Destituição subjetiva e dissolução do eu na obra de John Cage

 

 

O medo do caos em música, como em

psicologia social, é superestimado

Adorno

 

Uma questão de método

 

            No interior do espectro de confrontação entre arte e psicanálise, é bem possível que o campo mais problemático seja a reflexão, psicanaliticamente orientada, sobre a música. Não só porque a aversão de Freud pela música parece ter sido partilhada por vários psicanalistas, entre eles Lacan, que nunca dedicou nenhum tipo de pensamento sistemático sobre o fenômeno musical, ao contrário do que fez com as outras artes. Mas também porque as análises psicanalíticas dedicadas à música, em sua grande maioria, pouco acrecentaram a uma reflexão sobre o que está em jogo na estruturação da forma musical.

            Tal situação talvez provenha do fato da música ter sido a primeira das artes a impor uma autonomização clara dos seus processos construtivos formais em relação a tudo o que seria extra-musical (textos, programas, funções rituais, vínculo à linguagem prosaica). A crítica à mimesis, por exemplo, operação tão central para a constituição dos protocolos de racionalidade das artes visuais no modernismo, já havia sido operado pela música em meados do século XIX. Esta autonomia da forma musical chegou a levar alguns críticos de artes, como Clement Greenberg, a ver no modo de autonomização da música o padrão a ser seguido para a modernização do campo das outras manifestações artísticas. Lembremos, por exemplo, de sua afirmação a este respeito: “Em razão de sua natureza ‘absoluta’, da distância que a separa da imitação, de sua absorção quase completa na própria qualidade física de seu meio, bem como em razão de seus recursos de sugestão, a música passou a substituir a poesia como a arte-modelo (...) Norteando-se, quer conscientemente quer inconscientemente, por uma noção de pureza derivada do exemplo da música, as artes de vanguarda nos últimos cinqüenta anos alcançaram uma pureza e uma delimitação radical de seus campos de atividade sem exemplo anterior na história da cultura”[1]. A colocação não poderia ser mais clara: a música teria imposto, às outras artes, uma noção de modernidade e de racionalização do material vinculada à autonomização da forma e de suas expectativas construtivas.

            Talvez isto nos explique algo do pouco interesse da psicanálise em relação à música. Pois tal autonomização implica em deparar-se com a resistência do material musical a interpretações analíticas do tipo "hermenêutico" tais quais as desenvolvidas por Freud em seus ensaios dedicados à estética, e por Lacan em ensaios como os dedicados a Edgar Alan Poe, a Genet, a Hamlet e a Wedekind.

Podemos falar aqui em hermenêutica porque estamos diante de um regime estético que submete a racionalidade das obras a uma noção de interpretação pensada sobretudo como decifragem de signos, o que pressupõe uma compreensão semântica da aparência estética. Trata-se de decifrar os conteúdos presentes na cena articulada pela obra a partir de uma procura arqueológica de sentido que visa desvelar a racionalidade causal do fenômeno estético ao reconstruir uma espécie de texto latente que estaria obliterado pelo trabalho do artista. A partir desta perspectiva, tal decifragem coloca as categorias ligadas aos complexos psíquicos como o campo estrutural privilegiado de significação possível do material. A obra se transforma assim em um texto no qual se podem ler motivos psicanalíticos maiores, como o complexo de Édipo e a teoria da sexualidade infantil (Freud) ou nos levar ao desvelamento de uma gramática do desejo construída a partir dos dois operadores centrais da clínica: o Falo e o Nome-do-Pai (Lacan). Neste sentido, não é casual que a maioria dessas análises de obras de arte não dê lugar, ou secundarize, a análise das estruturas formais em sua dinâmica própria, assim como as considerações sócio-históricas sobre as obras. Pois a psicanálise teria a tarefa de desvelar a verdade obliterada pela forma estética, já que a obra não coincidiria com sua letra, sua essência estaria em uma Outra cena na qual se desvelaria seus esquemas de produção e cujo acesso exigiria uma leitura de profundidade.

            Dito isto, podemos organizar os textos psicanalíticos sobre música em quatro grandes grupos.

            A maioria de tais trabalhos está orientada para o que poderíamos chamar de "análise psicanalítica da escuta". Tratam-se de estudos que procuram determinar os mecanismos de investimento libidinal da escuta musical. O mais conhecido destes trabalhos foi escrito por Theodor Reik (The hauting melody). Reik serve-se do sistema de interpretação psicanalítico partindo da análise sua própria fixação, após a morte de um amigo, a uma melodia da Primeira Sinfonia de Mahler. Isto lhe permite compreender o fenômeno da "melodia obsedante" enquanto expressão de uma representação psíquica recalcada pela consciência. Tais pesquisas não têm muito a ver com uma crítica musical estrita e aproximam-se, na verdade, de uma psicologia da audição. Trabalhos mais recentes como os de Alain Didier-Weil e de Guy Rosolato tendem a ir neste sentido.

            Um segundo grupo importante de textos é constituído por psicobiografias: estudos que se servem da interpretação analítica do romance familiar ou da nosografia do compositor para fornecer uma análise de sua obra. Tal ponto de vista normalmente conduz à redução da obra, pensada aqui principalmente como campo de sublimação de conflitos pulsionais. Ida Macalpine (Rossini: piano pieces for the primal scene) e o casal Sterba (Beethoven and his family) são exemplos representativos.

            O terceiro tipo de textos reúne análises propriamente hermenêuticas de composições musical. É significante que a grande maioria destes trabalhos sejam análises de óperas. Pois, normalmente, o estudo da narrativa é privilegiado e a especificidade do material musical não é levada em conta. É isto que vemos, por exemplo, nos escritos de Melanie Klein sobre L´enfant et ses sortilèges, de Ravel e nestes de Otto Rank sobre o Don Juan, de Mozart  e sobre o Lohengrin, de Wagner.

            Por fim, há trabalhos que esboçam algo como uma “psicanálise da forma musical”. Nestes casos, encontramos um esforço peculiar de consideração sobre a estrutura formal das obras musicais através da conceitografia analítica. Tratam-se de trabalhos que conjugam psicanálise e música sem dissolver a especificidade da análise da forma musical. Tal estilo de análise foi inaugurado por Adorno e o exemplo mais conhecido talvez seja O caráter fetichista da música e a regressão da audição, de 1938, embora seja possível apontar vários outros textos em que Adorno recorre à estrutura conceitual psicanalítica para analisar obras musicais de Schoenberg, Stravinsky, Berg, entre outros[2].

            No caso de O caráter fetichista da música, Adorno aproveita-se da função metonímica do fetiche (que faz com que a fascinação pela parte ocupe o valor do todo), assim como sua operação de sobrevalorização, a fim de dar conta da tendência à perda da unidade sintética da obra nos processos composicionais e em uma recepção que só conheceria a “audição atomizada”.  Por outro lado, ele se serve ainda da operação de  idealização (Idealisierung) própria a toda estrutura fetichista. A mesma operação que levou Jacques Lacan a falar em imaginarização enquanto apreensão do objeto como projeção de um esquema mental que, no caso do fetichismo, é imagem fantasmática[3]. A partir daí, Adorno poderá expor o processo de redução do material musical, com sua temporalidade constitutiva, à estática de imagens idealizadas e reificadas. É contra tal pregnância imaginária que Adorno lembra: “o que se aferra à imagem fica prisioneiro do mito, culto dos ídolos”[4]. Daí porque : “é sem imagem que o objeto deve ser pensado em sua integralidade”[5].

