A teoria lacaniana da pulsão como ontologia negativa

 

 

Ich bin des Geist,

der stets verneint.

Goethe

 

 

“Eu tenho uma ontologia - por que não? - como todo mundo tem uma, ingênua ou elaborada”[1]. Esta frase não poderia passar desapercebida, ainda mais sendo proferida por um psicanalista. Que Jacques Lacan admita ter uma ontologia, como aparentemente seria o caso de todo mundo; que ele admita isto em um tom absolutamente natural (por que não tê-la?), eis algo que não deixa de nos colocar questões. Pois qual poderia ser afinal a função de considerações de natureza ontológica para uma praxis aparentemente tão vinculada a particularidade do caso clínico como a psicanálise? Por que deveríamos procurar alguma espécie de relação entre a direção do tratamento que orienta a clínica analítica e uma ontologia?  E, principalmente, qual tipo de ontologia seria capaz de fornecer, à psicanálise, os subsídios implicados na direção do tratamento?

            Tais questões visam expor as conseqüências de uma hipótese maior a respeito da experiência intelectual lacaniana. Trata-se de afirmar que uma das contribuições mais importantes de Lacan consiste na defesa de que a psicanálise é solidária de uma articulação complexa, porém decisiva, entre clínica e ontologia. Maneira um pouco mais arriscada de dizer que a orientação da clínica analítica é dependente de um núcleo invariável de conceitos que compõe o campo do que se convencionou chamar de “metapsicologia”.

            É verdade que tal afirmação pode parecer não evidente, ainda mais em uma época como a nossa, na qual nos acostumamos a aceitar sem reservas o discurso da “soberania da clínica”. Soberania legitimada pela realidade urgente do sofrimento que leva o sujeito à análise. Um pouco como se a eficácia terapêutica em relação a uma categoria fenomênica extremamente normativa como o “sofrimento” fosse condição suficiente para assegurar a validade de dispositivos clínicos. Neste sentido, lá onde uma prática mede sua validade a partir da eficácia em realizar disposições normativas variáveis de acordo com contextos sócio-históricos, não há lugar para insistir na articulação entre clínica e ontologia. Lá onde uma clínica se mede inteiramente através de sua capacidade em “curar o sofrimento” não há, de fato, espaço para além da implementação disciplinar de dispositivos normativos[2].

            No entanto, esta não era exatamente a perspectiva que animou Jacques Lacan. Podemos dizer que sua peculiaridade vem da insistência da relação entre direção do tratamento e reconhecimento da dignidade ontológica de certos conceitos metapsicológicos, especialmente o conceito de pulsão (Trieb). Daí afirmações segundo as quais a pulsão seria: “uma noção ontológica absolutamente central que responde a uma crise da consciência que não somos forçados a apreender plenamente, já que nós a vivemos" [3]. A teoria da pulsão seria assim o que orienta, de maneira invariável, tal como o que se assenta sobre uma ontologia, a clínica em suas aspirações de validade. Isto a ponto da modificação ou abandono da teoria da pulsão implicar necessariamente, para Lacan, na perda da essencialidade da prática analítica.

Neste sentido, este artigo faz parte de um movimento mais amplo de pesquisa que consiste em avaliar algumas características maiores que nortearam a reconstrução lacaniana da metapsicologia. Características que só ficarão evidentes se abandonarmos a idéia tradicional de que, no núcleo do projeto lacaniano, encontraríamos um simples movimento de leitura estruturalista do inconsciente e da dinâmica de suas formações. Pois, talvez, o projeto lacaniano consista, na verdade, em dotar a metapsicologia de um estatuto ontológico que estaria para além de todo e qualquer estruturalismo. Estatuto ontológico que se insinua todas as vezes que Lacan toma a palavra para falar do “ser do sujeito” (e por que um psicanalista deveria falar do ser?) ou para falar sobre a “essência do objeto” do desejo, isto sem deixar de completar: “Você perceberam que eu falei de essência, tal como Aristóteles. E depois? Isto quer dizer que estas palavras são totalmente utilizáveis”[4].

