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Dois modos de amor pela superfície :

sobre certos usos da ironia e da metáfora na escrita conceitual

 

 

Je dis ce que je dis

Jacques Lacan

 

 

“O que nos força a admitir a existência de uma antinomia radical entre o ‘verdadeiro’ e o ‘falso’? Não seria suficiente distinguir graus na aparência, tal como cores e nuances mais ou menos claras, mais ou menos sombrias – ‘valeurs’, para empregar a linguagem dos pintores? Por que o mundo que nos concerne não seria uma ficção?”[1]. As questões são de Nietzsche mas, desde Protágoras, a filosofia se vê diante de desafios destas natureza. Se admitirmos que a filosofia define-se exatamente através de uma tensão interna na qual a desarticulação de expectativas, historicamente determinadas, de critérios de verdade é sempre iminente, então podemos dizer que tais desafios são sua razão de existência e de renovação. Pois, se o mundo que nos concerne é uma ficção naturalizada, um mundo no qual não há sentido em insistir na “ânsia de ver as práticas sociais de justificação como algo mais do que somente essas práticas”[2], então talvez, no limite, deveríamos abandonar toda tentativa em estabelecer separações estritas entre escritura conceital e escritura ficcional. O estatuto autônomo do discurso filosófico deveria pois dissolver-se. Uma dissolução que poderia ser operada através da assunção do projeto de uma grande “conversação” na qual o discurso filosófico depõe suas aspirações em fornecer fundamentos aos processos de justificação e validade afim de comparece como uma das vozes que ressoam no campo da cultura (Rorty). Ou ainda através do embaralhamento sistemático da diferença genérica entre filosofia e literatura (Derrida)[3]. 

Assim, uma questão contemporânea relevante é: o esforço filosófico deve conservar à sua disposição alguma modalidade de crítica à aparência ? Ou seja, é desejável continuarmos utilizando velhas palavras e insistirmos em algum nível de distinção ontológica entre essência e aparência, distinção que normalmente organiza-se através das metáforas da profundidade e da superfície ? Aceitar os motivos maiores da crítica à metafísica significa necessariamente invalidar toda pretensão ontológica do pensamento ?

Estas são, no fundo, as questões que gostaria de tratar aqui. Minha estratégia passa por um deslocamento, Trata-se de fazer um movimento pendular sistemático entre as fronteiras que separam filosofia e psicanálise, em especial aquelas que passam entre Lacan e a filosofia.

Não se trata de ignorar as especificidades discursivas entre clínica e teoria filosófica, mas de trabalhar na terraplanagem deste terreno ainda pouco explorado no qual encontramos as fronteiras e os pontos de livre circulação entre filosofia e psicanálise. A razão da escolha de Lacan encontra-se no fato destas questões ligadas ao estatuto da aparência serem questões desesperadamente centrais para a consistência da experiência clínica lacaniana. Lacan também se pergunta, em vários momentos, se é necessário à clínica conservar alguma modalidade de crítica à aparência afim de garantir a viabilidade de seus protocolos de cura. Por exemplo, no início de sua experiência intelectual, à ocasião de suas considerações sobre o papel do Imaginário como esquema de categorização espaço-temporal do diverso da experiência sensível, Lacan não cessou de denunciar o caráter “enganador” (leurrant) de uma aparência produzida por estruturas inconscientes. Isto o permite colocar a questão : “Por que o desejo, no maior parte do tempo, é outra coisa do que aquilo que ele parece ser ?”[4] Ou seja, a alienação da transcendência negativa do desejo em um objeto empírico é aqui pensada através de alienação na aparência. Alienação na superfície que levará Lacan inclusive a derivar questionamentos éticos desta constatação.

Mais tarde, algo deste imperativo de critica à aparência ficará conservado sob a noção de fim de análise como travessia do fantasma, ou seja, como deposição do fantasma fundamental que estrutura os modos de escolha de objetos e de reificação da realidade socialmente partilhada.

É claro que poderíamos criticar esta tentativa de aproximar sorrateiramente o conceito clínico de fantasma do conceito filosófico de aparência. Afinal, o que este dispositivo de defesa contra a angústia de castração, ou seja, contra a angústia da inexistência de uma representação adequada do sexual, teria a ver com o conceito de aparência, conceito este tão carregado de conotações epistêmicas ? De fato, este é um assunto que, por si só, justificaria um novo artigo. Mas lembremos apenas que, ao colocar-se como cena na qual o sujeito representa a realização de seu desejo, constituindo os objetos aos quais o sujeito se vinculará, o fantasma aparecerá como dispositivo de estruturação das aspirações cognitivas da percepção e de sua submissão aos ditames do princípio do prazer[5].

Eis um fato que Freud não negligenciava ao indicar que a percepção tende a repetir de maneira alucinatória as experiências primeiras de satisfação e que a prova de realidade (Realitätsprüfung) não nos fornece nenhuma descrição positiva sobre a configuração epistêmica do estado do mundo. Ao contrário, sua definição é eminentemente negativa, sendo apenas aquilo que produz frustrações reiteradas ao programa alucinatória de satisfação do desejo. O que nos mostra como nada nos permite passarmos da prova de realidade ao princípio de realidade como descrição positiva de um estado do mundo[6]. O problema dos modos de acesso epistêmico a um real para além do fantasma ficam assim em aberto, já que não há estrutura cognitiva que não esteja às voltas com o peso do fantasma na categorização espaço-temporal do diverso da experiência.

