+ contraponto
Ao oporem uma ética coletiva e uma individual, "Herói", de Zhang Yimou, e "Kill Bill", de Quentin Tarantino, podem ser entendidos como formas compensatórias criadas pela indústria cultural
Entre o sacrifício e o cinismo
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Kill Bill", de Quentin Tarantino e "Herói", de Zhang Yimou, são dois filmes que,
aparentemente, nada têm
em comum, a não ser suas infindáveis cenas de lutas marciais estilizadas. No entanto os dois podem ser
vistos como sintomas complementares de certos impasses sobre a maneira como a ideologia hegemônica
da contemporaneidade quer nos
apresentar estruturas de julgamentos e valores.
"Kill Bill" se propõe a contar a história de uma vingança. Durante o
ensaio de seu casamento, uma ex-assassina profissional, grávida, especialista em artes marciais, vê seus antigos companheiros entrarem na
igreja para trucidarem todos os presentes. Ela escapa por pouco, passa
cinco anos em coma e, ao acordar,
promete vingança irrestrita. O filme,
em duas partes, é a história dessa
vingança movida a sangue farto.
Assassino com princípios
Como o assassino de "Pulp Fiction", que precisa justificar suas
ações com versos do Antigo Testamento sobre a ira justa do Senhor,
Uma Thurman segue lá seus princípios de conduta. Ela procura não
matar uma mãe na frente da filha,
ela tenta recusar-se a duelar com
uma menor de 18 anos, enfim, ela segue todas as regras da sua profissão
com zelo, principalmente aquela
que legitima a vingança com suas
exigências irrestritas e imaginárias
de reparação.
Da mesma maneira que os personagens dos livros de Sade, os atos
cruéis de Uma Thurman não são
simples resultados de um gozo assassino, mas são feitos em nome e
em respeito a uma lei com fortes disposições normativas. As referências
ao Oriente e aos samurais apenas
servem para salientar uma submissão à lei que orienta a conduta da
protagonista.
Essa história de um "anjo exterminador samurai" poderia servir para
expor o caráter abstrato de disposições morais que parecem flutuar em
um ambiente que as nega. Ela poderia demonstrar a esquizofrenia social, tão comum atualmente, que
consiste em sustentar alguns valores
e normas de conduta arbitrariamente escolhidos, como se isso bastasse
para distinguir nossa brutalidade da
pura e simples barbárie pretensamente feita pelo outro.
No entanto Tarantino quer mais
do que isso. Na verdade, ele quer levar a ambigüidade ao extremo a fim
de nos colocar lá onde nenhum julgamento moral parece ser possível.
Isso a ponto de mostrar que, por trás
desse anseio de vingança, pulsa a
verdade de um amor trágico entre
Bill e Thurman. E quem pode ser
mesquinho o suficiente para julgar
moralmente um amor trágico? No
entanto mesmo essa tragédia tem
uma função "irônica".
Os atos cruéis de Uma Thurman não são simples resultados de um gozo assassino
Auto-ironia
Aqui, vale uma digressão. Os filmes de Tarantino são estilizações de
uma disposição cada vez mais comum na ideologia da indústria cultural. Não vivemos mais na época
em que a ideologia procurava naturalizar modelos normativos de conduta e tipos sociais ideais, até porque
isso exigiria identificações com tipos
sociais pautados pela ética da convicção; o que é impossível em situações de crise de legitimidade como a
nossa. Mas notemos essa disposição
atual dos produtos da indústria cultural em ironizar a todo momento
aquilo que eles próprios apresentam. Esta autoderrisão é uma maneira astuta de perenizar estruturas
narrativas e quadros de socialização,
mesmo reconhecendo que eles já estão completamente arruinados.
Os filmes de Tarantino são feitos
dessa autoderrisão. Sua tendência
em trabalhar a partir da saturação de
clichês gastos do cinema que se afirmam enquanto tais é maneira de
criar uma distância interna em relação ao que é apresentado. A saturação indica que o que é posto não deve ser levado a sério, da mesma maneira que os valores abstratos em
contextos invertidos que guiam as
ações dos personagens só podem ser
assumidos de maneira irônica.
No entanto exatamente graças a
essa autoderrisão, valores e estruturas narrativas que pareciam em crise
poderão se perpetuar. Temos um
nome para essa maneira de perpetuar critérios que, a todo momento,
ironizamos: cinismo.
Moral fundamentada
Nesse contexto, poderia parecer
que "Herói", de Zhang Yimou, seria
o inverso do cinismo de Tarantino.
Afinal, seu filme diz respeito a um
mundo no qual os julgamentos morais parecem suficientemente fundamentados. Yimou quis contar a história de um guerreiro que é apresentado ao imperador de Qin, homem
que procura unificar a China de maneira violenta, como o herói que matou os três maiores inimigos do soberano. Aos poucos, o imperador
descobre que o pretenso herói é alguém que está lá para matá-lo.
No entanto, no momento de agir, o
herói compreende estar diante de alguém capaz de unificar o povo e pacificar o território. Ao invés de cumprir sua missão, ele se deixa sacrificar, afirmando que o sacrifício e a
dor dos indivíduos às vezes são os
preços a serem pagos para a realização da felicidade de um povo.
À parte a estética new age requentada e o hegelianismo vulgar -que
consiste em pensar que o universal
só pode se realizar quebrando o interesse dos particulares e que, depois,
podemos justificar tudo com uma
teoria do fato consumado, que cura
as feridas do espírito sem deixar cicatrizes, algo bem ao gosto da brutalidade do capitalismo de Estado chinês-, resta do filme uma certeza.
Sua boa aceitação nos EUA talvez
demonstre que, contra o cinismo
ambiente, nada melhor do que reatualizar de vez em quando uma ética
do sacrifício. Ainda mais quando
sempre tem alguém querendo vender a idéia de que, após a violência
belicista do curso atual do mundo, a
democracia pacificadora brilhará.
Ao que parece, a indústria cultural
quer nos acostumar a ter de escolher
entre sacrifício e cinismo.
Vladimir Safatle é professor de filosofia na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e organizador de "Um Limite Tenso - Lacan entre a Filosofia e a Psicanálise" (ed. Unesp).
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