            Mas para encaminhar de maneira adequada esta reflexão sobre a teoria lacaniana da pulsão, faz-se necessário retornar a Freud a fim de identificar aquilo que, no interior da longa elaboração freudiana a respeito do estatuto das pulsões, será decisivo para a experiência intelectual lacaniana.

 

Da energética à metafísica da morte

 

            Sabemos como, para Freud, o recurso a uma teoria das pulsões enquanto Grundbegriff marcava o coração da reflexão psicanalítica com uma dimensão especulativa indelével. Mesmo que, em alguns momentos, Freud aparentemente defenda um certo reducionismo materialista ao esperar o dia em que: “todas nossas concepções provisórias (Vorläufigkeiten), em psicologia, poderão se formar a partir de suportes (Trägen) orgânicos”[5], não devemos esquecer quão especulativa era a físico-química energética que servia de base para a formação do horizonte cientista presente nos textos freudianos quando este fala em “fenômenos orgânicos”. O que leva Lacan a afirmar, sem muitas mediações, que: “a energética é também uma metafísica”[6]. Se voltarmos os olhos ao trajeto da formação do conceito de pulsão nos textos freudianos, veremos a natureza desta dimensão especulativa da teoria das pulsões.

            Ao aparecer pela primeira vez de maneira explícita, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, o termo pulsão visa dar conta das fontes internas de excitação as quais o organismo não pode escapar. Dentre tais fontes de excitações internas, a sexualidade já aparece como elemento maior das preocupações freudianas, embora ela não seja a fonte exclusiva. Já no não-publicado Projeto para uma psicologia científica, Freud lembrava, ao falar da “urgência da vida” (Not des Lebens) enquanto excitação interna que contrariava o princípio de inércia do aparelho psíquico, que a fome e a respiração também eram fontes de tal excitação. Nesta primeira abordagem sobre a pulsão, Freud ainda insistirá que uma de suas características centrais é a de ser uma força constante, e não apenas força de um impacto momentâneo de falta sentida pelo organismo. De onde se segue a definição canônica da pulsão como: “representação psíquica (Psychische Repräsentanz) de uma fonte endossomática de excitação”.

            Até aqui, nada indica a necessidade de transformar o conceito de pulsão em fundamento de preocupações especulativas. A uma primeira vista, Freud parece estar muito mais perto de uma explicação materialista dos processos causais do aparelho psíquico ou, ainda, de uma perspectiva, classicamente implantada na medicina desde ao menos Broussais, que compreende a excitação como o fato vital primordial. Mas os problemas vinculados à definição do estatuto das pulsões ficam visíveis a partir do momento em que Freud procura definir a natureza da energia responsável por esta excitação interna constante.

Sabemos como Freud parte inicialmente de uma distinção entre a energia libidinal própria á sexualidade e “outras formas de energia psíquica” como aquelas em jogo nas necessidades fisiológicas de auto-conservação; distinção esta fundadora de um primeiro dualismo pulsional entre pulsões sexuais e pulsões de auto-conservação. Tal dualismo será suspenso a partir da constituição da categoria de “narcisismo”, já que o narcisismo permitirá a Freud reconhecer que: “as pulsões de auto-conservação também eram de natureza libidinal, eram pulsões sexuais que haviam tomado por objeto, ao invés dos objetos exteriores, o próprio eu”[7]. De onde se seguia a afirmação de que: “Basta simplesmente admitir que as pulsões são parecidas qualitativamente e que devem seus efeitos unicamente às grandezas de excitação (Erregungsgrössen) que cada pulsão veicula ou, talvez, a certas funções desta quantidade”[8]. Como veremos, redução extremamente sintomática da diferença qualitativa às grandezas quantitativas. Por fim, o dualismo pulsional voltará, de maneira totalmente reconfigurada, apenas a partir do texto Para além do princípio do prazer. É neste momento de reconfiguração profunda também da noção de libido que Freud fará mais apelo a reflexões sobre o conceito de Trieb desenvolvidas a partir da tradição idealista alemã, em especial na obra de Schopenhauer (lembremos como, antes de Schopenhauer, o conceito de Trieb desempenha um papel importante, entre outros, em Fichte e Hegel).