Mas como pois romper a implicação do fantasma na estruturação das aspirações cognitivas da percepção ?  Esta questão é central por nos colocar diante do problema da definição da modalidade de crítica trazida pela psicanálise. Como veremos, elas nos mostrará a via para defendermos a tese lacaniana da psicanálise como un discours qui ne serait pas du semblant. Mas antes de avaliá-la, devemos retornar a Nietzsche para explorarmos algumas consequências de seu programa de indistinção genérica entre profundidade e superfície.

 

Conceitos como metáforas?

 

Deixamos Nietzsche com a pergunta: “Por que o mundo que nos concerne não seria uma ficção?”. Nós poderíamos desdobrá-la afim de extrair dela uma outra questão: “Por que os conceitos que utilizamos para dar forma de generalidade à multiplicidade do caso não seriam metáforas?”. Eis o problema que me parece central : há alguma possibilidade de operarmos uma distinção epistêmica entre conceitos e metáforas naturalizadas? O que resta ao trabalho do conceito quando aceitamos tacitamente a crítica à perspectiva realista da verdade como adequação entre as representações mentais e uma noção de mundo dotado de autonomia metafísica?

Nós sabemos como Nietzsche está disposto a embaralhar radicalmente, ao menos em um primeiro momento, escrita conceitual e escrita metafórica. Ao falar, por exemplo, sobre as noção de causa e efeito, ele nos aconselha a toma-las como simples produções conceituais, ou seja : “como ficções convencionais para fins de designação, de entendimento, não de explicação”[7]. O conceito aparece assim como uma ficção naturalizada que, ao menos no caso de Nietzsche, elimina o sentido de uma procura da origem (Ursprung)[8] na qual a verdade da coisa estaria ligada positivamente à verdade do discurso. Tal perspectiva o permitirá afirmar, com uma ponta de satisfação : “Começa a despontar em cinco, seis cérebros, talvez, a idéia de que também a física é apenas uma interpretação (Auslegung) e disposição do mundo (nisso nos acompanhando, permitam lembrar !), e não uma explicação do mundo”[9]. A verdade é, assim, uma questão de produção, e não de adequação.

A questão que se coloca é pois : existiria uma perspectiva que poderia regular o conflito de interpretações e nos impedir de cairmos em um relativismo perspectivista incapaz nos fornecer um critério de avaliação das forças perlocucionárias da metáfora ? Pois deve haver algum plano capaz de servir de ponto de avaliação das metáforas que visam descrever (ou talvez, neste caso, seja melhor falar em produzir) estados do mundo. Deve haver um plano de valoração da multiplicidade dos processos de produção de metáforas

Sem dúvida, ele existe e Nietzsche nunca teve dúvidas disto. É ele que o leva a afirmar que : “a falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra ele; é talvez nesse ponto que a nossa nova linguagem mais espanta. A questão é em que medida ele promova ou conserva a vida, conserva ou até mesmo cultiva a espécie”[10]. Essa nova linguagem, liberada do peso metafísico das distinções morais e ontológicas entre essência e aparência, porta uma perspectiva de valoração imanente à vida pensada como multiplicidade inconsistente de jogos de forças. Assim, o perspectivismo se submete a um plano de imanência do qual uma filosofia da natureza assentada na noção de vida fornece o fundamento. Vida que aparece como valor que não pode ser avaliado e campo primeiro de produção de significações.

Neste ponto, encontramos também Deleuze. O mesmo Deleuze cujo construtivismo filosófico o levou a definir a tarefa filosófica como sendo, sobretudo, a produção plástica e metafórica de conceitos. Produção que, para não abrir as portas ao puro e simples relativismo, precisa admitir a posição de um plano de imanência pré-conceitual. De onde se segue uma afirmação capital como: “A filosofia é um construtivismo, e o construtivismo tem dois aspectos qualitativamente diferentes e complementares: a criação de conceitos e o esboço de um plano. Conceitos são como múltiplas ondas, subindo e caindo, mas o plano de imanência é a onda que permite às outras subir e descer”[11]. Novamente, a redução do conceito à metáfora pede a garantia de um plano de imanência[12].

Mas a questão central aqui é : como a criação metafórica de conceitos deve relacionar-se à pressuposição de um plano de imanência ? Qual o regime de discurso adequado à revelação deste construtivismo de dupla camada e capaz de impedir a naturalização das construções metafóricas ? Esta é uma questão que toca o modo de organização do discurso filosófico após o estabelecimento de uma nova linguagem supostamente desinflacionada do ponto de vista metafísico.

Nós podemos dizer que uma das respostas de Nietzsche se dá através do parágrafo 294 de Além do bem e do mal. Nele, Nietzsche sugere uma hierarquia dos filósofos conforme a qualidade de seu riso, colocando no topo aqueles capazes de uma risada de ouro. Ela indica aqueles que sabem rir : “de maneira nova e sobre-humana – e à custa de todas as coisas sérias”[13] (como as distinções ontológicas entre essência e aparência, Um e múltiplo etc.). Ou seja, o filósofo superior é capaz de adotar uma escrita necessariamente irônica. Pois só uma escrita irônica é capaz de afirmar sem, com isto, petrificar as afirmações em explicações sobre a positividade do estado do mundo. Só a ironia coloca o mundo como uma ficção que se afirma como ficção criadora. O riso aparece assim como nova aliança estética com um mundo liberado das dicotomias ontológicas de um pensamento da representação. O riso reconcilia o pensamento filosófico ao plano de imanência da vida como jogo de forças, já que ele indica a distância que o enunciador toma em relação ao enunciado, mostrando assim que a enunciação nào aspira naturalização alguma. “Tudo o que é profundo ama a máscara” dirá Nietzsche. Mas é o riso irônico que melhor expressa esse amor pelo jogo de máscaras; único jogo capaz de desvelar a força plástica da vida e de afirmar a temporalidade radical de um mundo onde nenhuma configuração deve subsistir de maneira perene. 

