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Construir estradas com ruínas :

A estética do real de David Lynch

 

 

Resumo: Trata-se de uma leitura da sequência A estrada perdida e Mullholand Drive, de David Lynch, que visa levar em conta o lugar ocupado elo conceito de “experiência do Real” na organização dinâmica das duas narrativas.

 

Palavras-chaves : David Lynch, real, sexo, des-identidade, road-movie

 

 

 

Mène-moi vers la vie

Au-delà de la grille basse

Qui me sépare de moi même

Qui divise tout sauf mes cendres

Sauf la terreur que j’ai de moi.

Paul Éluard

 

 

“Você nunca me terá”. Ela diz esta frase depois de transar com ele na frente de um carro estacionado com faróis ligados. Depois, ela entra em uma barraca de beira de estrada para desaparecer de uma vez por todas. Ele muda de persona e a segue até a barraca. Mas, lá, só encontra um homem com maquiagem de quem acabou de sair de filmes de terror série B. Um homem com câmera em punho que grita : “Afinal qual é o seu nome ?”. Esta não é uma pergunta tão fácil quanto poderia parecer. Como veremos, sua dificuldade vem da frase que ainda ressoa na cabeça deste personagem que não pode responder pelo seu nome : “Você nunca me terá”. Ela talvez nos dirá porque só um tempo como o nosso poderia produzir um filme como A estrada perdida.

            Diz-se normalmente que Lynch transformou-se em um cineasta obscuro, destes que amam narrativas que se dissolvem em um emaranhado de labirintos e falsas pistas. Mas podemos dizer também que ele é alguém que deixa muito claras suas intenções. Por exemplo, em um certo sentido, a história de A estrada perdida é banal. Ela é dividida em duas. Na primeira, o saxofonista Fred Madison assassina sua mulher misteriosa, Renée. Entre os dois, pairava uma atmosfera de silêncio catastrófico e traição feminina. Fred não lembra do assassinato. Ele só tomou conhecimento através de um video feito por alguém que entrou em sua casa e o filmou no momento em que estava de joelhos, no quarto, ao lado do corpo estraçalhado da mulher. Na segunda parte, o mecânico Pete Dayton  começa a ter um caso com Alice : amante de Mr. Eddy/ Dick Laurent, gangster-produtor de filmes pornográficos. Laurent descobre o caso e Alice convence o mecânico a fazer um assalto e fugir com ela em direção ao deserto. Lá, no meio do deserto, ela desaparece depois de transar com Pete.

            O material narrativo é banal, mas a composição não. Toda a peculiaridade de A estrada perdida está neste tensão entre elementos apodrecidos da linguagem cinematográfica e processos de composição capazes de provocar estranhamento diante daquilo que era muito visto[1]. São eles que vão tecendo a costura entre as duas histórias no interior do filme, são ele que vão duplicando detalhes e personagens (Fred Madison/Peter Dayton; Renée/Alice) criando uma espécie de banda de Moebius vertiginosa na qual o verso transforma-se necessariamente no reverso.

            Mas a complexidade das duplicações de Lynch é relativa pois submete-se a um modelo geral de organização.  Neste sentido, o título, A estrada perdida, não poderia ser mais didático e indicativo. Ele remete necessariamente a um road-movie, mas sem esquecer de lembrar que se trata de um road-movie fracassado : história de alguém que se perdeu no meio do caminho.

Aqui, já estamos diante de um dos elementos centrais dos filmes de Lynch : a estrada. Ela não está presente apenas em A estrada perdida, de 1997. Coração selvagem e Um história real¸ só para ficar entre os mais evidentes, são filmes estruturados como um road-movie. Mullholand drive, que foi apresentado como a continuação de nosso filme, também é algo como um road-movie, e não é por acaso que placas de trânsito, indicações de ruas e outros sinais de deslocamento aparecem de maneira tão recorrente no filme[2].

