmente atinge Descartes. De fato, a operação é mais complexa do que poderíamos supor. A crítica heideggeriana não leva em conta a distinção entre a primeira enunciação do cogito e sua posterior substancialização. Distinção que se desdobra em várias conseqüências.

A fim de percebê-las, vamos retomar a hipótese de inconsistência existencial desenvolvida por Hintikka (1962). Ela nos permite afirmar que o cogito pré-substancializado indicaria o momento evanescente no qual configura-se uma certa indissolubilidade entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado: 'eu sou, eu existo' (ego sum, ego existo).9 Mas o ponto importante consiste no fato de que a configuração desta indissolubilidade é marcada pelo aparecimento, na dimensão do enunciado, de um índex de primeira pessoa cuja referência é absolutamente incerta. "As Meditações colocam em cena um sujeito dubitans que não se sabe ainda sujeito. 'Eu' é um pronome gramatical sem referência direta" (SOULEZ, 1996, p. 132). Salientemos o peso da afirmação que aparece logo após a primeira enunciação do cogito: "Mas eu não conheço ainda bastante claramente o que sou" (DESCARTES. 1973, p. 100).10 Fica claro que, neste momento, "o cogito se exerce sobre o vazio do pensável" (MARION, 1981, p. 382). Tudo se passa como se, no instante desta primeira enunciação, o sujeito se reconhecesse como indexador evanescente (já que submetido a um regime de temporalidade descontínua) de um puro lugar vazio. Desta forma, o ponto extremo do cogito seria algo como a subjetivação de um lugar vazio ou, ainda, a apresentação de um 'inarticulado da enunciação'.11 Como nos diz Badiou (BADIOU, 1981, p. 472), será esta coincidência do sujeito ao ponto vazio que indicará a ligação de Lacan ao gesto cartesiano de enunciação do cogito e, conseqüentemente, à tradição do racionalismo moderno.

Estaríamos assim diante de um inconsciente na aurora do cogito? Nem tanto, pois o reconhecimento de si neste inarticulado da enunciação ainda não pressupõe alienação do sujeito no enunciado. A bem da verdade, não pode haver, para Descartes, divisão do sujeito mas apenas a indexação do seu esvaziamento. Operações bem distintas entre si. Uma nos coloca ao lado de Lacan e do seu sujeito do inconsciente. A outra chega, no máximo, a uma certa leitura fenomenológica do cogito e à (re)fundamentação da transparência da consciência através do princípio de intencionalidade.12 Vale a pena sempre lembrar que, no campo cartesiano, a linguagem não é espaço natural de alienação mas, antes, 'imagem das coisas' (DESCARTES, 1973, p. 109).13 Isto significa que haverá um certo regime de imanência entre enunciado e enunciação no momento da primeira formulação do cogito.

Mas poderíamos continuar a defesa de Descartes insistindo na idéia de que se trata aí de uma imanência evanescente e, por isto mesmo, mais próxima da apresentação de certa transcendência substrativa típica de um sujeito que sabe que existe mas não sabe o que ele é. E se a questão era saber se 'sou o mesmo que este de quem eu falo' poderíamos tentar afirmar o inverso de Lacan e dizer: 'sim, eu sou este mesmo', já que, ao menos na primeira formulação do cogito (ego sum, ego existo), 'este de quem eu falo' é apenas um inarticulado da enunciação que aparece no enunciado. Haveria assim, já em Descartes, uma espécie de cogito pré-reflexivo que seria condição para a auto-reflexividade do cogito propriamente dito.

