Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, sábado, 13 de setembro de 2003 • Página Inicial

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Vladimir Safatle

THEODOR ADORNO (Ou a Emancipação pela Arte)

Onze de setembro de 2003 não foi uma data importante apenas por marcar os 30 anos do golpe militar no Chile de Salvador Allende. Onze de setembro de 2003 foi importante por marcar o centenário de Theodor Wissengrund Adorno: um pensador cujo legado está longe de ser ponto pacífico.

  De fato, poucos foram aqueles que influenciaram, de maneira decisiva, um conjunto tão vasto de áreas do saber no século XX. Filosofia, crítica da cultura, musicologia, sociologia, estudos de mídia, teoria política: em todos esses domínios ainda ressoa o impacto da produção conceitual de Adorno. A extensão de tal influência é resultado direto da tarefa intelectual à qual Adorno se impôs. Talvez ela tenha sido a melhor encarnação da tentativa, própria à Escola de Frankfurt, de implementação de um programa interdisciplinar de análise social capaz de dar conta da crise do marxismo por meio da articulação cerrada entre reflexão filosófica e ciências sociais empíricas.

  Ele encontrará sua enunciação canônica neste texto, de 1937, que é visto como uma espécie de ‘‘manifesto’’ da Escola de Frankfurt: Teoria tradicional e teoria crítica, de Max Horkheimer. O que estava lá em jogo não era apenas uma maneira de fazer filosófico que força seus próprios limites ao caminhar em direção a domínios autônomos. O que estava lá era também uma compreensão peculiar dos métodos e da força especulativa das ‘‘ciências humanas’’.   Compreensão que permitiu a Adorno inaugurar uma praxis especulativa suportada pela costura cerrada entre filosofia, psicanálise, estética e teoria social. Livros como Dialética do esclarecimento e, principalmente, Dialética negativa são exemplos maiores de tal praxis e serão lembrados como momentos centrais da história do pensamento do século XX.

  Mas, apesar de tudo, Adorno acabou passando para a história como o crítico ácido e pessimista do capitalismo tardio e de sua tendência implacável em instaurar uma sociedade totalmente administrada. Arauto de uma arrogância altiva de mandarim germânico, sua tendência a abandonar-se ‘‘aos pontos mais negros da resignação’’ (isso segundo Jürgen Habermas), o teria impedido de esboçar qualquer coisa como um programa positivo de transformação social e de engajamento. Isso mostraria como sua dialética negativa teria acabado necessariamente em um impasse niilista. Impasse próprio a estes que, diante das tarefas emergenciais de transformação e de compreensão da complexidade da vida social, só saberiam repetir afirmações como: ‘‘a filosofia, que já parecera superada, mantém-se em vida apenas porque o momento de sua realização foi perdido’’. Ou seja, estando a promessa de reconciliação entre filosofia e realidade impossibilitada devido à mutilação da realidade submetida aos ditames do capitalismo, resta à filosofia exercitar-se no negativismo da crítica sem limites. E, para completar o quadro, não deveríamos esquecer, este sim um pecado supremo, o desprezo professoral, do musicólogo amante de Schönberg, pelo jazz.

  Sim, essa é, a grosso modo, a imagem que o presente gosta de difundir de Adorno. No entanto, talvez esteja chegando o momento de colocá-la em questão. Dois pontos mereceriam uma análise um pouco mais cuidadosa: o problema da negação e o problema da praxis. Nesses dois quesitos, as proposições de Adorno estão longe de serem triviais.

  É bem provável que ainda não compreendemos corretamente as múltiplas funções da negação em Adorno, principalmente quando tentamos reduzir o trabalho adorniano do negativo a uma crítica totalizante da razão que resvala no niilismo. Para compreender este ponto complexo da filosofia adorniana, talvez tenhamos que aprender que, em certas situações, negar não é apenas resignar-se ou deixar-se levar pelo ânimo de um desejo de destruição. Há momentos em que dizer ‘‘não’’ é a única palavra que encontramos para conservar a singularidade de coisas que não encontram lugar em uma realidade mutilada. Nestes momentos, negar é dar a palavra adequada à singularidade. Esta astúcia dialética fundamental ainda nos é estranha. Temos dificuldades em refletir sobre a ‘‘experiência do negativo’’ em uma sociedade como a nossa, que tende a não reconhecer dignidade filosófica alguma a este tipo de experiência, já que está submetida ao pensamento identitário de uma racionalidade reduzida a sua condição instrumental. Toda a temática adorniana a respeito da irredutibilidade da força negativa da experiência de não-identidade, força que pode garantir tanto a sobrevivência do sujeito quanto a resistência do objeto, deve ser compreendida nesta chave e, por isso, guarda ainda uma atualidade inaudita. Ela não é apenas fruto do diagnóstico de uma época marcado pelo primado da técnica e da razão instrumental. Há, por que não usar as palavras corretas, uma questão ontológica que não deveria ser estranha a um pensamento dialético.

  Por fim, o problema da praxis em Adorno talvez não esteja bem posto pela posteridade. Valeria a pena perguntar por que o testamento de Adorno é necessariamente uma teoria estética, e não uma teoria de transformação social.

  ‘‘Agora, o senhor volta a ser o jovem que se identifica com as correntes mais recentes, e eu o velho conservador.’’ Foi assim que, em 1961, o pianista Eduard Steuermann, intérprete de Schönberg, referiu-se a Adorno. Nós costumamos falar muito sobre o pessimismo adorniano a respeito de uma sociedade que caminharia para a administração total e esquecemos o entusiasmo desta identificação ‘‘com as correntes mais recentes’’ da música dos anos 1960. Ela nos diz muito. Pois foi principalmente nas experiências estéticas de vanguarda, e em particular nas experiências musicais do último Schönberg e da Escola de Darmstadt, que Adorno encontrou o material capaz de formalizar uma experiência radical da negatividade fundamental para a resistência da subjetividade em nossa época. Como se, atualmente, a singularidade do sujeito só pudesse aparecer como dissonância. Construir catedrais através de dissonâncias, eis algo que a estética contemporânea nos ensinou. Acreditar que esta engenharia de dissonâncias pode nos fornecer coordenadas para pensarmos uma práxis social renovada que nos guie em um projeto de emancipação é uma aposta que Adorno sustentou até o fim. Uma aposta eminentemente dialética. Mas, para compreendê-la, precisamos ainda aprender a ver, na estética, algo mais do que simplesmente uma filosofia da arte.

Professor de filosofia na USP e encarregado de curso no Colégio
Internacional de Filosofia, em Paris, Vladimir Safatle reveza-se neste
espaço com André Lemos, Denilson Lopes e Ligia Cademartori.
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