            Ainda é digno de nota o esforço adorniano de reconfiguração da categoria estética da expressão  a partir da noção freudiana de pulsão (assim como a noção de impulso, que desempenhará um papel central em seu programa filosófico). Operação fundamental na compreensão adorniana da obra de Schoenberg, como fica claro em afirmações como: “A música de Schoenberg quer emancipar-se em seus dois pólos [o pólo da expressão e o pólo da construção]: ela libera as pulsões (Triebhafte) ameaçadoras, que outras músicas só deixam transparecer quando estas já foram filtradas e harmonicamente falsificadas; e tensiona as energias espirituais ao extremo; ao princípio de um Eu que fosse forte o suficiente para não denegar (verleugnen) a pulsão”[6]. É tal reconfiguração psicanalítica da categoria estética de expressão que permitirá a Adorno falar, por exemplo, da “pulsão de morte” como  tendência originária das obras de Berg, isto devido ao desejo insaciável de amorfo e de informe que as habita. Pois, para alguém como Adorno, que moldou a categoria do impulso subjetivo (Impuls) a partir do conceito psicanalítico de pulsão, a expressão não pode mais estar subordinada a gramática dos afetos ou da imanência expressiva da positividade da intencionalidade. Uma expressão pensada nesta chave pulsional coloca-se no interior das obras como negação das identidades fixas submetidas a uma organização funcional.

            Nos anos 70, Jean-François Lyotard também se serviu do conceito psicanalítico de pulsão de morte no interior de um debate sobre a forma musical, mas a fim de pensar o advento de uma música para além da organização serial. Para ele, a pulsão de morte marcaria uma intensidade pura insistente, tal como um ruído que escapa à unidade estruturada formada por sistemas de organização sonora. Segundo Lyotard, é a música de John Cage, com sua deposição dos parâmetros de organização funcional das obras que apresentaria, de maneira “afirmativa” a pulsão de morte[7].Retornaremos e a esta interpretação mais à frente.

Por enquanto, devemos insistir que tais programas colocados em circulação por Adorno (e mesmo por Lyotard) nos fornecem uma orientação para esta questão de método que diz respeito aos modos de articulação do sistema de relações entre psicanálise e análise da forma musical. Problema que, na verdade, insere-se em um quadro mais amplo e ainda não totalmente claro e que concerne às possibilidades de rearticulação do recurso psicanalítico à estética.

Poderíamos dizer que tal rearticulação só se mostrará profícua se ela for capaz de respeitar, ao menos, duas condições maiores. Primeiro, trata-se de compreender claramente que a arte pensa, ou seja, ela não precisa de importações de nenhuma natureza para organizar o campo de problemas e conceitos que gravitam em torno das obras. Dizendo de uma maneira mais clara, as obras produzem seus próprios conceitos e são eles que devem orientar nossa confrontação inicial com as obras (e não os conceitos psicanalíticos). Isto implica em um certo pudor na relação com as obras. Pudor que nos lembra que o recurso à psicanálise não serve para reconstituir a visibilidade  do campo gravitacional de conceitos e problemas que orientam as aspirações das obras.

            A segunda condição, e é só neste momento que o recurso à psicanálise é de alguma serventia, consiste em lembrar que toda obra bem-sucedida responde a problemas sobre regimes de determinação e sobre possibilidades de reorientação  de categorias como: identidade, diferença, relação, unidade, entre outros. Tendo isto em mente, Adorno chegou mesmo a aceitar que a lógica das obras de arte era, de uma certa forma, derivada da lógica formal[8]. No entanto, ao decidir sobre modos de orientação para certas operações estruturantes do pensamento, as obras de arte fornecem a imagem do modo com que sujeitos podem estabelecer identificações, relações de objeto e reconhecer afinidades miméticas com o que se põe como Outro. Neste sentido, elas disponibilizam figurações para problemas gerais de subjetivação. A tentativa adorniana de reconstruir a categoria estética de expressão através do recurso á pulsão, reconstrução que livrava a expressão de sua definição enquanto processo de posição de determinações intencionais de sujeitos que se projetam nos objetos, deve ser compreendida no interior deste quadro de disponibilização de figurações para problemas de subjetivação (que, no caso adorniano, é claramente subjetivação da pulsão).

            Este ponto é fundamental porque compreender as obras como formalizações de processos de subjetivação permite à psicanálise repensar os modos de subjetivação disponíveis à clínica a partir de uma certa configuração da reflexão estética sobre a arte. Esta confrontação com o estado das obras abre as portas para a psicanálise relativizar um quadro de modos de subjetivação classicamente pensado através da tríade rememoração, simbolização reflexiva e verbalização.

            Talvez o psicanalista que melhor compreendeu este ponto seja Lacan. De fato, há vários textos em que Lacan submete os fenômenos estéticos à ilustração de métodos de interpretação da gramática do desejo. Quando lê A carta roubada, de Poe,  ele sequer teme em dizer procurar: “ilustrar a verdade do momento do pensamento freudiano que estudamos”[9]. No entanto, há uma espécie de segundo modo de recurso psicanalítico às artes em Lacan e ele estrutura-se em torno do problema do estatuto próprio ao objeto estético em sua irredutibilidade. Assim, a respeito dos seus inumeráveis recursos a pintura, Lacan dirá: “É no nível do princípio radical da função desta bela arte que procuro me colocar”[10]. Ao procurar um “princípio radical da função da arte”, ele procura, na verdade, coordenadas que lhe permitam compreender a especificidade da formalização estética e de seus modos de subjetivação. Neste sentido, devemos estar atentos ao fato da formalização estética poder aparecer para Lacan como modo de apreensão de objetos que resistem, por exemplo, aos procedimentos gerais de simbolização reflexiva com sua pressuposição de ampliação hermenêutica do horizonte de compreensão da consciência. Daí afirmações como :  “aquilo a que nos dá acesso o artista, é o lugar do que não se deixa ver : resta ainda nomeá-lo”[11].

Esta especificidade presumida da formalização estética tem uma raiz clara. Ao insistir na gênese das obras de arte a partir da sublimação das moções pulsionais, a reflexão psicanalítica sobre as artes é também obrigada a recuperar a centralidade da categoria da expressão na compreensão da racionalidade dos fenômenos estéticos. No entanto, Lacan é responsável por uma reforma do conceito de pulsão, em particular através da reconstrução da noção de objeto da pulsão. Tal reforma traz necessariamente conseqüências para a configuração da expressão e de suas possibilidades construtivas. A partir de então, a expressão, pensada através de um esquema peculiar de sublimação pulsional, só poderá se realizar ao levar o sujeito a colocar-se como  “consciência de ser em um objeto”[12], mas em um objeto no qual ele não reconhece mais sua imagem, formada por identificações e antecipações imaginárias. Um objeto que mostra o que resta do sujeito quando a fortaleza do eu se dissolve. Na verdade, esta figura da arte permitiria ao sujeito reorientar sua noção de “identidade” reconhecendo, na sua relação a si, algo da ordem da opacidade do que se determina como ob-stante (Gegenstande), como não saturado no universo simbólico. Através do recurso psicanalítico ás artes, um modo de subjetivação da pulsão, para além dos esquemas clássicos de rememoração, simbolização e verbalização se esboça aqui. Notemos que, neste caso, o recurso psicanalítico à arte não é interpretativo (como se a função da arte fosse legitimar a consistência do quadro analítico de interpretação, o que é o caso em vários estudos freudianos), ele é indutivo. Ele consiste em ver a arte como um campo privilegiado de indução de dispositivos clínicos.