O fato é que, neste ponto, teríamos que acertar contas com a afirmação de Lacan segundo a qual o erro de Descartes estaria em: "não fazer do eu penso um simples ponto evanescente" (LACAN, 1964/1973, p. 201); ou seja, não permanecer na via desta transcendência substrativa. Afinal, não há como negligenciar o peso desta trajetória do cogito que precisa passar da indeterminação da referência do ego sum, ego existo à sua substancialização como res cogitans. É ela que rompe com a instantaneidade da certeza da existência indeterminada do "eu" e fundamenta a auto-identidade reflexiva ao permitir a transformação da consciência em um espaço representativo uno e translúcido indexado pela primeira pessoa.14 Nesta passagem, o sujeito sai de um regime de temporalidade descontínua para entrar em uma temporalidade contínua própria à noção de substância. Através da continuidade do tempo, fundamenta-se definitivamente a identidade positiva entre pensar e ser. É desta forma que se forclui a experiência de desvanecimento de si que aparece inicialmente.

Sabemos que o operador retroativo desta metamorfose do tempo é Deus.15 É ele quem costura todos os instantes em um contínuo e garante a identidade do sujeito permitindo sua substancialização. E com a entrada de Deus, retornam as aporias do pensar representativo já denunciadas por Heidegger.

Descartes teria sido assim o responsável involuntário por dois dispositivos fundamentais para a psicanálise: a estrutura evanescente do sujeito e a ultrapassagem forçada desta estrutura através do apelo a um Outro (Deus) que, na verdade, aparece na posição de Sujeito suposto Saber. O Outro como espaço de fundamentação da apreensão reflexiva de si. Se a psicanálise adota o primeiro dispositivo, ela precisará saber fazer a crítica do segundo. Por isto, o descentramento do sujeito só poderá ser finalizado através da exposição desta inconsistência do Outro tão bem ilustrada na fórmula "Deus é inconsciente" (LACAN, l964/l973, p. 58).

A CONSCIÊNCIA MATERIALISTA E A INCONSISTÊNCIA DO OUTRO

Vimos até aqui como Descartes teve o importante papel de colocar em evidência que a imanência da certeza do cogito era dependente da transcendência substrativa de um vazio onde se localizaria a consciência. A subjetividade moderna nascia assim através de um gesto transcendental de indexação de um lugar vazio. Mas Descartes não percebera que tal vazio, enquanto lugar onde o sujeito se sutura, não poderia ser identificado à consciência.

Lacan não pode reconhecer a transcendência que Descartes e representantes da linha fenomenológica do cartesianismo moderno, tais como Sartre,16 procuram dar à consciência. É a fim de fazer tal crítica que o psicanalista desenvolverá, em um seminário de 1954, uma definição materialista da consciência. Não se trata aqui de uma recaída em um materialismo reducionista à la filosofia da mente anglo-saxã. Lacan não acredita que a consciência seja apenas outro nome para o conjunto dos estados neuronais possíveis. O que o psicanalista tem em mente é uma certa modalidade peculiar de materialismo histórico. A consciência é determinada pela história material do desejo do sujeito e das suas formas de alienação. História cujo sentido nasce do puro jogo significante.

A fim de melhor expor esta noção de consciência, Lacan utilizará outra metáfora ótica. Para ele, a consciência será uma espécie de máquina fotográfica capaz de captar imagens e de revelá-las automaticamente. Uma consciência Polaroid, para ser mais exato. É fácil perceber que estamos diante de uma espécie de máquina cujos fenômenos não dependem da presença de um eu, seja ele psicológico ou transcendental. Antes, a função desta máquina é produzir captações especulares que possam constituir a instância do eu (moi).

Aqui, entramos no caráter estruturalista do inconsciente lacaniano. Tal qual uma máquina que obedece a leis heterônimas, a consciência será determinada em sua lingüisticidade pela estrutura significante que lhe aparece como pura exterioridade. No lugar do Outro cartesiano, Deus-causa que garante a transparência da linguagem e da consciência, o sujeito depara-se com as leis heterônimas e inconscientes do universo simbólico no qual ele está inserido.

