Vladimir Safatle
Especial para o Correio
CARTAS NA MESA - Ano eleitoral, tempo de reflexão sobre ética e moralidade. O filósofo Vladimir Safatle analisa essa lógica no atual jogo político. Ilustração: Ricardo Cunha Lima |
Um dos passatempos preferidos dos intelectuais em época de eleição é glosar sobre ética e moralidade. Esta é uma das especialidades mais concorridas do jornalismo transcendental. Ela consiste em aprender alguns movimentos da batalha eleitoral e avaliar até que ponto eles condizem com as regras gerais da conduta eticamente aceitável. Como a defasagem sempre é grande, a ira santa moralista é garantida. De qualquer forma, há de se convir que a realidade nacional destes últimos tempos é tentadora. Afinal, que analista não gostaria de criticar o raciocínio "os meios justificam os fins" que parece guiar o Roseanagate? Quem não se sente desconfortável com a idéia de que o governo federal utilizou-se de serviços de espionagem para acabar com uma candidatura que, involuntariamente, ele mesmo ajudou a criar? E quem não se irrita com a descoberta de que o tesoureiro do partido do governo é o mesmo Eduardo Jorge que só não parou na prisão porque a CPI da corrupção foi bloqueada? Mas talvez entrar neste tipo de análise não valha mais a pena. Até porque, como nos diria Richard Rorty, o eleitor é muito menos moralista e muito mais utilitarista do que gostaríamos de supor. Ele parece aceitar tacitamente que, afinal de contas, a democracia é apenas uma idéia reguladora e que não é por causa de alguns golpes baixos e um certo nível de corrupção que vamos deixar de votar nos homens certos para o país, não é verdade? E não é apenas o eleitor brasileiro que pensa assim. O que dizer, por exemplo, de Berlusconi que conseguiu bater todos os recordes de amoralismo político e conservar um índice de popularidade invejável? Ou de Jacques Chirac, que só não está na cadeia porque a constituição francesa impede que presidentes sejam julgados, mas mesmo assim continua em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto para as próximas eleições na França? Na verdade, este amoralismo tácito do eleitor é facilmente explicável: ética sempre foi uma virtude política e nós, bem, parece que nós entramos de uma vez por todas na era da antipolítica. A ética sempre esteve associada à conservação e à viabilização de um espaço político de reconhecimento de conflitos no interior da sociedade civil e nossa época, ou pelo menos os poderes hegemônicos que a dirigem, está cada vez menos interessada em perder seu tempo com toda esta história. Neste sentido, o Brasil pode orgulhar-se de estar na vanguarda do processo mundial. Nós, juntamente com os Estados Unidos, entramos na era da antipolítica antes de qualquer outro país. Os tucanos prometeram colocar o Brasil na rota da modernidade. Ao menos neste ponto, conseguiram. Todos os passos foram executados com precisão de profissional. Primeiro, para entrar na antipolítica era necessário instaurar a prática de desconsiderar sistematicamente todos os movimentos sociais. E assim foi feito. Desde as greves dos petroleiros, no início do primeiro governo FHC, passando pelos saques de supermercado no Nordeste, até a última invasão de terras do MST, o argumento sempre foi o mesmo: "São apenas manifestações políticas". Como se isto significasse: "São apenas manifestações irracionais, organizadas por pessoas que exploram o sofrimento do povo e que visam desestabilizar o projeto racional que o governo vem corajosamente implementando". Ao colocar em circulação argumentos deste quilate o governo não visava apenas estimagtizar a oposição, mas desacreditar a própria noção de sociedade civil. Pois, salvo em momentos extremos, a sociedade civil nunca se manifesta espontaneamente. Ela sempre fala através dos seus setores mais organizados (sindicatos, ONGs, associações etc.) que fazem, graças a Deus, política – porque se eles não fizessem política os conflitos seriam todos resolvidos na base da violência direta. E deveríamos achar absolutamente natural que eles questionem a forma como se dá a partilha do poder ao exigirem ser ouvidos no processo de decisão e de estabelecimento de prioridades. Que eu saiba, foi assim que se criou, por exemplo, as sociedades européias do bem-estar social. O que o tucanato tentou mesmo foi implementar a famosa afirmação de Margareth Thatcher: "A sociedade civil não existe", não reconhecendo assim todo e qualquer estrato organizado da sociedade. Até um entusiasta da "social-democracia brasileira" como Alain Touraine se viu obrigado a admitir que o governo tinha passado um pouco dos limites no quesito desprezo social. Pois, salvo a Febraban e a Fiesp, todo setor organizado da sociedade foi tratado de "corporativista" ao manifestar a defesa de seus interesses. E não foi por acaso que os oito anos tucanos não produziram sequer uma inovação na democratização das relações de poder ou de modernização social. Ao contrário, suas últimas bandeiras são: Lei da mordaça para procuradores públicos, foro especial para ex-presidentes (isto depois da idéia fantástica de transformar ex-presidentes em senadores vitalícios ter sido abandonada), bloqueio total de toda tentativa de apurar seriamente denúncias de corrupção no governo e mudança de regras eleitorais no meio das campanhas. É que na época da antipolítica não faz muito sentido preocupar-se com o aumento de participação e de cultura democrática.