Aqui, já se desenha uma relação fundamental entre ironia e metáfora que guiará meu texto. Com Nietzsche, a ironia está necessariamente ligada ao colapso da distinção genérica entre conceito e metáfora e à compreensão da tarefa filosófica como produção plástica de metáforas que não devem ser naturalizadas.  O que nos mostra que metáfora e ironia andam necessariamente juntas, a não ser que a metáfora esteja submetida à hermenêutica do poema em seu regime de revelação da origem e dos descaminhos do ser (Heidegger).

 

Metáforas na clínica

 

Mas e o que dizer de Lacan? A princípio, poderíamos acreditar que ele não estaria distante desta perspectiva aberta por Nietzsche. Afinal, todos nós conhecemos o enunciado canônico “A verdade tem estrutura de ficção” [14]. Ele não é estranho no interior de uma experiência intelectual que abandonou, desde o início, todos os critérios realistas de verdade e que admitiu que as simbolizações e nomeações em operação na clínica analítica são necessariamente produção de metáforas: “O simbolismo analítico”, dirá Lacan, “só é concebível ao ser relacionado ao fato linguístico da metáfora”[15]. Assim, mesmo os dispositivos centrais de simbolização analítica, como o Falo e o Nome-do-Pai são assumidamente construções metafóricas. Lacan não teme em dar um passo a mais ao afirmar que a metáfora não deve ser distinguida do símbolo e que toda espécie de emprego do símbolo é metafórica. Em suma : “Toda designação é metafórica”[16].

Eis uma fórmula prenhe de consequências, já que ela não se limita ao domínio da clínica mas quer fornecer uma teoria geral da nomeação e do regime operatório do Simbólico, ou seja, do pensamento conceitual em geral. Provavelmente, é ela que legitimaria Lacan, por exemplo, a passar, sem escalas, da presença da metáfora na teoria do conhecimento a um certo regime de crítica à ontologia. Ao afirmar que: “o ser, nós apenas o supomos a certas palavras”[17], ou seja, o ser seria apenas uma suposição nominal, tal como uma metáfora, Lacan pode afirmar que: “toda dimensão do ser produz-se na corrente do discurso do mestre”[18]. Pois é o mestre que procura fazer a metáfora passar por designação ostensiva da Coisa. 

O que tudo isto poderia pois significar? Estaríamos diante de uma deriva relativista sempre aberta a um pensamento cuja concepção de verdade é claramente não-correspondencial e a concepção de linguagem claramente não-realista? Uma deriva que levaria a clínica ao relativismo de uma interpretação que não é mais capaz de fazer diferença entre produção de metáforas e organização conceitual do pensamento? 

Assim, como Nietzsche, Lacan não está interessado em sustentar um perspectivismo relativista que reduziria o problema da verdade à avaliação de critérios pragmáticos de eficácia utilitária. Ele é claro neste sentido, ao afirmar que : “é falso dizer que a interpretação está aberta a todos os sentidos sob o pretexto que se trata apenas de ligação de uma significante a um significante e, por consequência, de uma ligação louca. A interpretação não está aberta a todos os sentidos”[19]. Mas, então, qual a perspectiva que nos permite avaliarmos a força perlocucionária das interpretações corretas ? Como sabemos que as interpretações articulam-se como formalizações metafóricas, a pergunta pode ser recolocada nos seguintes termos : o que faz como que, na clínica, apenas algumas metáforas sejam capazes de simbolizar o desejo de forma correta ? A metapsicologia fornece algo como um plano de imanência a partir do qual a produção de metáforas pode ser avaliada ?

            Para responder a tais questões precisamos, primeiro, compreender a especificidade do conceito lacaniano de metáfora e seu modo de relação com o pensamento conceitual. Com Lacan, estaríamos diante de um conceito de metáforas como alegoria (o que significaria privilegiar seu caráter ficcional)? Estaríamos diante de metáforas como descrição de analogias, de similaridades ou, para ser mais exato de “semelhanças de família” que, enquanto modos de descrição, teriam um lugar privilegiado nos enunciados científicos, basta ver os trabalhos que aproximam metáforas e modelos explicativos[20] ? Conhecemos, por exemplo, alguns pesquisadores que vêm a utilização da metáfora na clínica como um modo de simbolização ligado a uma compreensão pré-proposicional e intuitiva de experiências pré-reflexivas[21].

Mas haveria um terceiro caso no qual encontraríamos a posição lacaniana? Lembremos também que, no que diz respeito a Lacan, toda análise de seu uso do conceito de metáfora deve levar em conta o peso posterior que a noção de letra irá ganhar progressivamente na economia de seu ensinamento.

            Vale a pena pois seguir o encaminhamento lacaniano a respeito dos usos da metáfora. Conhecemos sua definição : “a metáfora é radicalmente o efeito da substituição de uma significante por outro em uma cadeia, sem que nada de natural o predestine a esta função”[22]. Na verdade, tal definição é surpreendente pela radicalidade[23]. Não há nenhuma semelhança de família entre os termos em jogo na substituição metafórica. Ela é um puro jogo de substituição entre dois significantes que são elementos de contextos e de sistemas de significaçào totalmente autônomos entre si.