Mas aqui vale a pergunta : o que é exatamente um road-movie ? Podemos dizer que ele é, antes de qualquer coisa, o sucedâneo contemporâneo dos antigos romances de formação. Nós seguiremos alguém que irá fazer uma viagem e chegará ao seu destino, mas neste trajeto ele irá se deparar com um acontecimento que destruirá seu antigo e limitado horizonte de compreensão. Desta destruição, ele sairá transformado em outra pessoa. Depois desta viagem, ele encontrará o verdadeiro ponto de chegada e nunca mais será o mesmo, ele mudará de identidade. Dito isto, A estrada perdida é o road-movie perfeito ou, talvez, o único road-movie sobre a impossibilidade de um road-movie.

Sendo A estrada perdida um road-movie faremos pois três perguntas centrais : Qual o ponto de chegada ? Qual o acontecimento ? Qual impetus move o trajeto ? Elas vão nos permitir encontrar os pontos fixos que estruturam a narrativa do filme.

Comecemos pela primeira pergunta.

 

Dick Laurent is dead

 

“Dick Laurent is dead”. Quando Fred Madison ouvir esta frase no interfone de sua casa, o filme começará. Quem a pronunciou, ninguém sabe. Durante quase todo o filme este será um enunciado sem enunciador, uma voz sem corpo. Mas esta frase será uma espécie de fórmula capaz de organizar o sentido da ação cinematográfica, tal como o imperativo “The slepper must awake”  repetido ad infinitum em Duna.

Quem é Dick Laurent ? Isto nos só saberemos na segunda parte do filme : um gangster, empresário da indústria pornográfica e que nutre uma relação “paternal” com Pete, aquele que ocupará o lugar de Fred Madison.  Figura, ao mesmo tempo, paternal e obscena : esta conjunção não pode nos deixar indiferentes. Ela aparece em vários filmes de Lynch. Suas figuras de autoridade sempre estão no exato ponto onde a enunciação da Lei e assunção  do gozo se cruzam. Neste sentido, nada mais emblemático do que a cena na qual Dick Laurent, dirigindo seu carro na velocidade definida pela Lei, é ultrapassado por um motorista apressadinho. A punição virá sem perdão : o motorista será jogado fora da estrada, arrancado de seu carro, colocado de joelhos com uma arma apontada para sua cabeça enquanto Laurent espanca-o gritando que ele é um irresponsável por correr daquele jeito, que ele deveria aprender a respeitar a Lei já que 30% dos acidentes de estrada acontecem em situações como aquela. A enunciação da Lei aparece com forma suprema de realização de um gozo sádico.

Matar Dick Laurent é pois uma forma de procurar suspender esta Lei que esconde um gozo obsceno em suas entrelinhas. Desejo de revelação que encontramos em outros filmes de Lynch. O que é a história do seriado de televisão Twin Peaks, por exemplo, a não ser o processo aparentemente infinito de dissolução da imagem de ordem e virtude de uma pequena cidade nas Montanhas em um emaranhado de modos inconfessáveis de gozo ? Como se o verdadeiro desejo de Lynch fosse desvelar a máquina desejante que se esconde por trás das formações da Lei. Um pouco como Joseph K., o herói kafkiano de O processo, que, ao entrar no tribunal e enfim conseguir folhear as páginas do livro da Lei, só encontra desenhos pornográficos.

“Dick Laurent is dead”. Quando esta frase for repetida, quando o mesmo Fred Madison enunciá-la em seu interfone e “falar a si mesmo”, o filme terá terminado. O trajeto estará completo : a mensagem parece encontrar um enunciador[3]. Fred parece ter feito aquilo que ele estava destinado a fazer, ocupado o lugar que, desde o início, era seu; mesmo que ele não o soubesse.

Mas talvez “completo” não seja a palavra exata, pois alguma inadequação radical continua impelindo o personagem a continuar em sua estrada perdida. Mesmo depois de Dick Laurent morto, Fred Madison não realizou plenamente seu destino. Assim, se o tema clássico de um road-movie consiste em mostrar o trajeto através do qual um sujeito deve atravessar para “tornar-se o que se é”, para usar uma expressão de Nietzsche, assumindo a enunciação de seu verdadeiro caminho, A estrada perdida nos conta a história deste trajeto bloqueado que vai de si a si mesmo, desta impossibilidade da voz autônoma que ressoa como um destino assumir o corpo escolhido para encarná-lo. Como já disse, história de um processo de formação, ou do fracasso dele.