Como sabemos desde os tempos de Lévi-Strauss, esta inconsciência a respeito da regra, da lei de estruturação do universo simbólico encontra sua justificativa no fato de tal regra estar sempre fora da apreensão subjetiva. Ou seja, podemos apreendê-la, mas apenas através de um procedimento de objetificação, e não através de uma intuição imediata. Pois é ela mesma que determina as modalidades de tal apreensão. Neste sentido, a estrutura será sempre um Outro absoluto. Em suma, o caráter estrutural do inconsciente lacaniano deriva do fato de a impossibilidade lógica da regra que articula a estrutura, poder ser apresentada e fundamentada no interior desta mesma estrutura. Não podemos esquecer que a regra tem uma posição absolutamente peculiar no interior de todo sistema estruturado. De um lado, ela é aquilo que o articula. Mas, por outro, ela é exatamente aquilo que não pode ser articulado no interior do mesmo. Até porque a condição de existência de elementos do tipo X não pode ser ela também um elemento do tipo X.

O toque lacaniano que muda tudo consiste em concluir que a consciência será pois uma máquina determinada por um desejo que advém de um lugar-Outro. O desejo entra em cena porque a estrutura lacaniana é desejante, ela obedece a uma dinâmica operacionalizada pela função do desejo. Ou seja, o desejo é exatamente o nome da regra que articula a estrutura lacaniana. Ele é esta regra de articulação, porque cabe ao desejo a função de operacionalizar a passagem de um significante a outro. Podemos mesmo dar a fórmula: o desejo é o operador dinâmico da estrutura. Por isto, ele submete-se a um paradoxo que Lacan enuncia nos seguintes termos: "Que o desejo seja articulado, é justamente por isto que ele não é articulável" (LACAN, 1960/1966, p. 801). Por ser a regra de articulação dos significantes, ele não pode ser articulado na dimensão significante. Daí segue-se que o desejo terá duas características fundamentais: ser determinante e inconsciente.

Este impasse de apresentação-fundamentação da regra só poderia ser resolvido se postulássemos a existência de uma espécie de meta-estrutura na qual a regra poderia ser apresentada. Uma meta-estrutura que impediria o desnudamento da ausência de fundamento da estrutura ou, para falar com Lacan, da falta no Outro. É fácil perceber que esta reduplicação da estrutura tenderia ao infinito a não ser que a regra fosse naturalizada a fim de ser fundamentada através de uma estratégia realista. Estratégia similar àquela usada por Descartes ao fazer apelo à noção de 'luz natural da razão'. Mas como Lacan proíbe esta naturalização e esta reduplicação ao infinito através dos imperativos "Não há metalinguagem" e, principalmente, "Não há Outro do Outro", restará ao Outro aparecer como inconsistente, como "incessantemente submetido à questão daquilo que o garante" (LACAN, 1960-61/1992, p. 172). Como sabem muito bem os analistas, esta questão é sempre silenciada pelo fantasma. Através da ação do objeto petit a, o fantasma impede que o sujeito tenha a experiência da inconsistência do Outro. Ou seja, em Lacan, é o fantasma que faz o papel da meta-estrutura assegurando uma certa identidade ao sujeito.

A conclusão aqui é clara: a enunciação do eu penso é, desde o início, feita pelo Outro (pois obedece à regra determinada a priori pela estrutura) e para o Outro (pois dirige-se ao reconhecimento de si por este Outro). De onde se vê que a articulação completa da subversão do sujeito só será possível através de uma dialética do desejo capaz de esclarecer a relação entre sujeito e fantasma. A via cartesiana nos forneceria assim as condições de possibilidade para percebermos, trezentos anos depois, que toda lógica da enunciação só pode dar conta plenamente do seu objeto ao transformar-se em lógica do fantasma. Pois todo ato de fala pressupõe a anterioridade de um Outro cuja consistência é produto da engenharia imaginária do fantasma. Desta forma, toda e qualquer proposição de identidade estaria assim submetida àquilo que Lacan chama de 'síntese fantasmática' (LACAN, l960/1966, p. 837).

