Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, domingo, 7 de abril de 2002 • Página Inicial

O Silêncio da Língua

Organizados a partir dos manuscritos inéditos de Ferdinand de Saussure,
o mais influente lingüista do século 20, Escritos de Lingüística Geral sacodem a França
e lançam luzes sobre o estudo da semiótica.

Vladimir Safatle
Especial para o Correio

Écrits de Linguistique Générale
Estudo de Ferdinand de Saussure, Galimard (Coleção Bibliothèque Philosophie), 352 páginas, €20,90. Pode ser encomendado em FNAC−France

Ferdinand de Saussure
Ilustração: Kleber Sales

Ferdinand de Saussure era caso único na história do pensamento do século 20. Nenhum outro intelectual foi capaz de influenciar o espectro das ciências humanas de maneira tão decisiva sem nunca ter escrito algo parecido a uma obra. Dificilmente poderíamos imaginar o retorno de Jacques Lacan a Sigmund Freud, a antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss, o marxismo de Louis Althusser e a semiologia de Roland Barthes sem as reflexões pioneiras de Saussure concernentes à lógica estrutural da linguagem.

O fato é que toda esta geração eminentemente francesa de pesquisadores descobriu Curso de Lingüística Geral: livro que, na verdade, era a reconstrução, a partir de notas redigidas por alunos, de três cursos lecionados por ele entre 1907 e 1911 na Universidade de Genebra. Por outro lado, os estudos de Saussure que o consagraram na juventude, como Mémoire sur le Système Primitif des Voyelles Indo-Europèene e a tese de doutorado De l'Emploi du Génitif Absolu en Sanskrit, nunca tiveram influência e distribuição para além do círculo restrito dos filólogos e outros pesquisadores da linguagem do final do século 19 e início do século 20. Ou seja, se quisermos ser um pouco maldosos, podemos dizer que nenhum livro de Saussure foi responsável pela criação do fenômeno Saussure.

Mas o lingüista era caso único na história do pensamento do século 20, isto ao menos até o mês passado, quando chegaram às livrarias francesas os Escritos de Lingüística Geral (Écrits de Linguistique Générale). Fruto de trabalho de seis anos de Rudolf Engler e Simon Bouquet, esta talvez será considerada pela posteridade como a primeira obra, no sentido forte do termo, de Saussure. Ela é o resultado da edição de vários manuscritos que foram descobertos em 1996 na antiga residência do lingüista. Em meio a notas de curso, aforismos e esboços de textos, encontrava-se o rascunho em estado avançado de um livro completo que deveria se intitular Da Dupla Essência da Linguagem. Tudo isto está nos Escritos de Lingüística Geral, acrescido de algumas notas que haviam aparecido na forma de apêndice às edições críticas do Curso organizadas por Engler em 1968 e 1974.

UM OUTRO SAUSSURE
O trabalho cuidadoso de organização feito pelos editores nos permite atualmente dar a César o que é de César e descobrir um Saussure, de certa forma, soterrado pelo Curso de Lingüística Geral. O termo "reconstrução" talvez seja o mais apropriado para falar do Curso. Sua edição foi feita postumamente por dois discípulos (Charles Bally e Albert Sechehaye) que não freqüentaram os seminários e que acharam melhor imprimir viés programático muitas vezes estranho às reflexões ricas e hesitantes do lingüista. Como resumirá mais tarde Riedlinger, este sim aluno dos seminários: "Bally não tinha o sentido filosófico de seu mestre".

O preço pelo déficit de espírito filosófico do discípulo foi certo recalcamento. O lingüista que aparece no Curso é o arauto do programa epistemológico de uma ciência da linguagem renovada que se anunciava por meio da redefinição da linguagem como sistema fechado de signos. Ciência que operava de maneira segura por meio das dicotomias entre fala e língua, significante e significado, diacronia e sincronia, além de tantas outras hoje disseminadas no próprio espírito do tempo. Mas o arauto teve o inconveniente de recalcar um outro Saussure: o filósofo da linguagem que questiona incansavelmente todas as dicotomias usuais na compreensão do fenômeno lingüístico a ponto de afirmar: "Não possuímos sequer uma espécie de distinção gramatical que seja fundada sobre um princípio definido. Em nenhum lugar encontramos a terra firme de onde partem as definições". É este filósofo que aparece nas páginas de Da Essência Dupla da Linguagem. Filósofo cuja reflexão é incansavelmente ultrapassada pela dificuldade em circunscrever e cristalizar o sentido dos signos que compõem os sistemas lingüísticos.