 

As mulheres de David Lynch

 

            Sendo assim, devemos nos perguntar pelas causas deste fracasso, o que nos coloca a cata do acontecimento fundamental que faz com que Fred Madison perca o mapa que poderia guiá-lo no seu caminho. É verdade que o filme parece, de uma certa forma, começar tarde demais. Desde o início, o clima é pesado, os diálogos e olhares que circulam entre Fred e Renée, sua mulher, são secos e difíceis; tem-se a impressão de que algo de aterrador já aconteceu. O acontecimento parece já ter tido lugar.

            Mas se olharmos para os outros filmes de Lynch, encontraremos uma indicação preciosa que poderá nos guiar : todos os acontecimentos acontecem pelas mãos de mulheres. Em Veludo Azul, o trajeto de Jeffrey em direção à uma experiência capaz de romper com as certezas menores de seu mundo estável de cidade pacata do interior norte-americano será impulsionado pelo encontro com Dorothy Vallens, uma misteriosa cantora de cabaré que não deixa de nos remeter a mesma constelação semântica de fragilidade e sedução de Renée/Alice. Seu caminho vai levá-lo ao quarto de Dorothy onde, escondido dentro de um armário, ele descobre o ritual masoquista e incestuoso que a liga a Frank: um bandido violento e impotente. Ao se deparar com esta negatividade que marca tudo o que é da ordem do sexual, Jeffrey poderá completar seu destino. Sexo aparece aqui como lugar de verdade. Como ele aparecerá mais tarde em Mullholand drive, já que será apenas depois que a jovial e deslumbrada Betty transar com Rita (mais um destes personagens femininos marcados pelo mistério, na linhagem Dorothy Vallens – Renée/Alice ) que seu mundo de sonhos dará lugar a um Teatro de Ilusões que, para ela, terá o valor de um Teatro de horror : única forma de uma experiência da ordem do real poderá se fazer sentir.

            Em A estrada perdida, o procedimento não é diferente. Lembremos primeiro que a razão pela qual Dick Laurent deve morrer é simples : ele está entre Pete e Alice (mais tarde ele aparecerá transando com Renée). Ele priva Pete do gozo de Alice e matá-lo é a única forma alcançá-la. Mas esta questão ligada à privação do gozo parece perpassar alguns momentos centrais de A estrada perdida. Assim, na primeira parte do filme, vemos um Fred  Madison atônito e suado tentando transar com Renée. As imagens são em câmara lenta para sublinhar o corpo como carne. Infelizmente, o resultado final será alguns tapinhas nas costas e um consolador : “It’s ok, it’s ok”. O chão se abre entre Fred e o gozo de seu objeto de desejo. Uma fenda tão grande quanto aquela que o separa definitivamente de si mesmo.

            Mas este não parece ser o problema de Pete. Ao contrário, como dirá o policial escalado para vigiá-lo: “Onde ele consegue arrumar tantas bucetas ?”. Sim, ao contrário de Fred, Pete sabe como fazer. Ele sabe tão bem que acaba por se apaixonar por aquela que é a mulher reduzida a sua mera condição instrumental : a atriz de filme pornográfico. Mulher reduzida à condição de suporte imaginário de fetiches. Só que esta mulher reduzida à sua própria imagem, sempre disponível em qualquer locadora e prêt-à-jouir será exatamente aquela que  dirá : “Você nunca me terá”. Pete apaixonou-se por uma imagem que esvai-se no deserto, assim como Fred não sabe o que fazer com a carne de mulher que ele tem nas mãos. Todas as duas os levaram para uma estrada perdida.

            Neste sentido, matar Dick Laurent nunca poderia levar Fred/Pete a alcançar aquilo que daria um pouco de estabilidade à sua procura. Pois este objeto é essencialmente vaporoso, trompe l’oeil feito de imagens e projeções. A estrada perdida conta assim a história da descoberta de quão opaco são os objetos aos quais o desejo teima em se vincular. Descoberta que nos leva a um encontro traumático com a impossibilidade de terminar o trajeto da viagem. Um encontro traumático com um destino que só pode se realizar como queda.