Desta forma, Lacan dispõe do instrumental necessário para pensar a transcendentalidade do sujeito. Através do psicanalista parisiense, ficamos sabendo que não é a consciência que recebe o atributo da transcendentalidade. Se há um elemento que desempenha uma função transcendental no pensamento lacaniano, este elemento é a linguagem. A linguagem como estrutura desejante designada Outro é o 'lugar transcendental' (LACAN, 1958/1966, p. 649) a partir do qual a consciência é determinada e a partir do qual o sujeito lacaniano constitui o mundo dos objetos de seus desejos. Mas como o sujeito também é lugar a ser contado na estrutura lingüística, ele também compartilha esta função transcendental. Eis aí um dos grandes problemas legados pelo momento cartesiano da experiência intelectual de Lacan: como pensar a função transcendental do sujeito sem cair nos impasses de uma abstração formalista que anule a singularidade material própria ao fenômeno da subjetividade. Ou, para utilizar uma fórmula de Foucault, como dar conta da duplicidade empírico-transcendental própria ao sujeito (FOUCAULT, 1966, p. 333).17 Mais uma prova de que sustentar o lugar do sujeito é uma tarefa que requer muitas voltas.

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1Jean-Luc Marion já nos demonstrou como, na verdade, o cogito é fundado sobre uma estrutura dialógica que pressupõe a anterioridade do Outro, encarnado na figura de um Deus cuja essência é indefinida até a Terceira Meditação. Pois não podemos esquecer que, ao fundar a certeza de si a partir da dúvida hiperbolizada graças à figura do Deus enganador : "o ego responde àquele que o engana" (MARION, 1996, p. 31). O ego não acede à certeza de si através de um monólogo mas, antes, através de um diálogo. A crítica do solipsismo não convém à análise do cogito.
2Sobre a extensão desta relação entre o materialismo histórico de Politzer e a fenomenologia francesa, ver o artigo Georges Politzer: sessenta anos da crítica aos fundamentos da psicologia (PRADO Jr., 1991, p. 9-23).
3"Eu penso que uma palavra de ordem de um retorno a Descartes não seria supérflua" (LACAN, 1946/1966, p. l63).
4A expressão de Kojève não estava ainda explicitamente vinculada ao cogito mas dizia respeito ao 'experimentador ideal', ao 'sistema observador' pressuposto pela realidade reconhecida pela física moderna: Sobre este 'sistema observador', Kojève dirá "é como um órgão da vista isolado, análogo ao olho humano mas observando somente elementos geométricos do dado visual". De onde se vê que a proximidade com a leitura heideggeriana do cogito é evidente (KOJÈVE, 1990, p. 321).
5"De sorte que, após ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito" (DESCARTES, 1973, p. 100).
6"Parece-me que a interpretação mais interessante que podemos dar é dizendo que Descartes se deu conta, de maneira um pouco confusa, da inconsistência existencial da frase 'Eu não existo', e, conseqüentemente, da autoverificabilidade existencial de 'Eu existo'" (HINTIKKA. 1962, p. 34). Diz-se que há inconsistência existencial em um ato de fala quando um enunciado articulado na primeira pessoa do singular entra em contradição com a existência do sujeito da enunciação. Por exemplo, se eu enuncio: "Vladimir Safatle não existe" o enunciado entra em contradição com o próprio ato performativo de enunciação. De onde se segue que o cogito seria a configuração de um momento no qual aparece uma certa modalidade de identidade entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação.
7Vale a pena salientar que esta metáfora ótica terá vida longa. Vide, por exemplo, a leitura que Richard Rorty faz do cogito cartesiano a partir dos paradoxos da imanência do chamado "Olho da Mente" (Cf. RORTY, 1988, p. 25-62). De fato, sua crítica ao cogito e ao pretenso dualismo cartesiano são operações largamente dependentes dos dispositivos da crítica heideggeriana.
8A pertinência ou não da utilização desta metáfora ótica para a compreensão do cogito cartesiano é uma questão ainda polêmica. É certo que Lacan a adota (Cf. principalmente LACAN, 1973, p. 75-84) e como o objetivo deste artigo é expor a configuração da sua leitura de Descartes decidi agir como se a aceitasse. Para uma crítica a esta metáfora, ver SOULEZ, 1996, p. 119-147 e MARION, 1996, p. 3-49.