Desta forma, a noção-chave para a compreensão da natureza da energia pulsional é libido. Freud a define normalmente como força quantitativamente variável que permite a comparação de processos e transposições no domínio da excitação sexual. Ao tentar compreender o impulso determinante para a inteligibilidade da conduta a partir da posição de uma energia endosomática plástica quantitativamente caracterizada, Freud atualiza, à sua maneira, uma longa tradição racionalista que procurava definir a psicologia como “física do sentido externo”, ou seja, como o que permite: “determinar as constantes quantitativas da sensação e as relações entre tais constantes”[9]. Devemos ler nesta perspectiva sua dependência epistêmica à psicofísica de Fechner, para quem “os princípios gerais da psicofísica envolvem apenas a manipulação de relações quantitativas”[10], assim como de Helmholtz e Du Bois-Reymond, para quem, por sua vez, só há, no organismo, forças físico-químicas em atuação[11].

Por outro lado, este vocabulário da energia e da força, longe de ser uma mera metáfora cientista que impediria o desvelamento do verdadeiro caráter da psicanálise enquanto prática assentada no uso clínico de processos de auto-reflexão (motivo de uma longa tradição de crítica à metapsicologia que engloba nomes tão díspares entre si quanto podem ser Politzer, Habermas e Ricoeur), é, na verdade, a maneira que Freud encontra para indicar o vínculo da pulsão à dimensão de um solo irreflexivo (e ainda não estruturado) para a conduta e o pensar.

Lembremos, a este respeito, que a caracterização da libido como quantum de energia não é feita tendo em vista alguma forma de “mensuração” de processos psíquicos entre si. É verdade que Freud define o ponto de vista econômico (que, juntamente com o tópico e o dinâmico, compõe a perspectiva de apreensão de fatos metapsicológicos) como sendo aquele que: “se esforça em seguir os destinos (Schicksale) das grandezas de excitação (Erregungsgrössen) e em obter uma estimativa (Schätzung), ao menos, relativa destas”[12]. Mas a afirmação diz o que ela quer dizer. Se o problema da estimativa é afetado por uma cláusula de relativização, é para lembrar que o ponto realmente importante diz respeito à apreensão do trajeto, do “destino” dos quanta de energia libidinal[13]. Na verdade, isto demonstra como o ponto de vista econômico visa permitir a Freud pensar esta plasticidade própria a uma energia psíquica caracterizada, principalmente, pela sua capacidade em ser transposta, invertida (Freud usa, nestes casos, o termo Verkehrung), desviada, recalcada, em suma, deslocada de maneira aparentemente inesgotável. Princípio de deslocamento constante que leva Freud a caracterizar inicialmente a libido como energia que circula livremente, “energia livre” em relação àquilo que poderia barrar tal movimento, ou seja, em relação a sua ligação (Bändigung) através da subsunção a representações (Vorstellung). [Helmholtz e a inversão do valor da energia livre]

Que Freud tenha refletido sobre tal plasticidade, de maneira privilegiada, a partir de fenômenos ligados à sexualidade, eis um ponto absolutamente central. De fato, ele quer mostrar como há, no sujeito, o que não se deixa determinar de maneira reflexiva como representação da consciência, há o que só se manifesta de maneira polimórfica, fragmentada e que encontra seu campo privilegiado, necessariamente, em uma sexualidade não mais submetida à lógica da reprodução, encontra seu campo em um impulso corporal que desconhece  telos finalistas, como é o caso da reprodução. Daí porque a libido é inicialmente caracterizada como auto-erótica[14], inconsistente por estar submetida aos processos primários e, por fim, perversa (no sentido de ter seus alvos constantemente invertidos, desviados e fragmentados).

Como veremos mais a frente, esta libido é, na verdade, solidária de um conceito de natureza pensada como campo do que ganha inteligibilidade a partir da redução de seus fenômenos ao conceito geral de “energia”. No entanto, ao privilegiar o campo da sexualidade e ao determinar sua essencialidade a partir da noção de “energia livre”, Freud impede que a natureza apareça como plano positivo de doação de sentido. A partir de Para além do princípio do prazer, tal impossibilidade  permitirá, de maneira explícita, a articulação fundamental entre teoria das pulsões a uma reflexão sobre a natureza como espaço de manifestação de uma certa “negatividade”.