 

Filmar com ruínas : a estética do real nos anos 90

 

            Esta história de objetos fugidios e de atrizes pornôs escorregadias não seria tào emblemática se ela não estivesse ligada a algumas questões centrais do cinema dos anos 90.

O cinema dos anos 90 viu um movimento geral que poderíamos chamar de “retorno ao real”. Contrariamente a estética hiper-plástica e publicitária do anos 80 (neste sentido, nada mais ilustrativo do que Mauvais sang, de Léo Carax e Diva, de Jean-Jacques Beinex), os anos 90 teriam sido marcados por uma promessa de retorno ao real conjugada de muitas maneiras. Lars von Trier e seus amigos, por exemplo, expuseram uma das facetas deste retorno através do manifesto Dogma com seus imperativos de captar as imagens em sua crueza “originária”. Um projeto estético necessariamente acompanhado por conteúdos “transgressores” que visavam desvelar a perversão que se escondia por trás da lei paterna (Festen, de Thomas Vitemberg), ou ainda, revelar a estupidez e o cinismo como último recurso contra as frustrações da vida social (Os idiotas, Lars von Trier). Os irmãos Dardenne (palma de ouro/2001 com Rosetta) levaram uma atriz amadora a repetir o cotidiano des-estetizado e insuportável de uma garota belga pobre a procura de emprego.

            Nós podemos dizer que, a partir de A estrada perdida, o projeto estético de David Lynch mostra-se absolutamente engajado nas coordenadas de um “cinema do real”, mas seu engajamento obedece a uma lógica totalmente peculiar, algo muito distinto do jargão da espontaneidade de Trier.

            Notemos como, em A estrada perdida, todos os personagens parecem falsos ou caricatos. Cada um nos dá a impressão de ter saído de um filme que já vimos: o “Homem misterioso” usa pancake, maquiagem de olhos  e roupa preta como qualquer vampiro barato de filme de baixo orçamento, os policiais são estúpidos como todos os policiais, o amante/ cafetão de Renée, Andy, tem pele bronzeada e bigode fino como todo amante latino, isto ao menos segundo as leis de Hollywood. Os personagens são carregados demais e as vezes parecem apenas repetir falas e desempenhar papeis que todos sabem gastos. Tudo parece ter sido reaproveitado, como em uma liquidação de antigos clichês da história do cinema que já não funcionam direito. Desta forma, Lynch filma com ruínas da gramática do imaginário cinematográfico.

            Este é um dos pontos de genialidade do filme e que diz respeito ao processo geral de criação de David Lynch. Trata-se de abrir espaço para uma experiência do real através da repetição mimética de uma realidade fetichizada. Na mão de outro cineasta, estas histórias de um mecânico que se apaixona pela amante do velho gangster, ou do marido atormentado que assassina a própria mulher sem lembrar-se de nada viraria uma história trivial. Mas Lynch sabe que estas histórias não podem mais ser contadas - elas estão gastas demais - e trata-se de mostra isto a todo momentoo. A forma da estrutura narrativa nega o conteúdo da história que ela deveria suportar. É deste conflito que vem a impressão irredutível de estranhamento própria a A estrada perdida. Vivemos em um mundo onde investimos libidinalmente ruínas. Neste sentido, Lynch nos oferece uma via de sublimação ao se servir de um dos dispositivos maiores da arte contemporânea, cujo eixo de desenvolvimento está exatamente em forçar suas margens ao introduzir instabilidade naquilo que, de tão visto, parecia não poder significar mais nada.  O que era muito familiar deve transformar-se em estranho. Estratégia que abre espaço à experiência do real através do embaralhamento das noções de identidade e semelhança que estruturam nosso universo estável de referências, Um procedimento que Lynch levará posteriormente ao extremo em Mullholnad drive.