Ludwig Wittgenstein costumava afirmar: "Tudo o que pode ser dito, pode sê-lo claramente". Princípio de expressibilidade que pressupõe certo regime de imanência entre o querer dizer e aquilo que é efetivamente dito, entre significação e designação, entre o pensamento e a linguagem. O Saussure dos Escritos, porém, não parece compartilhar as certezas do filósofo austríaco: "Querer esgotar as idéias contidas em uma palavra é uma empresa perfeitamente quimérica". Pois todas as vezes que falamos, o sentido das palavras parece escorrer pelas bordas. Experiência de que a psicanálise mostrará a fonte ao lembrar que a produção do sentido dificilmente pode ser reduzida à intencionalidade consciente dos sujeitos.

Este ponto é interessante. Aqui a tentação é grande para perguntar: "Por que o resultado final do esforço de Saussure foi o silêncio?". Por que ele, que aos 24 anos defendia tese considerada por muitos como revolucionária, nunca foi capaz de dar forma satisfatória a um livro sobre a essência da linguagem? Ou seja, até a morte, em 1913, foram 32 anos de silêncio. Quantas vezes ele se mostrou irritado com os próprios resultados e com a linguagem técnica que, a seus olhos, era insuficiente para apreender o fenômeno lingüístico. Hipótese possível é que Saussure estava prestes a ultrapassar Saussure. Haveria um ponto em torno do qual seu sistema giraria sem poder apreendê-lo. Ponto a propósito do qual estes manuscritos recém-lançados nos dão algumas pistas.

O TRABALHO DO NEGATIVO
Todo o texto sobre a essência dupla da linguagem parte daquele que será considerado o "princípio fundamental da semiologia": "Na língua, só há diferenças e negações". Ou seja, nenhuma identidade é naturalmente dada, nada liga o signo àquilo que ele significa. Seu sentido aparece apenas por meio da sua diferença em relação a outros signos. Ele é, primeiramente, aquilo que os outros não são. Tal como no jogo de xadrez, uma peça não é nada em si mesma, sua materialidade não determina nada. Ela só é algo no interior do jogo. Não será por acaso que Saussure utilizará até a exaustão a metáfora da língua como jogo de xadrez (vale a pena fazer aqui apenas um comentário: teríamos de pensar a língua como jogo muito particular em que as peças vão sofrendo metamorfoses imperceptíveis, outras peças vão entrando lentamente no jogo e, em alguns momentos, o sujeito chega a duvidar se está realmente entendendo as regras).

Esta idéia da linguagem como sistema fechado onde os signos não têm relação direta com aquilo que eles deveriam representar ganhou seguidores e críticos fervorosos. Alguns viam nela nova promessa de racionalidade. Em vez da racionalidade matemática-quantificadora herdada da física moderna, onde grosso modo só é racional aquilo que pode ser quantificável, Saussure traria a idéia de racionalidade estrutural. Ou seja, depois de Saussure, o verdadeiro trabalho da razão consistiria em reconstruir as redes, as posições e as relações entre elementos aparentemente autônomos. Outros acusavam o lingüista suíço de criar concepção abstrata de linguagem, incapaz de dizer algo sobre o mundo e os objetos no mundo.

Os Escritos mostram um teórico extremamente consciente do problema da referência da linguagem. "Nós", dirá Saussure, "procedemos exatamente como um geômetra que quer demonstrar as propriedades do círculo e da elipse sem ter dito o que ele entende por círculo e elipse". A afirmação preciosa é extremamente sugestiva. Falantes são como geômetras que não podem dizer nada sobre os objetos que descrevem. "Não há ponto de partida algum na língua", continuará Saussure. A referência é sempre evanescente. Mas se a língua sempre se cala diante da referência, se as idéias contidas em uma palavra são inumeráveis e se a plasticidade do uso das palavras é ilimitada, então como é possível algo como o sentido?

Nestes Escritos, Saussure nos dá pista da direção de seus pensamentos por meio das considerações sobre a fala. Basta lembrarmos da Nota sobre o Discurso. O sentido é ato dos falantes. Ou seja, a unidade mínima da linguagem não é a palavra, a proposição ou o texto, mas o ato de fala. Trata-se desta fala que fôra tão negligenciada no Curso em prol do seu oposto: a língua como sistema estático. A fala era assim o silêncio da língua. O último ensinamento de Saussure seria o de que toda lingüística pediria uma pragmática como seu complemento essencial.

De certa forma, este caminho foi seguido. Algumas décadas depois, John Austin e John Searle dedicariam suas pesquisas à pragmática. Do outro lado do Atlântico, Jacques Lacan mostraria como não havia linguagem sem sujeito capaz de instaurar novas realidades por meio da fala. Cada um a seu modo acabou retornando a outro Saussure que continua mais vivo do que nunca.

Vladimir Safatle é mestre em Filosofia pela
Universidade de São Paulo e professor-visitante
no Colégio Internacional de Filosofia, em Paris.

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