            O texto que será aqui apresentado é uma tentativa de se manter fiel a tal programa. Não se trata de interpretar a obra de John Cage com conceitos psicanalíticos que lhes sejam estranhos, até porque as reservas de Cage à psicanálise são conhecidas[13]. Trata-se, na verdade, de mostrar como a  obra de John Cage é animada por problemas de fundo a respeito do destino, ou ainda, do pretenso esgotamento do conceito moderno de sujeito e dos regimes disponíveis de subjetivação que deveriam derivar  de tal esgotamento. Em sua obra, opera um verdadeiro processo de "destituição subjetiva" que guarda uma relação complexa de proximidade e distância com este processo de destituição subjetiva crucial para o final de análise, ao menos segundo Lacan.

 

Imanência e inexpressão

 

A compreensão da importância da obra de John Cage exige uma contextualização de certas questões vinculados à forma musical e a seus modos de construção. Todos sabem como a forma musical chega à aurora do século XX com um problema de fundo. O tonalismo enquanto sistema de organização da totalidade funcional das obras que havia orientado, de maneira hegemônica, a composição musical a partir do século XVIII chegara à sua exaustão. Tal exaustão não era apenas um problema vinculado às possibilidade técnicas dos modos de estruturação da forma musical. Esquecemos muito facilmente de que a análise da forma musical é, de uma certa forma, um setor privilegiado da história da razão, isto no sentido dos critérios e regras de organização da forma musical serem, na verdade, critérios de racionalidade e de processos de racionalização. Pois a forma musical gera-se a partir da decisão a respeito de protocolos de identidade e diferença entre elementos (consonância e dissonância), de problemas de partilha entre o que é racional e o que é irracional (som e  ruído), entre o que é necessário e o que é contingente (desenvolvimento e acontecimento). Ela trata ainda de decisões a respeito da relação entre razão e natureza (a música como imitação de leis naturais ou a música como plano autônomo do que se afirma contra toda ilusão de naturalidade), além de questões sobre os modos de intuição do tempo e do espaço. São tais dispositivos que nos permite afirmar que a forma musical nasce de uma decisão a respeito de critérios de racionalidade. O que nos demonstra que o esgotamento de um sistema musical de organização, como o tonalismo, é, na verdade, o esgotamento de toda uma figura ordenadora da razão.

Cage talvez tenha sido o compositor do século XX que mais claramente percebeu isto. Dificilmente encontraremos alguém que se aplicou de maneira tão sistemática em negar todas as categorias que davam racionalidade à estrutura da forma musical. No entanto, esta crítica à razão foi animada por um impulso que encontramos, de uma maneira ou de outra, na própria gênese do modernismo. Tratava-se da crença de que uma crítica totalizante da razão só poderia ser feita em nome de um certo retorno à origem, ao arcaico e ao primitivo. Através destes protocolos de retorno, a arte fiel ao seu conteúdo de verdade deveria ser capaz de liberar a força disruptiva de uma origem há muito recalcada pelos processos de racionalização e de socialização. Foi nesta chave que o momento histórico do primeiro modernismo se serviu da psicanálise; isto a partir da concepção de uma aproximação cheia de ressonâncias (e não muito fiel ao que estava realmente em jogo na descoberta freudiana) entre o infantil, o primitivo e o inconsciente, já que o inconsciente aparece aqui como conceito anterior aos processos de individuação.

Embora John Cage não partilhe recursos desta natureza, é certo que ele estava claramente disposto a pensar a música como espaço de um certo retorno àquilo que se coloca antes de todo processo de estruturação simbólica da cultura e a todo processo de individuação. O nome deste plano que direciona as expectativas de retorno é clássico: a natureza. Como o próprio Cage afirma, em um texto tardio : “Arte =  imitação da natureza em seus modos de operação”[14]. Trata-se assim de procurar fundar a racionalidade musical em um impulso mimético capaz de reconciliar a composição com os modos de operação da natureza. O que não significa que o som musical deve soar tal qual o som natural , o que nos colocaria nas vias de uma estética da representação; mas exigir que a arte seja capaz de atualizar a natureza enquanto mundo que produz acontecimentos que só podem ser percebidos enquanto tais partir de certas condições precisas[15]. Tratava-se na verdade de pensar algo como o advento de uma música da imanência.

No entanto, dizer isto é ainda dizer pouco. Pois devemos ser capazes de especificar o que pensa exatamente Cage ao tentar naturalizar a forma musical, isto a ponto de procurar uma forma que fosse imanente à natureza em seus modos de operação. Certamente, não se trata aqui de procurar alguma maneira de recuperar procedimentos capazes de derivar as regras gerais de organização harmônica de uma teoria fisicalista do som e de suas propriedades de ressonância, estratégia de naturalização da forma musical que acompanhou o tonalismo, ao menos desde os estudos de harmonia de Jean-Phillipe Rameau.

Devemos ainda explicar o que o vocabulário da imitação estaria fazendo neste contexto. Sabemos como a crítica à mímesis foi uma das categorias centrais da arte moderna. Crítica derivada da consciência histórica de que o que normalmente se apresentava como natureza era, na verdade, resultado de uma reificação do discurso. Esta negação da afinidade mimética era figura da crítica por insistir também que modos de organização funcional naturalizados são locais onde a ideologia afirma-se em toda sua violência, isto se compreendermos a ideologia fundamentalmente enquanto reificação de modos de disposição dos entes. Lembremos como a ideologia era vista, tradicionalmente, como uma questão de naturalizar modos de apresentação dos entes. Caberia à arte, assumir assim esta crítica à reificação e mostrar o que a imagem da natureza procura esconder, ou seja, os mecanismos de produção do que tenta se afirmar como naturalmente dado.

De fato, algumas coisas devem ser ditas a respeito desta racionalidade mimética que orienta a obra de Cage. Primeiro, Adorno havia percebido claramente que, na música de Cage, encontrava-se este movimento crítico fundamental, esta “protestação contra uma cumplicidade cega da música com a dominação da natureza”. Não se trata aqui de procurar alguma forma de reconciliação com o imaginário próprio à natureza, já que ressoa na música de Cage a afirmação segundo a qual a imagem socialmente fornecida da natureza não corresponde à sua verdade. Trata-se de afirmar que a natureza não pode ser, por outro lado, mero discurso reificado, mas que ela indica este ponto de resistência do sensível às operações de um conceito pensado, principalmente, sob a forma da representação e da subsunção do diverso da experiência sensível ao genérico da categoria. Assim, se é certo que uma paixão pelo real anime Cage a procurar uma "arte da experiência imediata"[16], a questão que fica diz respeito aos modos de recuperação de algum nível de experiência imediata com a natureza nas condições sócio-culturais do capitalismo avançado. A questão maior do compositor deve ser pois : o que é necessário destruir para que a natureza possa advir em seu modo de operação próprio?