 

Encontrar o real : de A estrada perdida à Mullholand drive

 

            Como já disse, Mullholand  drive foi apresentado como uma espécie de continuação de A estrada perdida. Não que se trate da resolução da narrativa. Os dois enredos são totalmente distintos. Mas, de uma certa forma, Mullholand drive avança um pouco mais neste caminho já aberto pelo seu antecessor.

Da mesma maneira que em A estrada perdida, costuma-se dizer que Mulholland Drive não tem uma história. Novamente, se analisarmos bem, veremos que o filme tem uma história que chega a ser relativamente simples. Betty Elms chega a Hollywood vinda de uma pequena cidade do Canadá. Ela quer ser alguém: "Uma atriz ou uma estrela", é o que ela diz. Seu corpo recém-egresso da adolescência denuncia a vontade de chegar a portar aquilo que faz de uma mulher um objeto de desejo. Durante dois terços do filme ela não cansará de repetir que tudo está correndo como em seus sonhos. Tudo se passa como uma viagem que apenas repete as imagens perfeitas do folheto de turismo.

Mas Betty encontra uma mulher que parece saída dos filmes de Rita Hayworth. Ela não sabe de onde veio, seu nome é falso, sua memória foi apagada em um acidente de carro. Tudo o que ela tem é uma bolsa cheia de dólares e uma chave azul. Nada mais previsível: uma quer ser alguém, a outra não sabe quem é mas tem beleza cinematográfica, trejeitos de estrela e dinheiro, ou seja, tudo o que faz alguém ser. Na verdade, uma quer ser aquilo que a outra já é sem saber.

Mulholland Drive funciona assim como um road movie de mão dupla: uma mulher quer construir uma história do presente para o futuro, a outra quer reconstituir sua história do presente para o passado. Entre as duas há um filme que deve ser feito, mas ninguém se entende sobre quem deve ocupar o lugar da atriz principal. Por enquanto, o lugar da mulher está vazio. A atriz foi dada como morta. Mas o filme deve continuar e alguém deve vir ocupar o lugar que ficou vazio, mesmo que para isso devamos preenchê-lo com personagens que estão apodrecendo.

"Não faça parecer real, até que se torne real". Este é o conselho que o diretor de cinema deu à garota que foi fazer seu primeiro teste para tornar-se uma atriz. E, realmente, durante dois terços do filme, nada parece real em Mulholland Drive. Novamente, todos os personagens parecem falsos ou caricatos. Cada um nos dá a impressão de ter saído de um filme que já vimos: o diretor de cinema usa roupa preta e óculos de intelectual como todo diretor de cinema, os policiais estúpidos como todos os policiais retornam, os managers da indústria cinematográfica são mafiosos como todos os managers. Os personagens são carregados demais e às vezes parecem lutar contra qualquer coisa de sobre-humano para poderem repetir suas falas e desempenhar seus papéis.

Mas há uma impressão ainda mais forte que atravessa Mulholland Drive. É difícil não nos sentirmos diante de um filme que, de uma certa forma, já deveria ter acabado. Nesse sentido, a cena paradigmática é o primeiro teste de Betty Elms na sua trajetória para ser alguém. O produtor do filme é um velho arruinado, o galã com o qual ela deverá atuar é um sessentão com bronzeado estilo Miami Vice, o diretor do filme é alguém que está repetindo a mesma coisa há anos. Betty Elms parece ter chegado tarde demais, seu filme ficou velho. Da mesma forma que nossos filmes ficaram velhos demais. Os quadros de sociabilização se mostram incapazes de suportar uma produção de identidade sem produzir um resto que não se enquadra em cena alguma.