            Mas tal possibilidade de substituição entre termos sem contiguidade metonímica pressupõe uma outra operação que é fundamental para a compreensão da importância da metáfora na teoria lacaniana e que nos envia ao problema da relação entre metáfora e referência. Ë tal função de relação a referência que permite a Lacan de : “ligar a metáfora à questão do ser”[24].

            Normalmente, quando falamos da teoria lacaniana da metáfora, o exemplo privilegiado vem do verso de Victor Hugo Seu feixe não era avaro nem odiento, no qual o significante feixe vem no lugar do nome próprio Booz e coloca em relações dois sistemas distintos de significação afim de permitir o deciframento de um sentido ligado ao advento da paternidade. Mas Lacan serviu-se várias vezes de um outro exemplo, este mais inesperado e talvez mais interessante: “O gato faz au-au e o cachorro faz miau”. Tão interessante quanto o exemplo é o comentário : “A criança, de um só golpe, desconectando a coisa de seu grito, eleva o signo à função de significante, e a realidade à sofística da significação, e pelo desprezo da verossimilhança, abre a diversidade de objetivações a serem verificadas de uma mesma coisa”[25].

            O importante aqui é a idéia de uma operação da linguagem que se faz a partir do “desprezo pela verossimilhança”, quer dizer, a partir da abstração daquilo que se apresenta como experiência imediata. Neste sentido, a metáfora coloca o poder de abstração da linguagem através da negação da referência, ou ainda, da anulação da faticidade da referência. “Ao jogar com  o significante”, dirá Lacan, “o homem coloca seu mundo em questão a todo instante, isto até sua raiz”[26].

            Aqui, é Jakobson que permite a Lacan de fundar suas conclusões sobre a função negativa da metáfora, até porque o exemplo do gato e do canhorro vem dele. Neste caso, Jakobson via, na capacidade da criança em desconectar o sujeito e o predicado, a descoberta da predicação, quer dizer, a descoberta da capacidade da criança servir-se da estrutura proposicional do julgamento para negar aquilo que se apresenta como realidade imediata. De onde se segue a afirmação lacaniana segundo a qual a metáfora “arranca o significante de suas conexões lexicais”, já que não haveria metáfora se não houvesse distância entre o sujeito e seus atributos.

            Isto permite a Lacan mostrar como a linguagem é feita de significantes puros, ao invés de ser feita de signos. Por pressupor a negação da referência, a metáfora se coloca como significante puro desprovido de força denotativa. Significante que produziria sentido através de uma : “conotação pura e simplesmente liberada da denotação”[27]. Este é o ponto central para Lacan : simbolizar através de metáforas significa necessariamente simbolizar através de significantes puros que são a negação do empírico. Eles são a formalização da inadequação da linguagem às coisas sensíveis. Neste sentido, a metáfora  é escrita da inadequação entre a referência e um sistema dado de representações, entre as coisas sensíveis e a linguagem.

Notemos que a temática da inadequação porta uma certa astúcia. Não se trata de ver nas afirmações de que toda designação é metafórica e de que a metáfora é um puro jogo de significantes, a entificação de uma noção convencionalista  de linguagem. Pois seria necessariamente convencionalista toda noção de linguagem que admitisse apenas uma negação simples da faticidade da referência. Falar em inadequação significa que há algo da referência que não foi exaurido nos processos de simbolização. Esta é a particularidade do uso da metáfora em Lacan : para além do que Lacan chama de eixo do sentido na metáfora, há necessariamente algo que resta necessariamente unterdrück pela simbolização metafórica[28]. Esta é uma colocação central pois ela indica um limite ao regime próprio à simbolização analítica. Nas operações de sentido próprias à substituição de significantes, faz-se necessário reconhecer o que não passa de um sistema significante a outro. A este respeito, Lacan falará de “ruínas do objeto metonímico”, ou ainda, em “resíduo, dejeto da criação metafórica”[29] que resiste à nomeação. Assim, a metáfora pode aparecer como força de conservação de objetos que não podem ser expostos de maneira positiva sem se dissolverem na positividade do saber. Ela nega a naturalização imaginária da referência e abre uma falha no dispositivo de designação nominal do simbolismo. E se Lacan sempre articulou a metáfora à questão da permanência da verdade, é porque a metáfora aparecia como escrita da verdade como inadequação.

            Claro que esta noção de metáfora traz várias questões que ficam em aberto, mas vamos deixá-las de lado por enquanto. Notemos primeiramente a importância desta concepção de metáfora para Lacan. Nós sabemos que a teoria lacaniana do desejo é marcada pela experiência de inadequação radical entre a negatividade do desejo e o domínio dos objetos empíricos, daí a temática da alienação do desejo no Imaginário e seus impasses. Neste sentido, só mesmo uma concepção de metáfora como escrita da inadequação poderia ser capaz de simbolizar (e socializar) um desejo, no limite, que é desejo de nada que possa ser nomeado.