Antes de respondermos a esta questão, vale a pena operarmos um esforço de contextualização a respeito da obra de John Cage. Se procurarmos acompanhar Cage em seus passos, veremos que sua obra organiza-se, grosso modo, em dois grandes momentos. O primeiro, que vai dos anos 30 até o início dos anos cinqüenta, é marcado por algumas experiências seriais (Cage foi aluno de Schoenberg durante dois anos), explorações formais que tinham o ritmo e a pulsação como elementos estruturadores de síntese, além de composições por justaposição.Seus trabalhos são, principalmente, peças para piano e peças para conjunto de percussão, além das explorações percursivas do piano através da idéia de “piano preparado”[17].

A partir dos anos 50, Cage descobre o Zen budismo e coloca-se, cada vez mais, como um compositor dadaísta que vê, em Erik Satie, um precursor. Três peças de 1951 demarcam este novo impulso: Concerto para piano preparado e orquestra de câmara, Imaginary Landscape n. 4 e Music of Changes. A partir de então, impõe-se o uso deliberado do acaso, da indeterminação e da indistinção entre som estruturado e ruídos advindo da vida ordinária. É neste momento que a obra de Cage leva às últimas conseqüências seu projeto de crítica à racionalidade da musical ocidental, projeto agora amparado por uma junção entre expectativas vanguardistas tipicamente modernistas e expectativas de espiritualização da vida cotidiana[18]. Através da arbitrariedade do acaso, Cage procura abrir espaço para um retorno ao ser que se “deixaria estar” na imanência do sonoro. Daí porque ele poderá afirmar : “Eu vi a arte não mais como uma forma de comunicação que parte do artista em direção ao seu público, mas como uma atividade na qual o artista encontra uma maneira de deixar os sons serem eles mesmos[19].

Voltemos então à primeira fase de Cage. Ela é extremamente instrutiva a respeito do que move seu projeto estético de retorno. Quando ainda era aluno de Schoenberg, Cage  deixa claro sua necessidade em: “encontrar um meio de fazer música liberado da teoria da harmonia, ou da tonalidade”[20]. Esta recusa da harmonia como princípio estruturador da organicidade funcional das obras era radical. Não se tratava, para Cage, de abandonar o sistema harmônico funcional tonal em prol de outra forma de organização total como, por exemplo, o dodecafonismo ou algum modo alternativo de pensamento serial. Tratava-se simplesmente de parar de pensar em termos de progressão, de expectativa e resolução, de antecedente e consequente. O uso privilegiado de conjuntos de percussão e de piano preparado é uma decorrência desta exigência composicional. Pois, isto permitia a Cage organizar construções a partir do jogo entre som e aquilo que aparece exatamente como negação imediata do som (o silêncio). È neste sentido que devemos entender afirmações como: “O som tem quatro características: altura, timbre, intensidade e duração. O que se opõe e coexiste necessariamente com o som é o silêncio. Das quatro características do som, apenas a duração envolve tanto o som quanto o silêncio. Assim, uma estrutura baseada em duração (rítmica, frase, extensão de tempo) é correta (corresponde à natureza do material), enquanto estrutura harmônica é incorreta (derivada da altura, que não tem ser no silêncio)”[21].

Por outro lado, nas peças para piano, vemos claramente uma procura pela construção por justaposição de materiais, por cortes e rupturas. Nós poderíamos inicialmente pensar que Cage estaria seguindo uma via já aberta por Stravinsky com seus procedimentos cubistas de justaposição. Mas havia em Cage algo de muito particular.

A noção de justaposição implica necessariamente em dissolução da temporalidade. Isto significava, em Stravinsky, operar com uma noção espacial de tempo, pois sua música passa de um material a outro tal como alguém que atravessa as fronteiras de um território descontínuo. Composições por justaposição nos lembram, normalmente, que a determinidade imediata do espaço fundamenta-se na indiferença recíproca como marca do modo de ser da espacialidade. Tal estaticidade de materiais que se acomodam ao modo de ser da espacialidade permitiu a Adorno afirmar que, em Stravinsky, o material musical é apresentado da mesma maneira que apresentamos uma imagem estática que se dá no espaço. Daí porque seu material era normalmente um material fetichizado, material reduzido à sua própria imagem.

Este diagnóstico de fetichização devido à submissão à imagem não alcança a obra de John Cage. Pois, em Cage, os cortes eram tão constantes que o material estava simplesmente impossibilitado de desenvolver-se, mesmo que de maneira estereotipada. Um exemplo privilegiado aqui é Ophelia. Trata-se de uma música onde a profusão de pausas indica a ausência de desenvolvimento no sentido forte do termo. As frases musicais são curtas por serem incapazes de se desdobrarem. Isto implica em um empobrecimento radical do material, que é apresentado de maneira cada vez mais desarticulada: arpeggios, seqüências de oitavas, glissandos, pequenas repetições e modulações. Neste sentido, os primeiros compassos, com suas profusões de quintas e oitavas em seqüência, cortes abruptos e ausência completa de raciocínio contrapontístico já servem como ilustração (ver figura). Podemos mesmo dizer que a peça é composta com restos, com dejetos da gramática musical, já que se fixa naquilo que não tem valor do ponto de vista dos materiais. Ao suspender a estrutura de organização da forma, o compositor se vê diante de peças desarticuladas de um vocabulário que outrora serviu para a constituição de uma narrativa. A suspensão das capacidades organizadoras da estrutura nos deixa diante de objetos fora de cena, restos por não se enquadrarem em estrutura alguma.

Já se insinuava, neste momento, aquela que será a direção fundamental da música de Cage. Ela está claramente enunciada na afirmação : “A noção de relação retira a importância do som (...) eu comecei a me interessar não pelas relações – ainda que visse a interpenetração das coisas – mais creio que elas se interpenetram de uma maneira mais rica, mais abundante, se não estabeleço relação alguma”[22]. 

Aqui há um deslizamento cheio de conseqüência. Cage não poderia ser mais claro. Através desta operação de destruição da gramática musical, tratava-se de liberar o som de qualquer dependência de um pensamento da relação. Como viu muito bem Lyotard, trata-se de negar que: ‘no limite, o som, enquanto ligado, não vale mais devido a sua sonoridade, mas devido à rede de suas relações, atuais e possíveis, exatamente como um fonema, unidade distintiva arbitrária”[23]. Isto explica a tendência de Cage em apresentar os sons envoltos em silêncio, irrompendo sobre o fundo de espaços vazios que visam anular toda expectativa prévia de relação.

