Vladimir Safatle Folha de S. Paulo - mais!
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Slavoj Zizek

Zizek passa a escrever no Mais!

"Meus livros são como CD-ROMs fracassados". Os leitores brasileiros que abriram alguma página de O mais sublime dos histéricos ou Eles não sabem o que fazem (todos pela Zahar) sabem bem do que Slavoj Zizek está falando. Seus textos parecem impressos em uma superfície porosa, onde um campo sempre leva automaticamente a outro. Poucos intelectuais são capazes de jogar, ao mesmo tempo, em tantos tabuleiros quanto o filósofo e psicanalista esloveno, ex-candidato reformista à presidência de seu país. Trafegando em alta velocidade pela história da filosofia, política, crítica da cultura e psicanálise, Zizek ficou famoso pelos curtos-circuitos que permitem esclarecer os impasses do imperativo categórico kantiano através da filmografia de David Lynch ou transformar a obra de Jane Austen no equivalente literário do sistema hegeliano. Uma fama que ultimamente tem levado o pesquisador da Universidade de Liubliana e Coordenador de projetos no Kulturwissenchaftlieft Institut de Essen a lotar palestras nos EUA e Inglaterra.

Mas esse estilo de cortes secos e espetaculares não é apenas um artifício retórico de alto risco. Como todo bom lacaniano, Zizek sabe que o estilo é a Coisa mesma. Ele é absolutamente necessário à realização de um projeto perseguido nos 19 livros que escreveu ao ritmo de dois por ano (a última fornada é composta por Did someone say totalitarism? e The fragile absolute). Trata-se de defender a possibilidade de uma perspectiva universalista contra o relativismo pós-moderno atualmente hegemônico. Daí a escolha em ignorar as fronteiras entre cultura popular e sistemas de pensamento a fim de apreender a unidade dos processos filosóficos-culturais na era capitalista.

É verdade que falar de universalismo nestes tempos de política multicultural e fim das ideologias pode parecer totalitário; ainda mais quando o autor não esconde querer ressuscitar o projeto racionalista moderno de emancipação do sujeito através de um ‘retorno psicanalítico à Hegel’. Será que ele não estaria a par do sopro libertário que anima a morte do sujeito, a desconstrução da razão moderna e do pan-logicismo hegeliano, a crença na multiplicidade plástica da subjetividade contemporânea, a Sociedade de Risco etc.?

Aqui, tocamos em um ponto chave na experiência intelectual de Zizek. Figura de proa da nova geração de intelectuais de esquerda que gira em torno da New Left Review, o filósofo esloveno sabe articular, como poucos, psicanálise e marxismo para desmontar os vocabulários da multiplicidade e do relativismo prudente. Por trás da aparente irredutibilidade das particularidades dispersas no espaço multicultural haveria um elemento capaz de conectá-las silenciosamente, tal como um fantasma fundamental que unifica os vários objetos do desejo. E Zizek não tem medo em chamar tal fantasma pelo nome: o velho Capital. Assim, a defesa da perspectiva universalista transforma-se em crítica à falsa universalidade do automatismo do Capital e aos seus produtos, mesmo que eles teimem em esconder o selo de fábrica. Crítica psicanalítica, diga-se de passagem (tal como encontramos em Adorno e nos melhores momentos de Marcuse). Talvez a única ainda capaz de resgatar o frescor do projeto inacabado dos modernos.

Vladimir Safatle, doutorando em filosofia pela Universidade Paris VIII, mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo

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