            De qualquer forma, notemos aqui uma conjunção central. Há para Lacan uma maneira de escrever a verdade, do mesmo modo que há  uma maneira de dizer a verdade (“Moi, la vérité, parle”). Mas ela só pode ser escrita como inadequação, da mesma maneira que o dizer da verdade só pode ser um meio-dizer. Esta tensão entre escrita e resistência ao escrito guiará Lacan durante toda sua trajetória intelectual. Mesmo após o esgotamento desta estratégia de simbolização metafórica como processo de subjetivação do desejo na clínica, a procura de uma escrita da inadequação marcará as tentativas lacanianas de utilização clínica dos matemas e do poema. O que nos explica porque a clínica lacaniana se esforçará em formalizar, primeiro através do significante puro e depois através da letra : “Algo que o discurso, ao fracassar, pode conseguir apreender”[30]. O uso lacaniano da metáfora está associado assim a um programa mais amplo de desenvolvimento de modos de formalização capazes de dar conta daquilo que aparece como irredutivelmente não-idêntico aos processos de conceitualização. Para Lacan, há certos objetos que só se manifestam através de experiências de negação e apenas processos de formalização que se desenvolvem na exterioridade do conceito podem formalizar tais negações[31].  

            Ou seja, contrariamente a Nietzsche, o uso que Lacan faz da metáfora não tinha como função sustentar uma perspectiva construtivista que transforma a verdade em uma questão pragmática de produção, retirando-a dos trilhos do pensamento da adequação. Para Lacan, dizer que a verdade tem estrutura de ficção não significa defender que ela seja uma metáfora naturalizada, na tradição da genealogia nietzscheana.  Isto significa simplesmente reconhecer a impossibilidade da posição da verdade em um discurso que procure legitimidade através de um princípio de adequação ou de um telos de transparência. O que não significa em absoluto que estejamos diante de uma modalidade astuta de ceticismo ou de ética da resignação que defenderia a impossibilidade do saber da verdade devido à finitude do sujeito. Algo como se a psicanálise fosse uma prática que visasse mostrar como toda palavra falha no acesso ao objeto do desejo. Desta forma, não haveria outra saída a não ser pregar uma ética do silêncio. Leitura defendida por Deleuze, para quem : “os psicanalistas ensinam a resignação infinita, eles são os últimos padres (não, haverá ainda outros depois)”[32]. Uma invectiva, no melhor sabor nietzscheano, contra uma suposta catequese da finitude em operação nas entrelinhas da psicanálise.

           

Sobre um pai morto

 

            Eu gostaria de responder este ponto através de um grande curto-circuito. Pois talvez a melhor estratégia aqui consista em expor um exemplo do uso lacaniano de metáforas na estruturação de dispositivos centrais para a clínica. Vejamos, por exemplo, como Lacan utiliza sua estrutura metafórica para repensar o processo de socialização do desejo através da identificação simbólica com a figura paterna.

            Antes de passarmos ao exemplo, há uma distinção a fazer no interior do conceito lacaniano de metáfora, já que há ao menos dois níveis distintos na função metafórica. É importante fazer tal distinção porque, por exemplo, o sintoma não é uma metáfora no mesmo sentido que o pai o é.

            Quando Lacan afirma que o sintoma é uma metáfora, ele alude ao jogo de substituição significante próprio a tal figura de linguagem. O sintoma é um significante que ocupa o lugar de um significante recalcado. Metáfora significa aqui recalcamento e a interpretação do sintoma aparece como uma certa arqueologia que nos leva a um texto recalcado, a uma outra cadeia significante. Há um deciframento do texto sintomático feito pelo interpretação analítica. 

Mas quando Lacan diz que o pai é uma metáfora, é verdade que ele alude ao jogo de substituição entre o significante do Desejo-da-Mãe e o Nome-do-Pai, mas creio que a questão central encontra-se em um outro nível. O pai é uma metáfora porque o verdadeiro pai é um pai morto e castrado, pai que não pode dizer nada sobre o gozo (já que ele é incapaz de indicar o nome do objeto empírico adequado ao gozo). Trata-se da aplicação do postulado da metáfora como negação da referência empírica. Ninguém na efetividade pode realizar a função simbólica do pai e colocar-se como realização do Ideal do eu : “O pai simbólico não está em lugar algum, ele não intervém em lugar algum”[33].

Devemos fazer aqui uma consideração de ordem histórica. Lacan pensa o problema da função paterna em uma época marcada exatamente por uma crise psicológica produzida pelo “declínio social da imago paterna”. Época na qual a personalidade do pai é : “sempre carente, ausente, humilhada, dividida ou postiça”[34]. Resultado claro do paradoxo moderno em conjugar, na mesma figura partena, a função simbólica e transcendental de representante da Lei, que responde pela normalização sexual e que será internalizada através do Ideal do eu, e a característica imaginária do pai enquanto rival na posse do objeto materno, rivalidade introjetada através do supereu repressivo.

Devido a uma razão estrutural da modernidade, o pai nunca está a altura de sua função simbólica. Trata-se de um problema que diz respeito à relação entre a função transcendental da Lei e a efetividade de sua representação empírica. Isto deixou Lacan com a questão de saber qual é a eficácia de uma estratégia clínica fundada no reforço da identificação à Lei simbólica em uma sociedade na qual a figura paterna é  sempre inadequada ?

É neste ponto que Lacan tenta fazer um verdadeiro renversement du pour au contre graças a sua concepção de metáfora como negação da referência. Ele se serve da situação histórica de declínio social da imago paterna e dá, a este pai humilhado, o poder de unir um desejo à Lei, através da relativização do pai imaginário com seus motivos de rivalidade. Se o pai é uma metáfora que, por ser metáfora, não pode ser plenamente naturalizada pelos pais empíricos, assim como não pode indicar de maneira positiva nenhuma referência empírica adequada ao objeto do gozo, à representação do sexual ou ao ideal concreto de identificação, então só um pai pensado desta forma pode dar uma determinação objetiva à inadequação radical do desejo humano[35]. O pai reduzido à condição de metáfora é a única construção capaz de socializar o desejo sem eliminar seu caráter de pura inadequação. Ele permite a identificação com sujeito com um significante puro desprovido de força denotativa.