Este programa só pode se realizar de maneira integral através da destruição de todos os fatores formais que bloqueariam nossa aproximação da “real natureza dos sons”, como diria Daulhaus[24]. Ou seja, dicotomias como : a distinção entre som e ruído, música e silêncio, entre acaso e necessidade, entre qualidades periféricas e centrais do som, vão paulatinamente caindo por terra. Cage chegará mesmo a afirmar: “Todos os sons quais sejam suas qualidades e alturas (conhecidas ou desconhecidas, definidas ou indefinidas), todos os contextos de sons, simples ou múltiplos, são naturais e concebíveis no quadro de uma estrutura rítmica que abraça igualmente o silêncio”[25]. Ou ainda, percebendo a conseqüência que tal postura traria para uma reflexão sobre a racionalidade da forma musical : “Toda tentativa de excluir “o irracional” é irracional. Toda estratégia de composição que é inteiramente racional é irracional ao extremo”[26]. Esta interversão da razão é, na verdade, uma das figuras do problema da interversão da racionalidade em princípio de dominação, seja da natureza, seja dominação de si. Como exemplo privilegiado desta interversão, Cage identifica a música de Schoenberg, com sua tentativa de criação de totalidades funcionais a partir de um raciocínio serial que determina o significado do som através de relações posicionais no interior da série. Este é o sentido da afirmação: “O método de Schoenberg é análogo a uma sociedade em que a ênfase esta no grupo e na integração do individual ao grupo”[27].

Music of Changes (Música das Mutações), de 1951, com seus processos de composição baseados no I-Ching, é o marco de ruptura que leva Cage, cada vez mais, em direção àquilo que poderíamos chamar de "estética da indiferença" (para usar uma expressão feliz de Bárbara Formis), ou seja, estética do nivelamento e da indiferenciação sistemática de todo material sonoro. Não se trata simplesmente de estabelecer um movimento de contraponto entre opostos (som e ruído, música e silêncio), mas de operar no ponto de indiferenciação onde nos deparamos com a anulação entre o que interno ao campo de gravitação da obra musical e o que lhe é externo. Todo fenômeno audível, dizia Cage, é matérial próprio à música. Esta estética da indiferença em relação a todo vínculo privilegiado a materiais e objetos nos leva necessariamente à conjugação de uma gramática da desafecção. Lembremos, por exemplo, do que diz John Cage a respeito a intensidade e da excitação dos quadros de Jackson Pollock: "Nenhum destes aspectos me interessa. Eu peço ao artista para mudar minha maneira de ver, não minha maneira de sentir. Estou perfeitamente feliz com minhas sensações. Na verdade, se quisesse acrescentar algo a elas, seria alguma forma de tranqüilidade. Não quero perturbar minhas sensações. Não tenho a intenção de passar o resto da minha vida sendo jogado para todos os lados por um bando de artistas"[28]. Na verdade, esta mudança na maneira de ver é resultado de uma desafecção que impõe os objetos ao regime da indiferença. Daí porque Cage pode afirmar: "A responsabilidade do artista consiste em aperfeiçoar seu trabalho até que ele seja atrativamente desinteressante"[29].

 Talvez o melhor exemplo aqui seja Imaginary landscapes n. 4. Trata-se de uma peça para doze rádios aleatoriamente sintonizados. O uso do I-Ching serve para a definição da estrutura de tempo, duração, dinâmica e sons de rádios que os produzem de maneira absolutamente autônoma em relação ao “gosto individual e memória (psicologia) e também à literatura e ‘tradição’ das artes”. Desta forma, “os sons entram no espaço-tempo centrados em si mesmos, desimpedido pelo exercício da abstração, seus 360 graus de circunferência livres para um jogo infinito de interpenetração”[30].

Lembremos ainda que a escolha de rádios no papel de instrumentos musicais traz uma conseqüência maior para a própria definição de “espaço sonoro”. A música, mesmo sendo uma arte vinculada à temporalidade, organiza o espaço ao separar sons que são internos ao fenômeno musical e sons que são ruídos a serem isolados de toda e qualquer interpretação musical. O uso de rádios desarticula tal distinção, jogando o espaço musical em uma informidade indiferenciadora. Indiferenciação que impede o que comumente compreendemos por “experiência estética”, já que a experiência de audição da peça tende a se pautar por uma certa epokhé que suspende o juízo estético ao orientá-lo a partir do horizonte de uma “experiência ordinária” que só se abre a partir do momento que depomos as expectativas de julgamento[31].

 

Estoicismo musical

 

Esta suspensão do julgamento no interior do processo composicional em prol da crença na abertura à presença do que teria sido recalcado pela racionalidade musical é um ponto que traz uma pressuposição fundamental. Pierre Boulez, por exemplo, muito mais interessado em levar o pensamento serial ao extremo, viu nesta desarticulação do sentido global da forma o convite para uma “improvisação determinada apenas pelo livre-arbítrio”[32], ou seja, diletantismo que encobriria uma fraqueza fundamental no domínio das técnicas de composição.

Mas “livre-arbítrio” de uma subjetividade capaz de ter a seu dispor a integralidade de todo e qualquer material, eis algo absolutamente estranho ao projeto estético de Cage. Ao contrário, esta destruição de todos os fatores formais próprios da música ocidental era pensada por Cage como figura de uma dissolução do eu e dissolução da autonomia da vontade. Isto a ponto de Cage aceitar claramente não fazer exatamente música: “se a palavra ‘música’ é sagrada e reservada aos instrumentos do século dezoito e dezenove, nós podemos substituí-la por um termo mais pleno de sentido: organização de sons”[33]. Ou seja, a passividade da não-escolha, da não estruturação de relações é assumida no interior de um programa estético onde a própria ação composicional só pode se afirmar negando-se enquanto ação orientada para fins. "Qual o propósito desta música experimental?", pergunta Cage a si mesmo: "Não há propósitos, apenas sons"[34].

Este é um ponto fundamental. Toda forma musical traz a pressuposição de uma figura do sujeito, não apenas enquanto agente do processo composicional vinculado à categoria de expressão, mas também como ouvinte que deve se orientar a partir de modos determinados de audição. Tomemos, por exemplo, a forma-sonata definida como o que tem: “um clímax identificável, um ponto de máxima tensão para o qual a primeira parte do trabalho conduz e que é simetricamente resolvido. Trata-se de uma forma fechada, sem a estrutura estática de uma forma ternária; ela tem uma finalização dinâmica análoga ao desdobramento do drama oitocentista, no qual tudo é resolvido, os detalhes estão ligados e a obra é redonda”[35]. A identificação de clímax e tensões exige funções intencionais como a memória narrativa (que organiza o desenvolvimento em “drama”), a atenção orientada por um telos, além da compreensibilidade de princípios de diferenciação e de identidade partilhados tanto pelo compositor quanto pelo ouvinte. A idéia de resolução exige, por sua vez, um Eu capaz de orientar processos de síntese e de determinar o sentido de totalidades funcionais; ou seja, um Eu como unidade sintética de representações.