            No entanto, se Mulholland Drive é um road movie, então para onde ele irá levar Betty Elms? Para o mesmo lugar que Lynch levou Fred Madison/Pete Dayton. Para um encontro traumático com um destino que só pode se realizar como queda. Se voltarmos ao momento-chave no qual Pete transa com esta imagem de mulher ideal que ele vê desaparecer (para ficar em seu lugar apenas um homem misterioso que aponta uma câmera em sua direção, como um olhar que retorna a si mesmo depois da dissolução do objeto), então veremos que Mullholand drive traz uma cena estruturalmente idêntica. Trata-se deste momento no qual Betty Elms está deitada na cama, pronta para dormir, enquanto Rita (que não é uma atriz pornô, mas é a representação perfeita de outro estereótipo : a Gilda do cinema noir) está là, encostada na porta, nua e envolta apenas por uma toalha. "Por que você não vem dormir aqui?", diz Betty. Segundos depois as duas estarão transado. "Esta é a primeira vez que você faz isto?", pergunta Betty. "Eu não me lembro", diz Rita. Mas nós sabemos que é a primeira vez que Betty faz isto. E depois disto feito ela não poderá mais voltar atrás. Rita terá um sonho: "No hay banda, No hay orquestra", é o que ela dirá enquanto dorme. Ao acordar, ela levará Betty a um Teatro de Ilusões chamado Silêncio. Tal como em A estrada perdida, sexo aparece novamente aqui como lugar de verdade.

             No Teatro, um ilusionista está no palco repetindo as mesmas palavras : "No hay banda. Il n'y a pas d'orchestre. It's just illusion". Quando ela ouve tais palavras, Betty treme como se estivesse possessa ou dentro de um terremoto que indica como todo seu universo está desmoronando. Mas Lynch não parece muito interessado em simplesmente fazer uma forma de crítica ao fetichismo ao mostrar que corremos atrás de imagens que, no fundo, são ilusões. Seu jogo é outro e muito mais radical. Ele se desvela quando uma cantora latina entra no lugar do ilusionista. Ela irá cantar a capella uma velha cançào de amor. Mesmo tendo sido advertida que tudo seria ilusão, que tudo certamente se tratava de um play-back, Betty e Rita choram compulsivamente. E mesmo no interior de um universo de simulações e imagens gastas algo acontece. Em meio a uma artificialidade que não teme em dizer seu nome uma experiência da ordem do real enfim tem lugar. Esta experiência não é a revelação de algo perdido ou de uma espontaneidade originária massacrada pelo nosso mundo industrial. Ela é o estranhamento daqueles se vêem investindo libidinalmente ruinas, daqueles que se vêem cantando palavras vazias, daqueles que se descobrem transando uma imagem perfeita. "It's just a illusion", sim, eu sei, mas não posso me impedir de chorar. E esta é talvez a grande lição que David Lynch tem a nos dar: toda arte autêntica conhece a expressividade do inexpressivo e sabe que só haverá experiência do real quando perdermos o medo de entrarmos em um teatro de ilusões.

            Mas Betty não realizou seu destino, da mesma forma que Fred Madison. Eles são ninguém, seus road-movies não chegaram a lugar algum. Tudo o que Fred pensa em fazer é assassinar aquela imagem que nunca será sua (Renée) ou aquele Outro que parece ter o que ele gostaria (Dick Laurent). Para ele, a experiência do real foi uma experiência de destruição. Mas para Lynch, ela foi uma sublimação. Porque o desejo de Fred Madison continuou preso  ao mesmo sistema de imagens em decomposição que o aprisionou e o constituiu; enquanto que David Lynch nos mostrou que o único destino possível para nós consiste em aprendermos a construir estradas com ruinas.

 

Vladimir Safatle, Professor de filosofia da USP e encarregado de cursos no Collège International de Philosophie – Paris.


 

 

SILÊNCIO E SEXO
 Assim, na última cena de A Estrada Perdida, Lynch deixou Madison gritando em um carro em alta velocidade no meio de uma perseguição.
Em Mulholland Drive, ninguém dirá a Betty Elms: "This is the girl". Ela nunca ocupará o lugar deixado vazio. A última palavra do filme será simplesmente: "Silêncio".

Silêncio é o nome de um teatro de ilusões que aparece na última terça parte do filme. É lá que terá lugar o verdadeiro acontecimento da viagem de Betty Elms. É lá que ela vai realizar esta mudança de identidade que é o destino de todo road movie.

