MEANDROS DA INFLUÊNCIA
A importância do pensamento francês na América
VLADIMIR SAFATLE
Compreender o processo de formação do pensamento
nacional a partir da peculiaridade dos nossos regimes
de recepção das idéias européias: esse programa de estudos conta hoje com uma verdadeira tradição bibliográfica que encontra suas raízes nos trabalhos pioneiros
de Antonio Candido sobre os desrecalques localistas
responsáveis pela formação da literatura brasileira.
Fenômeno de recepção que não é apenas nacional, marcando a dinâmica de formação de países de economia
periférica, o movimento de migração das idéias européias tem um eixo de especial importância na história
cultural da América Latina: os desdobramentos do pensamento francês. É a fim de oferecer um balanço e indicar novos pontos de fuga de tal eixo que chega às livrarias "Do Positivismo à Desconstrução - Idéias Francesas na América".
O livro é composto por nove artigos. Três referências
centrais balizam seu campo de análise: o destino dos
ideais positivistas no Brasil, o balanço do que foi deixado pela missão francesa de fundação da Universidade
de São Paulo e o debate atual em torno da recepção daquilo que o mundo anglo-saxão chama de "pós-estruturalismo", ou seja, a constelação heteróclita que gira
em torno dos pensamentos de Deleuze, Derrida, Lyotard e Foucault. No entanto o livro se abre também para
a análise de outras questões pontuais como: o impacto
da idéia de "latinidade" na América do Sul (Regina Salgado Campos), a decadência da influência francesa no
início do século 20 (Denis Rolland) e a articulação entre
Alejo Carpentier e o surrealismo de Pierre Mabille (Irlemar Chiampi).
Sobre o problema da aclimatação brasileira do positivismo, Alfredo Bosi oferece um ensaio com vasta pesquisa historiográfica visando a identificar o viés modernizador assumido pelo movimento em solo nacional.
Por sua vez, vários artigos são dedicados à análise do legado da missão francesa de fundação da USP. Heliana
Angotti Salgueiro analisa a atualidade da geografia urbana de Pierre Monbeig, além de articulá-la com os padrões de urbanismo de Aarão Reis. Carlos Guilherme
Mota evoca o panorama de formação do pensamento
historiográfico uspiano a partir do contato com historiadores franceses. Maria Isaura P. de Queiroz fornece
um depoimento pessoal a respeito de Roger Bastide.
PÓS-ESTRUTURALISMO
Com os artigos de Olgária
Matos e de Leyla Perrone-Moisés adentramos no terceiro momento da história da recepção brasileira do pensamento francês: a absorção do pós-estruturalismo. O
próprio uso do termo guarda uma certa ironia. "Pós-estruturalismo", como bem lembra Leyla Perrone-Moisés, é um termo cunhado pelo mundo anglo-saxão e
simplesmente desconhecido no cenário francês, que
sempre fez questão de ressaltar a inexistência de grandes linhas comuns entre, por exemplo, a desconstrução
de Jacques Derrida e a filosofia da imanência de Gilles
Deleuze (de forte inspiração espinosista).
O próprio uso entre nós do termo "pós-estruturalismo", com sua agenda vinculada aos "cultural studies"
norte-americanos (feminismo, pós-colonialismo, pós-modernismo etc.), indicaria uma inusitada "importação de segunda mão" das idéias francesas via EUA.
No entanto a teoria da importação de segunda mão
não dá conta das estratégias de leituras que estão em jogo na absorção nacional da última leva do pensamento
francês. Nesse sentido, o artigo de Olgária Matos é sintomático por lançar luz sobre um aspecto fundamental,
mas normalmente negligenciado, da experiência intelectual da filosofia francesa contemporânea. Ele demonstra que as experiências intelectuais de Foucault,
Derrida e Deleuze são marcadas, principalmente, por
uma problematização filosófica de métodos de leitura
de textos da tradição.
Ou seja, se há algo que as une, trata-se de uma partilha
de método, e não exatamente uma partilha de objetos
ou programas positivos. Um problema de método a
que só alguém formado na tradição da filosofia universitária francesa (Martial Guéroult, Victor Goldschimidt) poderia ser sensível. Isso pode nos explicar a razão pela qual tal discussão nunca norteou os debates
norte-americanos. O que mostra a singularidade do debate brasileiro em torno da desconstrução em relação
ao cânone atual da agenda anglo-saxã.
O saldo do livro pode ser então compreendido como
um indicativo a respeito da configuração atual do cenário universitário brasileiro e suas possibilidades abertas.
Se é verdade que o tempo da influência monolítica
francesa em nossos departamentos está definitivamente superado, não foi exatamente para colocar em seu lugar outra influência monolítica. Um certo ritmo próprio de processos de recepção foi capaz de se instalar,
um conjunto de questões foi conservado, ao mesmo
tempo em que a pesquisa universitária brasileira desenvolvia maior sensibilidade para outras tradições de pensamento. Aos poucos, a angústia da influência depôs
suas armas.
VLADIMIR SAFATLE é professor no departamento de filosofia da USP.
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