A música da imanência de John Cage, no entanto, é uma música da dissolução do Eu  por não exigir nenhuma destas funções intencionais e sintéticas. Se lembrarmos que uma das funções centrais do Eu é, exatamente, ser uma unidade sintética de representações, ou seja, instância que fornece a regra de unificação do diverso da intuição em representações de objetos, então podemos compreender como a luta de Cage contra as funções harmônicas de estruturação do material sonoro e contra os princípios de diferenciação que compõem a gramática musical era, no fundo, luta contra as funções sintéticas do Eu. “Fazer algo que escapa à dominação do eu”[36] como maneira de formalizar o som em sua real natureza, esta poderia servir de afirmação-chave para Cage. Adorno viu isto claramente ao perceber, em Cage, um compositor que: "procurava transformar a fraqueza do eu em força estética".

Este programa de dissolução do Eu pode nos explicar, por exemplo, porque a música de Cage não é construída a partir de procedimentos de “improvisação”, mas é, na verdade, o ato de posição de campos de indeterminação. A diferença entre os dois conceitos é absoluta. A improvisação está ligada à potencialidade expressiva do Eu que, servindo-se da memória e de parâmetros musicais de base, varia normalmente apenas um padrão musical : a altura. A indeterminação funda-se exatamente na negação da intencionalidade do compositor. Neste caso, a tarefa do compositor consiste simplesmente em definir regras de um dispositivo preciso que deve permitir a manifestação de um acontecimento musical imprevisível tanto para o músico quanto para o intérprete e para o ouvinte. Desta forma, o fazer musical abandonava categorias aparentemente tão centrais quanto "expressão" e "intencionalidade".

            É neste ponto que John Cage aproxima-se de uma temática fundamental tanto para a arte do século XX quanto para a estruturação da racionalidade de práticas clínicas como a psicanálise, em especial a psicanálise de orientação lacaniana. Ela diz respeito a uma certa noção do Eu e de suas funções como centro de desconhecimento narcísico dos mecanismos de submissão de si a uma realidade alienante. Notemos, antes de mais nada, o caráter "terapêutico" das obras cageanas. Interpretar certas obras implica em aceitar um processo de decisão onde a apatia e a deposição da intencionalidade são elementos fundamentais. Esta apatia significa assumir um modo de relação de objeto baseado na indiferença e, por conseqüência, um modo de relação a si baseado na despersonalização e na destituição subjetiva, já que não é uma pessoa enquanto pólo consciente de intenções que interpreta., mas alguém que, através de uma ataraxia estóica, é capaz de reconciliar-se com o curso de um mundo que pode se afirmar para além de toda imagem alienada de organização. Este estoicismo musical é, pois, posição através da qual o compor significa reconciliar com o curso do mundo através da ataraxia, da apatia e da suspensão do juízo estético.

            Um outro ponto que demonstra o caráter da destituição subjetiva pressuposta pela música de Cage diz respeito à figura da “corporeidade” que dela deriva. Neste sentido, lembremos da relação fundamental entre  música e dança em Cage. Sabemos como, a partir de 1943 e até sua morte, Cage desenvolve uma colaboração extremamente durável com o coreógrafo Merce Cunningham. Mas mesmo antes de tal encontro, Cage já trabalhava, com seu grupo de percussão, em peças musicais para coreografias. Tal interface privilegiada nos leva a perguntar sobre a figura de corpo que sua música procura atualizar.

            Vimos como, em sua primeira fase, Cage privilegiava estruturações baseadas em duração e medidas de tempo, isto ao invés de estruturas baseadas em funcionalidades harmônicas ou séries de alturas. Este foi um operador central de aproximação entre sua música e a dança: “O tempo é um denominador comum entre a dança e a música e não uma especificidade da música, como a tonalidade ou a harmonia. Eu liberei os dançarinos da necessidade de interpretar a música no plano dos sentimentos, eles podiam criar uma dança no interior da mesma estrutura usada pelo músico”[37]. Este tempo, no entanto, reduzido á fluxos de duração, é tempo sem narrativa, tempo que pede gestos fora de um drama, movimentos que expressam: “nenhuma história e nenhum problema psicológico”[38]. Corpos que habitam este tempo tendem a desconhecer estruturas formais limitadoras, ou seja, tendem a andar em direção ao informe.

            Isto talvez nos explique porque o contato com Cunningham levou Cage a compreender paulatinamente uma certa inadequação entre sua música e a regularidade exigida pela dança: “As duas coisas a respeito das quais a música é atualmente capaz de se liberar são, a meu ver, a tonalidade de intervalo e os ritmos pois são dois aspectos que se mesuram facilmente (...) Agora, na dança, se você abandonar o que corresponde ao ritmo e ao intervalo – ou seja, o movimento sobre duas pernas [organizado no espaço cenográfico] – o que resta? È um pouco como se você não pudesse abandoná-los”[39]. Tal inadequação nos lembra como sua música estava, na verdade, à procura de um corpo que se reconciliaria com a informidade do puro gesto sem telos ou estrutura. Continuidade circular de gesto que talvez estejam mais bem encarnados na circularidade “modal” de peças como Dream (1948).

 

Cage entre duas mortes

 

Neste ponto, se retornarmos os olhos à psicanálise, perceberemos não estarmos longe de algumas idéias centrais para a constituição da racionalidade dos modos de subjetivação da praxis analítica nos primeiros seminários de Jacques Lacan. Lembremos como, desde o Seminário I, Lacan compreende o progresso analítico como um ato capaz de nos levar ao: “declínio imaginário do mundo e uma experiência no limite de despersonalização"[40]. Isto nos lembra como o progresso analítico implica necessariamente a consumação das fixações imaginárias do eu. Um ano depois, Lacan será ainda mais claro nesta via : “Se nós formamos analistas, é para que existam sujeitos nos quais o eu esteja ausente. É o ideal da análise que, é claro, continua virtual. Nunca há um sujeito sem eu, um sujeito plenamente realizado, mas é isto que se deve sempre tentar obter do sujeito em análise”[41]. Assim, ele fará alusão a uma “certa purificação subjetiva” que se realiza na análise e que anuncia um caminho que será aprofundado através da temática da destituição subjetiva. Podemos falar em aprofundamento porque não se tratará posteriormente apenas de dissolver as fixações imaginárias para permitir a representação do sujeito pela transcendentalidade do significante puro, mas de fazer vacilar a própria inscrição simbólica do sujeito. 

Esta certa purificação subjetiva parece inicialmente também ligada a uma posição de apatia e de ataraxia. De fato, Lacan procurou durante muito tempo organizar a racionalidade da praxis clínica através do reconhecimento do desejo puro, ou seja, um desejo exposto em sua verdade de transcender todo procedimento natural de objetificação. Ele é fundamentalmente sem objeto, desejo de “nada de nomeável”[42]. Isto nos deixa, necessariamente, com uma questão: o que pode significar deparar-se com a verdade de um desejo puro que parece transcender toda relação de objeto? Como reconhecer e dar estatuto objetivo àquilo que é pura negatividade que não cessa de não se inscrever ? Não há como não deixar de ver, no horizonte, alguma forma de ataraxia na qual o sujeito poderia tomar distância de toda e qualquer relação de objeto e gozar assim da indiferença absoluta em relação aos objetos empíricos (indiferença que tem como correlato a própria despersonalização do eu, este “objeto interno” privilegiado). Lembremos que, ainda no seminário XI, ao insistir na variabilidade própria ao objeto da pulsão, Lacan não deixa de perguntar : “O objeto da pulsão, como devemos concebê-lo para que se possa dizer que, na pulsão, não importa qual ela seja, ele é indiferente?”[43]. Poderíamos dizer que a conseqüência necessária desta perspectiva seria uma indiferença que permitira, ao final de análise, o sujeito abolir toda fixação e trocar de objeto mais facilmente? “Os antigos colocavam o acento sobre a tendência, enquanto que nós, nós a colocamos sobre o objeto (...) nós reduzimos o valor da manifestação da tendência, e nós exigimos o suporte do objeto pelos traços prevalentes do objeto”[44]. Esta afirmação lacaniana, feita com uma ponta de nostalgia a respeito da vida amorosa dos antigos, era, na verdade, a exposição de todo um programa analítico de cura. De qualquer forma, notemos como parecemos descrever um processo de subjetivação, com seus requisitos de indiferenciação e desafecção, que não está muito distante daqueles postos em circulação pelo programa estético de John Cage.