A astúcia aqui consiste em inverter a impossibilidade de simbolizar a Coisa em uma escrita da Coisa como impossível. Pois a negação da Coisa aparece como regime privilegiado de sua apresentação. Mas tal inversão só é possível, tal regime de negação como manifestação só é possível porque, no fundo, Lacan trabalha com um conceito de negação ontológica : negação não como indicação de um não-ser, de uma privação (nihil privativum), da simples forma da intuição sem substância, do vazio, do nada, da falta ou de uma denegação que expõe a solidariedade entre opostos, mas como modo de manifestação da essência em sua relação auto-reflexiva.

Sim, aqui retornamos a velhas palavras, mas como dizia o próprio Lacan : “as velhas palavras são absolutamente utilizáveis”[36].  E neste ponto podemos apreender a diferença crucial entre Lacan e Nietzsche. Nós vimos como Nietzsche defende a indistinção geral entre conceito e metáfora para a afirmar a plasticidade de uma noção de vida pensada como multiplicidade inconsistente de jogos de forças. Mas algo impedia que as noções de vida, de jogo de forças e de vontade de potência fossem, por sua vez, apenas metáforas naturalizadas ou apenas mais uma dentre a multiplicidade de perspectivas possíveis de produção metafórica. Havia a pressuposição de um plano de imanência como campo intuitivo capaz de fornecer o padrão de avaliação de toda elaboração discursiva. É este recurso a imanência que está ausente da experiência intelectual lacaniana. No seu lugar (e como já disse, não devemos temer em usar velhas palavras), há uma ontologia, mas uma ontologia negativa fundada em uma noção crucial de negação ontológica como modo de manifestação da essência dos objetos nos quais o desejo poderá enfim se reconhecer. Pois  vale para Lacan o dito de Adorno, a verdade só pode aparecer como comportamento negativo em relação ao estabelecimento da positividade do saber. Na verdade, tudo se passa como se Lacan tentasse fundar a metapsicologia em uma ontologia negativa[37], e creio que seu uso clínico da metáfora só pode ser compreendido a partir desta perspectiva.

Isto permite a Lacan desenvolver uma crítica à aparência não através da posição de alguma forma de perspectiva transcendental de avaliação do mundo, mas através de uma experiência de negação articulada por um recurso extremamente particular à uma ontologia negativa. Por outro lado, a crítica de Deleuze sobre a ética da resignação própria a psicanálise perde seu foco, pois o que interessa a Lacan não é exatamente o pathos da finitude e da falta irreparável, mas a definição de um modo de negação que é presença do não-idêntico.

            Não obstante, há ao menos um ponto que aproxima os usos da metáfora em Lacan e Nietzsche : trata-se da articulação central entre metáfora e ironia. E não é por acaso que o exemplo canônico de substituição metafórica para Lacan seja o Witz.

            Lembremos que, em Nietzsche, a a ironia estava necessariamente ligada ao colapso da distinção genérica entre conceito e metáfora e à compreensão da tarefa filosófica como produção plástica de metáforas que não devem ser naturalizadas. Por outro lado, tal ironia manifestava-se através da compreensão da subjetividade como jogo de máscaras que expunha a multiplicidade possível através da assunção subjetiva do perspectivismo.

Para Lacan, a ironia permite escrever a relação de inadequação fundamental entre desejo e significante, assim como ela nos permite pensarmos a relação do sujeito com a inadequação de suas escolhas de objeto após o fim de análise. Há um “modo irônico de simbolização” em Lacan, o que nos explica porque o psicanalista conserva os motivos da centralidade da autoridade paterna e da sexualidade fálica no processo de socialização para, na verdade, subverte-los. Na clínica lacaniana, eles perdem a positividade de seu poder normativo e dizem o contrário do que sempre disseram. Pois a condição de metáfora serve apenas para sublinhar que estamos diante de construções que dão forma sensível à opacidade do gozo e da diferença sexual à inscrição significante. O que nos explica, por exemplo, porque Lacan fala em comédia para indicar o saldo da identificação fálica[38].

Nós sabemos como, para Lacan, o Falo é o emblema de toda simbolização possível do desejo e que os modos possíveis de sexuação estão submetidos ao primado da função fálica. Tal função articula-se de maneira diferente segundo a posição masculina ou feminina. Assim, Lacan afirmará que o homem não é sem tê-lo [o Falo] e a mulher é [o Falo] sem tê-lo. Mas Lacan não nos esquece de sublinhar que, no caso da posição masculina, há : “um parecer que se substitui ao ter”[39], enquanto que o ser na posição feminina só virá através da mascarada, ou seja, através de um modo no qual a mulher pode : “apresentar-se como tendo o que ela sabe perfeitamente não ter (...) ela faz da sua feminilidade uma máscara”[40]. Jogo de aparências, amor pela superfície que Lacan chamará exatamente de comédia. Uma comédia que o levará a reconhecer que: “é pelo intermédio de máscaras que o masculino, o feminino reencontram-se da maneira mais aguda”[41]. Mas a ironia deste jogo de máscaras não tem muito a ver com a ironia do jogo de máscaras nietzscheano. Na verdade, a ironia lacaniana consiste em reconhecer, através da posição de máscaras, a falta de objeto empírico adequado ao desejo, quer dizer a falta-à-ser que o Falo simboliza. Uma ironia que nos permite dizer que : “a nulidade da aparência não é outra coisa que a natureza negativa da essência”[42].

