Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, sábado, 8 de novembro de 2003 • Página Inicial

PULSAR

Vladimir Safatle

PERVERSIONS FOR SALE

Sociedade de Consumo Criou um Novo Supereu

Um dos principais conceitos criados por Freud para a análise de fatos sociais foi o de supereu. Ao tentar explicar a gênese da consciência moral, do sentimento de culpabilidade, dos ideais sociais do eu e da internalização da lei, Freud deparou-se com um processo no qual socialização e repressão convergiam em larga medida. Hoje, as páginas do Mal estar na civilização que tratam desta imbricação entre socialização e repressão são arqui-conhecidas. "Toda cultura deve necessariamente se edificar sobre a repressão e a renúncia pulsional" é uma frase que ressoou como um programa crítico durante todo o século XX.

A grosso modo, ela indicava os resultados sociais de uma relação ambivalente que se dá inicialmente no interior da família burguesa; relação marcada pela sobreposição entre rivalidade e identificação que aparece de maneira mais visível no conflito entre o filho e aquele que sustenta a lei paterna. Para ser reconhecido como sujeito e como objeto de amor no interior da esfera social e familiar, faz-se necessário que o sujeito se identifique exatamente com aquele que sustenta uma lei repressora em relação às exigências pulsionais. O resultado é a internalização psíquica de uma "instância moral de observação", no caso, o supereu resultante desta identificação parental, que faria com que todo gozo declarado tivesse o gosto amargo de sentimento de culpa. Daí porque, segundo Freud, o sentimento de culpa: "seria o mais importante problema no desenvolvimento da civilização".

De fato, tudo isto é praticamente um lugar comum atualmente. Mas algumas modificações radicais ocorreram em certos processos sociais e elas fazem com que o problema do supereu ganhe hoje novas configurações. Para entendê-las, valeria darmos um passo para trás.

Muito há ainda a se dizer, por exemplo, a respeito de certas articulações possíveis entre Freud e Max Weber como teóricos da modernização e suas conseqüências. Não deixa de ser tentador lembrar como este supereu que articula uma consciência moral fundada na repressão de monções pulsionais teve uma função social preciosa no desenvolvimento do capitalismo como sociedade de produção. Weber, ao insistir que a racionalidade econômica dependia fundamentalmente da disposição dos homens em adotar certos tipos de conduta, lembrava que nunca haveria capitalismo sem a internalização psíquica de uma ética do trabalho. Ética esta que Weber encontrou no ethos protestante da acumulação de capital e do afastamento de todo gozo espontâneo da vida. O trabalho que marcava o capitalismo como sociedade de produção é um trabalho que não visava exatamente o gozo dos bens, mas a acumulação obsessiva daqueles que: "não retiram nada de sua riqueza para si mesmo, a não ser a sensação irracional de haver 'cumprido' devidamente a sua tarefa". Ou seja, pontes devem ser traçadas entre o supereu freudiano e a ética do trabalho de Weber. Pontes estas que nos indicariam questões interessantes sobre a economia pulsional da sociedade de produção.

Mas o fato central hoje é que não vivemos mais exatamente em uma sociedade de produção, até porque a produção deixou de ser o fato econômico fundamental a ser explicado. Vivemos em uma sociedade do consumo. É o consumo que procura direcionar todas as formas de interação social e de desenvolvimento subjetivo. Cada vez menos, os sujeitos precisam estar envolvidos diretamente nos processos de produção e estão envolvidos em processos de ampliação do consumo, de manuseio da retórica do consumo. Atualmente, os sujeitos não são vistos primeiramente como trabalhadores, mas como consumidores, e isto faz toda a diferença. Esta mudança de paradigma, da produção para o consumo, traz uma série de conseqüências fundamentais também para a psicanálise, a começar pelo fato de que os modos de alienação necessários para entrar no mundo do trabalho têm muito pouco a ver com os modos de alienação que fazem parte do mundo do consumo. O mundo capitalista do trabalho está vinculado a ética do ascetismo e da acumulação. O mundo do consumo pede uma ética do direito ao gozo.

Lacan já tinha percebido isto ao insistir que a verdadeira figura do supereu não estava mais vinculada à repressão das monções pulsionais. Já há muito, não vemos mais discursos sociais que pregam a repressão ao gozo. Mesmo os discursos educacionais hoje são pautados pela "educação pelo prazer", ou seja, aprendizado submetido ao princípio do prazer. O "autoritarismo falocêntrico" não teria mais lugar nas nossas sociedades. Hoje, o verdadeiro discurso que sustenta os vínculos sociais da contemporaneidade é mais maternal. Trata-se do: "cada um tem direito a sua forma de gozo". Lacan nos lembrou deste ponto ao afirmar que o verdadeiro imperativo do supereu é: "Goza!", ou seja, o gozo transformado em uma injunção. Assim, ao invés da repressão ao gozo, a verdadeira mola da economia pulsional da sociedade de consumo é a administração do gozo. Neste "mercado do gozo", como dizia Lacan, a culpabilidade não vem da interdição ao desejo. Hoje, culpado é aquele que não é capaz de gozar (no sentido daquele que não é capaz de encontrar em um mercado das multiplicidades plásticas uma forma adequada de gozo).

Esta nova forma de supereu traz necessariamente uma nova maneira dos sujeitos lidarem com suas fantasias. Em uma situação histórica na qual o supereu aparece como instância direta de repressão, as fantasias têm naturalmente o destino neurótico da censura, do recalcamento e da denegação. "Assumir" suas fantasias à luz do dia seria tudo o que o neurótico seria incapaz. Mas, hoje, em uma situação histórica na qual o supereu aparece vinculado ao imperativo do gozo, os sujeitos são, a todo momento, chamados a assumir suas fantasias, de preferência na arena do mercado. Marcas comportadas como Versace divulgam campanhas publicitárias que jogam com a androginia, a ambigüidade sexual e a inversão de papéis. Calvin Klein, através da estética heroína-chic, colocou em circulação imagens ideais de corpos doentes e auto-destrutivos. Toda a gramática das fantasias sádicas e masoquistas em breve poderá ser encontrada no catálogo de vendas da C&A . Teremos roupas de latex para executivas descompromissadas, e por aí vai. Isto demonstra como uma certa perversão (já que o perverso seria, ao menos na visão do neurótico, exatamente aquele capaz de passar ao ato com suas fantasias) tende a virar ideal social a serviço da ampliação do processos de consumo. Não se trata de uma constatação de ordem moral. Trata-se apenas de perguntar sobre o que podemos esperar de uma certa mercantilização da perversão.

Professor de filosofia na USP e encarregado de curso no Colégio
Internacional de Filosofia, em Paris, Vladimir Safatle reveza-se neste
espaço com André Lemos, Denilson Lopes e Ligia Cademartori.
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