É claro que há aqui algumas questões de esclarecimento a serem levantadas. A primeira diz respeito ao conceito de natureza, já que, em Cage, tal subjetivação é feita em nome de processos de retorno à origem através da recuperação de um campo próprio à natureza. A princípio, não parece que a psicanálise (especialmente a psicanálise de orientação lacaniana) tenha espaço para alguma forma de orientação de retorno à imanência com um curso do mundo no qual encontraríamos a natureza. No entanto, há um conceito psicanalítico que articula o que normalmente foi indexado a partir de noções como “natureza interna”: trata-se  do conceito de Trieb (pulsão, impulso), “conceito limite entre o psíquico e o somático”[45]. Freud chega mesmo a basear-se, entre outros, na biologia de Weismann a fim de falar da pulsão como princípio de inteligibilidade do comportamento do organismo vivo em geral: “uma pulsão seria o impulso inerente ao organismo vivo (belebten Organischen) em direção ao restabelecimento de um estado inicial que este ser vivo (Belebte) precisou abandonar sob a influência perturbadora de forças exteriores”[46]. Como se fosse questão de uma peculiar recuperação de uma reflexão sobre a natureza através do uso do conceito de pulsão

De fato, a configuração da pulsão enquanto princípio de inteligibilidade da conduta do organismo não implica em determinação exaustiva dos modos de relação entre ser vivo e meio ambiente (como está implícito em um termo como Instinkt). Mas ela fornece, sob o signo da pulsão de morte, uma direção de retorno através do restabelecimento de um “estado natural”[47] extremamente particular. Talvez tenha sido isto que permitiu a Lyotard ver, na pulsão de morte, o princípio de retorno que se manifestaria nas obras de Cage enquanto energia livre que rompe com disposições intencionais para realizar “intensidades anônimas”[48] acessíveis a uma relação de imanência. Neste sentido, se seguirmos Lyotard, os modos de dissolução do eu e de destituição subjetiva que estruturam a compreensibilidade da obra de John Cage seriam, na verdade, regimes de subjetivação da pulsão.

Se este for o caso, há algo de importante a ser acrescentado no que diz respeito a Lacan. Falar de “natureza” no interior da metapsicologia lacaniana pode parecer o mais profundo anacronismo. Afinal, Lacan é claro: “a natureza, tal qual se apresenta ao homem, tal qual ela a ele se adapta (coapte) é sempre profundamente desnaturada”[49]. A divisão estruturalista estrita entre natureza e cultura pareceria completamente absorvida por Lacan. No entanto, podemos defender que a “desnaturação” da natureza a qual se refere Lacan não é posição simples de um convencionalismo que afirmaria que a natureza é mero discurso reificado. Ela é tentativa de pensar a natureza não mais como um pólo positivo de doação de sentido ou como um plano de imanência, mas como este locus no qual nenhum de nós estará em casa, espaço da não-identidade da pulsão, pois a pulsão é desnaturada apenas para um conceito imanentista de natureza.  Na verdade, o conceito de pulsão é o que nos permite desvincular natureza e princípios de imanência e identidade. Talvez este seja o sentido de uma afirmação tardia como: “a natureza se especifica por não ser uma, de onde o procedimento lógico para abordá-la. Através do procedimento de chamar natureza o que vocês excluem por atentar-se a algo, este algo se distinguindo por ser nomeado, a natureza não se arrisca a nada, a não ser a afirmar-se como sendo um pot-pourri de fora-da-natureza (hors-nature)”[50]. Ou seja, a natureza é aquilo que resiste à nomeação e á representação identificadora. Neste sentido, sua imagem só pode ser negativa por estar fora de seu próprio conceito.

Aceitando tal perspectiva, podemos retornar ao problema da dissolução do Eu, da destituição subjetiva e da subjetivação da pulsão em Lacan a fim de ver se seu encaminhamento converge com o que podemos derivar a partir da obra de John Cage.

Talvez o melhor caminho aqui seja lembrar da necessidade de uma certa torção no interior da experiência intelectual lacaniana. Ao insistir na centralidade da noção de pulsão (a partir dos anos sessenta) Lacan vai paulatinamente relativizando uma idéia de progresso analítico vinculada à subjetivação do desejo puro através da anulação da pregnância de todo objeto empírico privilegiado ao desejo. Protocolo de desafecção e apatia que deveria levar o sujeito a reconhecer a verdade do seu desejo através de um significante puro que, por ser puro significante, não denota objeto algum.

Ao falar da pulsão, Lacan lembrará, ao contrário, que ela está pode sim se satisfazer em um objeto (há um objeto da pulsão, contrariamente ao desejo). Mas se trata destes objetos parciais (objetos a) aos quais o sujeito estava vinculado antes dos processos de individuação, de socialização de seu desejo e de constituição da imagem do corpo próprio. Há um certo protocolo de retorno aqui, mas que leva o sujeito a se confrontar com um objeto ao qual ele estava vinculado, no qual ele deve agora se reconhecer, mas que é marcado pela opacidade do que não se submete à imagem unificadora do Eu. Desta forma, Lacan procura pensar a subjetivação da pulsão não mais a partir da lógica da indiferenciação em relação ao objeto, mas a partir da confrontação com um objeto que tenha o potencial disruptivo de uma experiência de não-identidade. A importância de tal experiência leva Lacan a afirmar que desejo do analista, desejo que orienta o progresso analítico, não mais deveria mais aparecer como um desejo puro. Mas se o desejo do analista não é puro, é porque ele deve estar necessariamente vinculado a um objeto. Ele é patológico, no sentido kantiano, por não se colocar no ponto de indiferença em relação a série de objetos empíricos.