            Lacan não deixará de ter dificuldades no seu caminho, principalmente quando ele compreender este gozo fálico de máscaras como gozo perverso. Os desafios da perversão irão complexificar os modos de simbolização na clínica. Mas de qualquer forma, seu caminho, comparada à tradição nietzscheana indicará a possibilidade de um outro amor pela superfície. Um amor que não deixará de indicar caminhos possíveis para a recuperação da ontologia.



[1] NIETZSCHE, Friedrich, Além do bem e do mal, São Paulo : Companhia das Letras, 1993, par. 34

[2] RORTY, Richard, A filosofia e o espelho da natureza, Lisboa, Dom Quixote, p. 301

[3] Lembremos como Habermas, um leitor nem sempre muito generoso de Derrida, revolta-se contra a impossibilidade derridiana de : “especializar as linguagens da filosofia e da ciência em fins cognitivos, de tal modo que elas possam ser depuradas de tudo o que é metafórico e meramente retórico “  (HABERMAS, Jürgen, O discurso filosófico da modernidade, p.,182)

[4] LACAN, Jacques, Séminaire II, p. 265

[5] O que levou alguns a insistirem em uma possível proximidade entre os conceitos de ideologia e de fantasma socialmente partilhado (Ver, por exemplo, ZIZEK, Eles não sabem o que fazem : o sublime objeto da ideologia, Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1992).

[6] Aqui vale um adendo. Lembremo-nos , por exemplo, da maneira com que Freud desenvolve a prova de realidade através de considerações sobre a motricidade compreendida como a capacidade do eu em fugir de uma percepção desprazerosa e em desembaraçar-se do crescimento de excitações. Tal prova aparece apenas como: “a inervação motora que permite decidir se podemos fazer a percepção desaparecer ou se ela revela-se resistente” (FREUD, Complément métapsychologie à la théorie des rêves in Métapsychologie, Paris: Gallimard, 1968, p. 140). Quer dizer, através da resistência ao desaparecimento de um percepção desprazerosa que frustra a realização fantasmática do desejo, o sujeito aprende a encontrar outras maneiras de satisfação. Mas nada aqui nos permite passarmos de um simples índice de frustração de um objeto fantasmático alucinado a descrição objetiva e ao saber articulado a respeito de um estado do mundo. Ou seja, nada nos permite passarmos da prova de realidade ao princípio de realidade, da realidade como prova e resistência ao fantasma à realidade como princípio de representação consciente do : “estado real do mundo exterior” [die realen Vehältnisseder Aussenwelt vorzustellung] (FREUD, Formulation sur les deux principes du cours des événements psychiques in Résultats, idées, problèmes, Paris: PUF, 1998,  p. 136). O que nos explica como Lacan chegará a uma definição eminentemente negativa do Real.

[7] NIETZSCHE, Friedrich, idem, par. 21

[8] Ver a este respeito FOUCAULT, Michel, Nietzsche, a genealogia e a história in Microfísica do Poder, Rio de Janeiro : Graal,

[9] NIETZSCHE, Friedrich, Além do bem e do mal, op. cit., par. 14. Neste sentido, Nietzsche aceitaria tranquilamente a afirmação canônica de Deleuze, segundo a qual : “Tudo transformou-se em simulacro. Pois, por simulacro, não devemos compreender apenas uma simples imitação, mas, principalmente, o ato através do qual a idéia de um modelo ou de uma posição privilegiada é contestada, destruída” (DELEUZE, Différence et répétition, Paris: PUF, 2000, p. 95). Neste sentido, a noção de simulacro pode nos explicar o que Nietzsche tem em mente ao afirmar que : “O verdadeiro mundo, nós o expulsamos : que mundo resta ? o aparente, talvez ? ...Mas não ? Com o verdadeiro mundo expulsamos também o aparente “ (NIETZSCHE, O crepúsculo dos ídolos, São Paulo : Abril Cultural, 1987, p. 113)

[10] NIETZSCHE, Além do bem e do mal, op. cit., par. 4

[11] DELEUZE e GUATARRI, O que é a filosofia? Ver, a respeito desta frase, o comentário de Bento Prado in PRADO JR., O plano de imanência.in ALLIEZ, Eric (org.); Deleuze

[12] Sobre a filosofia deleuzeana como figura da filosofia da imanência, ver BADIOU, Alain, Deleuxe : o clamor do ser, Rio de Janeiro : Jorge Zahar)

[13] NIETZSCHE, Além do bem e do mal, op. cit., par. 294

[14] Como, por exemplo em LACAN, Séminaire IV, Paris : Seuil, p. 253

[15] LACAN, Ecrits, Paris : Seuil , p. 703

[16] LACAN, Séminaire XVIII, sessão do 10/02/71

[17] LACAN, Séminaire XX, p. 107

[18] ibidem, p. 33

[19] LACAN, Séminaire XI, p. 225

[20] Ver, por exemplo, HESSE, Mary; Language, metaphor and a new epistemology in The construction of reality, Cambridge: Cambridge University Press, 1986, pp. 147-161

[21] Ver, por exemplo FRIE, Roger ; Methapor and Aesthetic experience in Subjectivity and Intersubjectivity in Modern Philosophy and Psychoanalysis, Lanham : Rowman and Littlefield, 1997, pp. 147-154