9Nunca é demais levarmos em conta a especificidade da primeira formulação do cogito: 'eu sou, eu existo'. Neste momento, o pensamento ainda não é um atributo do sujeito. As aporias do pensamento representativo ainda não podem ser aplicadas ao cogito. Infelizmente, Hintikka (1962) não faz a diferenciação entre ego sum, ego existo e cogito ergo sum. Mas a via aberta por sua leitura pode muito bem se acomodar a tal diferenciação. Ver, por exemplo, MARION, 1981, p. 370-395.
10Grifo meu. Note-se que o regime de indeterminabilidade é tamanho que não é possível saber sequer a natureza da referência ao pronome 'eu'. Dai a utilização de 'o que' no lugar de 'quem'...
11Esta fórmula feliz foi-me sugerida por Antonia Soulez, a quem devo também meus mais sinceros agradecimentos pela generosidade em me indicar a existência de graves erros que constavam neste momento do texto.
12Ver, por exemplo, SARTRE, 1992.
13Esta especularidade correspondencial-representativa é garantida por Deus. De onde se segue que o verdadeiro dispositivo de subversão do cogito está no desvelamento da inconsistência do Outro e na conseqüente invalidação da teoria correspondencialista da linguagem que fundamentava o prosseguimento da experiência cartesiana.
14Espaço representativo pois, logo após a substancialização do cogito, há a disseminação dos modos desta substância: "Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente" (DESCARTES, 1973, p. 103). Todos esses modos (juízo, desejo, imaginação, sensação) têm em comum o fato de articularem representações e de pressuporem uma certa, digamos, competência representacional.
15Que, de fato, só aparece naTerceira Meditação, mas assegura retroativamente a consciência como substância auto-idêntica no tempo. Daí que: "o sujeito só põe Deus — o Outro —, porque ele espera em retorno alguma coisa de determinante para sua própria posição de sujeito" (BAAS e ZALOSZYC, l995, p. 81)
16Sabemos como Sartre seguirá a via cartesiana para desenvolver o conceito da consciência enquanto campo transcendental vazio e impessoal. Desta forma ele procurava impedir que as aporias da representação produzissem uma duplicidade no interior da consciência. Entre a consciência reflexiva que enuncia 'eu penso' e a consciência refletida que aparece no enunciado 'eu penso' haveria uma imanência radical advinda da aplicação do princípio de intencionalidade: 'toda consciência é consciência de um objeto'. Isto porque a consciência reflexiva é, ao mesmo tempo, consciência não-posicional de si (toda consciência reflexiva é, em si mesmo, irrefletida) e consciência posicional deste objeto que é a consciência refletida. Mas, como não há 'Eu' no nível da consciência irrefletida (o 'Eu' é um objeto da consciência e não uma unidade sintética transcendental — idéia bem assimilada por Lacan), o cogito sartriano será um ato irrefletido de reflexão sem 'Eu'. O 'Eu', enquanto objeto transcendente, só aparece através de um ato tético de segundo grau. Sartre dirá então que há um cogito pré-reflexivo que é condição para o cogito cartesiano. Pré-reflexividade que será articulada através da formação de um campo transcendental vazio, pré-pessoal e absolutamente translúcido. Lacan conhecia bem esta saída sartriana. Por isto, esta definição materialista de consciência deve ser lida também como uma resposta à estratégia sartriana de recuperação do cogito.
17Lembremos, de passagem, que a psicanálise é um discurso cujo estatuto é duplo. De um lado, ela é articulação lógica de princípios transcendentais pressupostos pela função do sujeito. Por esta via explica-se a aposta lacaniana na formalizaçáo lógica e topológica do gozo, do objeto a, da sexuação etc. Mas ela não se esgota nisto. A psicanálise é também uma certa antropologia materialista com um regime material de causalidade. É da costura entre lógica transcendental da função do sujeito e antropologia materialista que nasce a especificidade do discurso psicanalítico.

Enviado em 12/10/1999. Aprovado em 18/1/2000.

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