Sociedade
Perder São Paulo
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Há alguns meses, os cinemas da cidade de São Paulo receberam um
filme publicitário sintomático.
Nele, a avenida Paulista era apresentada em fim de tarde chuvoso enquanto
um locutor declamava em "off": "Você já
imaginou São Paulo com mais verde?".
Nesse instante, árvores apareciam no meio
da Paulista. Animado, o locutor continuava: "E com menos chuvas?"; então a chuva
se desfazia. "Com menos prédios?"; prontamente, prédios iam embora. "E com menos trânsito?" Então, nesse momento sublime, boa parte dos carros sumia, e uma cidade aprazível ganhava corpo.
No entanto, quando começávamos a nos
acostumar com tal cidade, a voz do locutor,
marcada pelo tom de uma certa cumplicidade publicitária de quem julga saber o que
realmente queremos, lembrava: "Só que essa cidade não seria São Paulo". Tudo, então, retornava como antes, movido por
uma alegre afirmação do caos; e isso sem
que tivéssemos tempo de simplesmente
perguntar: "E, afinal, qual o problema?".
Sim, qual o problema em perder São Paulo para ganhar uma cidade com especulação imobiliária controlada, espaços públicos e prioridade para transporte coletivo?
Afinal, perder São Paulo não seria a condição necessária para uma profunda autocrítica urbana que teima em não vir?
Desconstruir o imaginário
Nesse sentido, o melhor presente que a cidade poderia ter recebido na comemoração de seu "aniversário", na última quarta-feira, teria sido não a atualização de predicados (cidade que não pára, motor do país)
que servem apenas para esconder os resultados de um processo concentrado e descontrolado de desenvolvimento urbano.
Nem declarações multiculturais do tipo:
"Esta é a única cidade em que podemos ir a
um restaurante húngaro à meia-noite".
O melhor presente que a cidade poderia
ter recebido não é nem sequer a versão pós-moderna dessas odes, ou seja, a afirmação
de São Paulo como o nome próprio de uma
multiplicidade inconsistente "a la Koolhaus" que pulsa livremente, afirmando a
pluralidade híbrida de estilos para além dos
desejos "modernistas" de ordem, plano e
função. Pulsação livre que, em outros tempos, recebia um nome menos pomposo:
desenvolvimento a partir do interesse imobiliário do dia. Isso quando não era simples
perda de coesão resultante de clivagens sociais que não podem ser escondidas no tecido urbano.
Pluralidade híbrida que, por sua vez, acabou por produzir apenas a repetição inumerável de bricolagens neoclássicas com
aspirações de luxo: estilo arquitetônico feito de ruínas de um passado que a cidade
nunca conheceu e que pode ser encontrado
atualmente em qualquer bairro paulistano.
Na verdade, o presente que São Paulo
merece é sua perda. Ou seja, perda das imagens que compõem nosso imaginário urbano assim como a ideologia que procura
justificar os impasses com os quais nos deparamos todos os dias. Início doloroso de um
processo de formação da consciência da
necessidade imperativa de mudanças profundas. Pois fazer a autocrítica de São Paulo
não deve ser visto como um estranho exercício de masoquismo social, mas de um
amor que sabe usar a força da recusa.
Talvez essa seja uma das maneiras de
lembrarmos como nossos sonhos de progresso podem, muitas vezes, produzir
monstros; principalmente quando tais sonhos são capitaneados por uma elite socioeconômica que prefere viver em uma
"outra" cidade - esta que é composta por
bairros murados, condomínios fechados,
shopping-bunkers e helicópteros. O que
São Paulo precisa é, afinal, de um conceito
novo de progresso, conceito que só poderá
ser realizado por outros atores sociais.
Vladimir Safatle é professor de filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e
organizador de "Um Limite Tenso - Lacan entre a Filosofia e a Psicanálise" (ed. Unesp).
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