Isto talvez permita demonstrar que, na confrontação da psicanálise com John Cage, fica a certeza de que há várias formas de destituição subjetiva. Uma delas é feita em nome da revelação de um Dasein, de uma natureza que é pólo positivo e imanente de doação de sentido. Pois mesmo que este sentido não se ponha mais como produção estruturada de um saber instrumental, ele aparece como o que permite o gozo da proximidade segura de um Dasein natural (para usar um termo de Hegel) que age para além do nosso agir. A outra se dá através da confrontação com um objeto (que em alguns momentos Lacan chama também de Dasein) que guarda a opacidade do que nunca se oferece como positividade e que permite ao sujeito descobrir, na sua relação a si, algo da ordem da não-identidade das coisas. No entanto, tanto em um caso como em outro nos deparamos com a certeza de que: “Os homens só são humanos quando eles não agem e não se colocam mais como pessoas; esta parte difusa da natureza na qual os homens não são pessoas assemelha-se ao delineamente de um ser inteligível, a um Si que seria desprovido de eu (jenes Selbst, das vom Ich erlöst wäre). A arte contemporânea sugere algo disto"[51].

 



[1] GREEENBERG, Rumo a um mais novo Laocoonte  in COTRIM et FERREIRA (org.) Clement Greenberg e o debate crítico, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, pp. 52-53

[2] Ver, por exemplo, Arnold Schoenberg (1874-1951) in Prismas; Stravinsky e a regressão in Filosofia da Nova Música e Alban Berg; o mestre da transição ínfima.

[3] Lacan, por exemplo, dirá que : “O fetiche é de uma certa maneira imagem, e imagem projetada” (LACAN, Séminaire IV, Paris: Seuil, 1994, p. 158)

[4] ADORNO, Negative Dialektik, Frankfurt: Suhrkamp, 1973, p. 199

[5] ADORNO, idem, p. 201

[6] ADORNO, Prismas, São Paulo: Ática, 2001,  p. 147

[7] LYOTARD, Plusieurs silences in Des dispositifs pulsionels, Paris: Chr. Bourgeois, 1990

[8] Cf. ADORNO, Ästhetiche Theorie, Frankfurt: Suhrkamp, 1973

[9] LACAN, Ecrits, Paris: Seuil, 1966, p. 12

[10] LACAN, Séminaire XI, Paris: Seuil, 1973, p. 101

[11] LACAN, Autres écrits, Paris: Seuil, 2001, p. 183

[12] LACAN, idem, p. 195

[13] Ver, por exemplo, KOSTELANETZ, Conversations avec John Cage, Paris: Syrte, 2000, p. 236

[14] CAGE, Composition in retrospect

[15] Sobre este ponto ver GOEHR, For the birds/ Against the birds: the modernist narratives of Adorno, Danto (and Cage)

[16] BAYER, De Schoenberg à Cage, Paris: Klincksieck, 1981, p. 186. Uma arte que, para realizar seu próprio projeto, deve ser capaz de responder à crítica adorniana, endereçada a Cage, a respeito, da “hipóstase do som”: “A ilusão consistia em acreditar”, dirá Adorno “que poderíamos escapar da faticidade do que é marcado pelo sujeito venerando a matéria como se ela fosse neve fresca, dando-lhe qualidades absolutas que se poriam a falar por si mesmas” (ADORNO, Quasi una fantasia)

[17] A respeito do piano preparado, lembremos inicialmente como Max Weber insiste no caráter de “instrumento de espaço interior” próprio ao piano por permitir “a apropriação doméstica de quase todo o patrimônio da literatura musical, na imensa abundância de sua própria literatura e, finalmente, na sua especificidade como instrumento universal de acompanhamento e aprendizagem” (WEBER, Fundamentos racionais e sociológicos da música, São Paulo;Edusp, 1995, p. 149). Weber chega mesmo a afirmar que a literatura pianística desenvolve-se mais no Norte devido a uma “cultura do lar e da home” ausente no Sul. Por outro lado, a educação basicamente harmônica da música moderna deve muito à onipresença do piano. Neste sentido, a figura do piano preparado, ao anular a função harmônica do piano em prol de explorações percursivas, significa, ao mesmo tempo, negação do instrumento mais vinculado às potencialidades do sistema tonal e negação do dispositivo que trouxe o sistema tonal para a familiaridade do espaço doméstico.

[18] Tais expectativas de espiritualização da vida cotidiana sempre estiveram presentes na música norte-americana desde, ao menos, Charles Ives. Há algo aqui resultante da auto-compreensão da “América” enquanto multiplicidade, enquanto espaço livre das hierarquias e distinções que marcaram a “velha Europa”. O ecletismo da música de Cage (e de vários outros compositores norte-americanos) seria apenas o resultado de um “retorno à experiência ordinária” que, na era da urbanidade, tudo mistura e às formas musicais enraizadas em práticas comunais de interação social. Este tom afirmativo da “entificação” da vida cotidiana será, ainda, acompanhado pelo espiritualismo de Emerson e Thoureau.

[19] KONSTELANETZ, Conversations avec John Cage, op. cit., p. 77

[20] idem, p. 88

[21] CAGE, Silence, Middletown: Wesleyan University Press, 1961, p. 63

[22] KONSTELANETZ, idem, p. 366

[23] LYOTARD, Plusieurs silences, op. cit, p. 282

[24] DAULHAUS, Schoenberg and the new music, Cambridge University Press, 1987

[25] CAGE, Silence, op. cit., p. 33

[26] idem, p. 30

[27] idem, p. 5

[28] KONSTELANETZ, Conversations avec John Cage, op. cit., p. 240

[29] CAGE, Silence, op. cit., p. 64

[30] idem, p. 59

[31] Adorno via nesta epokhé, uma certa tentativa: “do sensorium em se adaptar de maneira paradoxal ao que é alienado e reificado (ADORNO, Introdução à sociologia da música, p. 187) por não acreditar que fosse possível, á arte, operar alguma forma de recurso à experiência ordinária enquanto espaço para além da universalização da forma-mercadoria.

[32] BOULEZ, Apontamentos de aprendiz, São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 50

[33] CAGE, Silence, op. cit , p. 3

[34] idem, p. 17

[35] ROSEN, Sonat forms, New York, Norton, 1988, p. 10

[36] KONSTELANETZ, Conversations avec John Cage, op. cit, , p. 300'

[37] KONSTELANETZ, Conversations avec John Cage, op. cit., , p. 258

[38] CAGE, Silence, op. cit., , p. 95

[39] KONSTELANETZ, Conversations avec John Cage, op. cit., , p. 266

[40] LACAN, Séminaire I, Paris: Seuil, 1975, p. 258

[41] LACAN, Séminaire II, Paris: Seuil, 1978, p. 287

[42] LACAN, idem, p. 261

[43] LACAN, Séminaire XI, Paris: Seuil, 1973, p. 153

[44] LACAN, Séminaire VII, Paris: Seuil, 1986, p. 117

[45] FREUD, Gesammelte Werke, Frankfurt, Fischer, 1999, vol. X

[46] FREUD, Gesammelte Werke, vol XIII, p. 38

[47] O que Adorno percebera claramente em ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 212

[48] “A pulsão de morte é simplesmente o fato de que a energia não tem orelha para a unidade. (...) [Ela]  se marca nos saltos de tensão, o que Klossowski chama de intensidades¸Cage de eventos” (LYOTARD, Des dispositifs pulsionels,op. cit.,  p. 282

[49] LACAN, Séminaire IV, Paris: Seuil, 1984, p. 254

[50] LACAN, Séminaire XXIII, Paris: Seuil, 2005, p. 12

[51] ADORNO, Negative dialektik, op. cit. p. 267