Na verdade, tudo aconteceu um pouco antes. Betty está deitada na cama, pronta para dormir. A outra mulher, Rita até então, está lá, encostada na porta, a fragilidade feminina envolta em uma toalha. "Por que você não vem dormir aqui?", diz Betty. Segundos depois as duas estarão transando. "Esta é a primeira vez que você faz isto?", pergunta Betty. "Eu não me lembro", diz Rita. Mas nós sabemos que é a primeira vez que Betty faz isto. E depois disso feito ela não poderá mais voltar atrás. Rita terá um sonho: "No hay banda, no hay orquestra", é o que ela dirá enquanto dorme. Ao acordar, ela levará Betty a Silêncio.

 

Mas por um instante Betty teve Rita e o resultado foi que as duas chegaram a um teatro chamado Silêncio. Lá está um ilusionista que repete as mesmas palavras "No hay banda. Il n'y a pas d'orchestre. It's just illusion." Quando ela ouve estas palavras, Betty treme como se estivesse possessa. Nada estranho para alguém que passou o filme inteiro repetindo que tudo parecia um sonho perfeito. Mas Lynch não parece muito interessado em simplesmente fazer uma forma de crítica ao fetichismo ao mostrar que corremos atrás de imagens que, no fundo, são ilusões. Seu jogo é outro e muito mais radical.

Esse jogo se desvela quando uma cantora latina entra no lugar do ilusionista. Ela irá cantar a capela, uma velha canção de amor. Mesmo tendo sido advertidas de que tudo seria ilusão, de que tudo certamente se tratava de um playback, Betty e Rita choram compulsivamente. E mesmo no interior de um universo de simulações e imagens gastas, algo acontece. Em meio a uma artificialidade que não teme dizer seu nome, uma experiência da ordem do real enfim tem lugar. Esta experiência não é a revelação de algo perdido ou de uma espontaneidade originária massacrada pelo nosso mundo industrial. Ela é o estranhamento daqueles que se vêem investindo libidinalmente em ruínas, daqueles que se vêem cantando palavras vazias, daqueles que se descobrem transando uma imagem perfeita. It's just illusion, sim, eu sei, mas não posso me impedir de chorar. E esta é talvez a grande lição que David Lynch tem a nos dar: toda arte autêntica conhece a expressividade do inexpressivo e sabe que só haverá experiência do real quando perdermos o medo de entrarmos em um teatro de ilusões.

Mas Betty não realizou seu destino. É verdade que ela teve uma experiência que a transformou definitivamente. Agora, ela é Diane. Mas Diane é uma atriz fracassada e deprimida, ela nunca ouviu "This is the girl". Diane é ninguém, seu road movie não chegou a lugar algum. Tudo o que ela pensa em fazer é assassinar aquela imagem que nunca será sua e que sempre ocupará o lugar no qual ela gostaria de estar. Para Diane, a experiência do real foi uma experiência de destruição. Mas, para Lynch, ela foi uma sublimação. Porque o desejo de Diane continuou preso ao mesmo sistema de imagens que o aprisionou e o constituiu. Enquanto David Lynch nos mostrou que o único destino possível para nós consiste em aprendermos a construir estradas com ruínas.

 

 



[1] Uma indicação de tais processos nos é fornecida pelo próprio Lynch em uma entrevista : “Se o diálogo luta contra a ambiência, então está perfeito “ (Entrevista com David Lynch, Cahiers du cinéma, n. 509, janeiro de 1997). Princípio de inadequação que será elevado a condição geral de composição 

[2] Sobre Mullholand drive como road-movie, tomo a liberdade de remeter a um artigo meu , “Road-movie em ruinas” (Correio Braziliense, 01/10/2002), também disponível em www/geocites.com/vladimirsafatle.

[3] Como nos lembra Zizek : “Nós temos uma situação circular – primeiro a mensagem que é ouvida mas não compreendida pelo herói, depois o próprio herói pronunciando a mensagem. Em breve, todo o filme é baseado na impossibilidade do herói encontrar a si mesmo , como na famosa cena de armadilha do tempo em filmes de ficção científica onde o herói, viajando de volta ao passado, encontra a si mesmo “ (ZIZEK, The ticklish sujet, Londres, Verso, 1999, p. 299)

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