RAZÃO TUCANA CONTRA O IRRACIONALISMO Racional mesmo é dizer que oito anos é pouco para resolver os problemas sociais brasileiros cujas raízes, dizem alguns, remontariam ao paleolítico. Como se vê, o tempo certo não é o mesmo para os que sofrem e para os que decidem. E se os dados internacionais da ONU mostram que o Brasil não deu passo substancial algum na melhoria da distribuição de renda, que até o sistema público de saúde da Colômbia continua sendo melhor que o do Brasil (relatório OMS ano 2000), que os alunos brasileiros continuam sabendo menos matemática e ciências que os alunos da Letônia e do México (último resultado do Pisa – Programa Internacional de Avaliação de Alunos), então o governo se levanta... para questionar os números e a metodologia. Nada mais racional. Afinal, não vamos nos intimidar com técnicos estrangeiros que vêm aqui desprestigiar um trabalho sério de oito anos. Mas a antipolítica tem um significante novo para anular reivindicações sociais e excluí-las do campo do reconhecimento político. "Irracional" não bastava, eles tinham que ser "terroristas": o mesmo significante utilizado pelo Palácio do Planalto para classificar a invasão da fazenda dos filhos do presidente. E o que dizer, por exemplo, da declaração de Nizan Guanaes, antigo publicitário de Roseana Sarney e atual conselheiro de José Serra: "O PT é contra a alegria, eles são como o Talibã, só falta o turbante". Uma análise fina da realidade política nacional, não é verdade? Trata-se aqui de deslegitimar um partido como enunciador apto a participar do espaço político. Eles são fanáticos, irracionais, como o Talibã. Há alguns anos, Stalin fazia coisa semelhante mandando os opositores não para a cadeia, mas para hospitais psiquiátricos. Afinal, eles não eram opositores políticos, eles eram pessoas doentes, tristes, irracionais em suas reivindicações histéricas. Como a esquerda brasileira, o MST, os sindicatos, os participantes dos Fóruns Sociais, as ONGs, a maioria dos intelectuais, em suma, mais ou menos 30% da população nacional.
A MÍDIA COMO BLOQUEIO DA POLÍTICA O fato é que o século 21 nasceu assistindo a uma estranha metamorfose da mídia. Neste sentido, o caso paradigmático foi Silvio Berlusconi: o primeiro-ministro italiano que hoje controla praticamente todo o sistema de comunicações da Itália. Graças a ele, lembramos que a mídia, mesmo em sociedades democráticas, pode funcionar como bloqueio à discussão política através de artifícios cada vez mais sutis. Ela não precisa excluir pessoas e idéias (como no velho sistema totalitário). Berlusconi gosta de repetir que suas editoras (Mondadori e Einaudi) publicam boa parte dos intelectuais de esquerda que o criticam. Mas ele sabe que há uma "geografia da comunicação". Ou seja, você pode regionalizar a crítica, deixando ela operar em espaços de pouca exposição (cadernos de cultura, livros com tiragem de dois mil exemplares, revistas para públicos especializados etc.). Basta que você a deixe fora dos espaços midiáticos de grande exposição, que repetirão sempre o mesmo raciocínio monolítico e estabelecerão as pautas para discussão. Esta lógica é muito semelhante à que encontramos no Brasil. E, se não temos Berlusconi, boa parte da mídia tem uma plasticidade incrível e uma grande facilidade em operar em bloco, defendendo mais ou menos as mesmas diretrizes. Por exemplo, alguém tem dúvidas de que a maioria da mídia já fez suas escolhas sobre quem deve ser o próximo presidente da República? O que podemos esperar do debate político em uma situação como esta? A única resposta possível é: que ele seja esvaziado ao máximo, inviabilizando cada vez mais a crítica de resultados, a apresentação de descontentamentos e a procura de novas alternativas. Isso a ponto de podermos perguntar se haverá realmente eleição. |