[22] LACAN, Ecrits, op. cit, p. 890

[23] Tal concepção aproxima Lacan de uma concepção surrealista de metáfora. Como dira Breton, a respeito do jogo surrealista de um no outro : “Todo e qualquer objeto está ‘contido’ em qualquer outro”. Ver, por exemplo, os versos de Baudelaire que exemplificam o postulado de Breton : « Ta gorge qui s’avance et qui pousse la moire/ Ta gorge triomphante est une belle armoire / Dont les panneaux bombés et clairs / Comme les boucliers accrochent les éclairs » (BRETON, Perspective cavalière, p. 53)

[24] LACAN, ecrits, p. 528

[25] LACAN, Ecrits, p. 805

[26] LACAN, Séminaire IV, p. 294

[27] NANCY, Jean-Luc et LABARTHE, Pierre-Lacoue ; Le titre de la lettre, Paris : Galilée, 1973, p. 76

[28] Cf. LACAN, Séminaire XIV, sessão de 14/12/66. Há uma distinção importante entre Unterdrückt e Verdrängt neste contexto. Nós sabemos que o recalcamento e o retorno do recalcado são a mesma coisa. Mas o que é unterdrück não passa por este sistema de interversões.

[29] LACAN, Séminaire V. p. 53

[30] LACAN, Discours de Tokio, non-publié

[31] Neste sentido, a proximidade entre Adorno e Lacan é real, mas este é um assunto para outro artigo. Fica apenas a indicação de que Adorno também identifica a necessidade de formalizar a negação própria ao resto não-conceitual perdido pelos processos de conceitualização como sendo o desafio central para a filosofia. Assim, ele afirmará que : “uma confiança, mesmo problemática, na possibilidade para a filosofia de suprimir o conceito através do conceito, o que elabora e amputa, e de chegar a alcançar assim o não-conceitual (Nichtbegriffliche) é indispensável à filosofia”. Um não-conceitual como verdade do conceito que, como Lacan, só pode ser alcançado em uma “outra cena” (anderen Schauplatz). Esta outra cena será dada pelas fomralizações estéticas. (ADORNO, Negative Dilektik, Frankfurt : Suhrkamp, 1975, p. 21).

[32] DELEUZE, Gilles et PARNET, Claire ; Dialogues, Paris : Flammarion, 1977, p. 100

[33] LACAN, Séminaire IV, p. 210.

[34] LACAN, Autres ëcrits, p. 61. E é muito significativa esta tendência lacaniana em mostrar que todos pais presentes nos grandes casos clínicos freudianos (Dora, O pequeno Hans, O homem dos loboso, O homem dos ratos) são afetados por uma carência fundamental.

[35] O que nos explica porque o pai é exatamente este que deve demonstrar que ele tem o Falo, não como insígnia de potência, mas como marca de indeterminação. Pois : “o Falo, lá onde ele é esperado como sexual, só aparece como falta, e é está a sua ligação com a angústia” (LACAN, Séminaire X, sessão do 05/06/63). Por outro lado, fica evidente que, sob a ótica lacaniana, só um pai morte poderia reconhecer um desejo que é radicalmente desprovido de objeto. Não há outro lugar na teoria lacaniana onde a morte apareça, de maneira tào evidente, como manifestação fenomenológica de uma função transcendental que insista par além dos objetos empíricos. Em Lacan, a morte como um gênero de negação sem conceito (ou, ao menos, sem um regime conceitual definido no interior de um pensamento da adequação) é sempre ligada a uma função lógica própria a indeterminação fenomenal do que : “nunca é um simples ente” (HEIDEGGER, Essais e conférences, Paris : Gallimard , 1958, p. 212)

[36] LACAN, Séminaire XX, op. cit., p. 55

[37] Sublinhemos como Lacan nunca viu problemas em reconhecer que : “eu tenho minha ontologia, porque não? – como todo mundo tem uma, ingênua ou desenvolvida” (LACAN, Séminaire XI, p. 69). Badiou nos mostra uma via para pensarmos a negação ontológica em Lacan quando ele lembra que há, na psicanálise lacaniana, um acesso à ontologia já que : “o inconsciente é este ser que subverte a oposição metafísica do ser e do não-ser” (BADIOU, Théorie du sujet, Paris : Seuil, p. 152). O inconsciente é o ser pensável a partir de uma ontologia fundada sobre o negativo. Tal inconsciente é sobretudo o inconsciente da pulsão, o ça. Lacan vê, na pulsão : “uma noção ontológica absolutamente central, que responde a uma crise na consciência” (LACAN, Séminaire VII, p. 152). Mas esta pulsão é pulsão de morte, já que toda pulsão é virtualmente pulsão de morte. O que há de ontológico neste inconsciente pulsional é pois a negação que funda a pulsão de morte. E se o inconsciente : “traz ao ser um ente apesar da sua não-realização” (LACAN, Séminaire XI, p. 117) é porque ele nos obriga a pensarmos uma negação que possa apresentar-se enquanto negação.

[38] « O falo (…) é a essência do cômico. Desde que vocês falam de qualquer coisa que tenha relaç  ão com o falo, é o cômico (...) um cômico triste” (LACAN, Séminaire XXII, sessão de 18/02/75)

[39] LACAN, Ecrits, p. 694

[40] LACAN, Séminaire V, pp. 453-454.

[41] LACAN, Séminaire XI, p. 99

[42] HENRICH, Dieter, Hegel im Kontext, frankfurt : Surhkamp, p. 117

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