No entanto, devemos inicialmente tirar algumas conseqüências desta articulação complexa entre representação e libido pensada como energia livre. Uma delas ficará visível se aproximarmos duas afirmações canônicas a respeito da pulsão. A primeira vem do texto O inconsciente: “uma pulsão não pode transformar-se em objeto (Objekt) da consciência, apenas a representação que a representa (die Vorstellung die ihn repräsentiert)”[15]. A segunda, escrita na mesma época, lembra que o objeto da pulsão: “é o que há de mais variável (variabelste) na pulsão, ele não está originalmente vinculado (verknüpft) a ela (...) Ele pode se substituído a vontade ao longo dos destinos que a pulsão conhece”[16]. Se definirmos “objeto” como sendo o que resulta de procedimentos de categorização de uma consciência que unifica o diverso da sensibilidade em representações sintéticas, então diremos que a pulsão só se manifesta à consciência através da sua ligação em representações de objeto. Ligação frágil, no entanto, marcada pela variabilidade estrutural do que não se deixa objetivar de maneira essencial; ligação operada por uma representação incapaz de apresentar o que não se deixar unificar, ou ainda, o que não se deixa pensar no interior de relações estruturadas.

É a partir deste problema armado que devemos abordar as questões legadas pela construção freudiana ulterior do conceito de “pulsão de morte”; conceito central para a metapsicologia lacaniana, já que, segundo o psicanalista parisiense: “toda pulsão é virtualmente pulsão de morte”[17]. Como veremos mais a frente, esta é a afirmação central para a compreensão da figura lacaniana da pulsão por nos lembrar que Lacan tende a operar na clínica com uma modalidade muito particular de monismo pulsional, não sendo por acaso que, em suas mãos, a pulsão aparece sempre no singular.

Seguindo uma via aberta por Lacan, Jean Laplanche lembra que uma metamorfose profunda ocorre quando Freud vincula, posteriormente, a noção de libido à potência unificadora de Eros (tal como ele a encontra no mito de Aristófanes, em O banquete, de Platão), isto ao passar ao dualismo pulsional Eros/Tanatos. A definição da libido como Eros unificador , potência que visaria: “formar, a partir da substância viva, unidades (Einheiten) cada vez maiores e assim conservar a vida na sua permanência levando-a a desenvolvimentos mais complexos”[18] parece implicar em abandono da noção de libido pensada a partir de uma energia livre própria à esta sexualidade fragmentada e polimórfica tematizada anteriormente por Freud. Tal abandono seria impulsionado pelas considerações freudianas a respeito da centralidade do narcisismo, com seus mecanismos de projeção e introjeção que unificam os destinos da pulsão à repetição da imagem do Eu[19]. Como se o narcisismo fosse a revelação do pathos de um Eu pensado como unidade sintética que fornece o princípio de ligação (Verbindung) do diverso da experiência sensível em representações de objetos (boa parte do interesse, de filósofos como Theodor Adorno, pela psicanálise, encontra aí sua raiz, ou seja, em uma espécie de reflexão sobre as “patologias do esquematismo transcendental”).

Neste contexto, a reconstrução do dualismo pulsional através do par Eros e pulsão de morte seria o resultado da necessidade em encontrar um novo destino para a potência de des-ligamento própria à energia livre que havia inicialmente definido a libido. Ou seja, a polaridade vida/morte na teoria pulsional freudiana recobre, na verdade, a distinção entre energia ligada em representações através da capacidade sintética do Eu/energia livre inauguradora da dinâmica psíquica[20].

Mas, a princípio, não é evidente a razão que leva Freud a utilizar o termo “morte” para falar de tal potência de des-ligamento. Trata-se de uma questão claramente posta por Lacan quando afirma: “Existe uma dimensão para além da homeostase do Eu (moi), uma outra corrente, uma outra necessidade que deve ser distinguida em seu plano. Esta compulsão a retornar a algo que foi excluído do sujeito [própria à pulsão de morte], ou que nunca foi por ele absorvida, o Verdrängt, o recalcado, nós não podemos fazê-lo entrar no princípio do prazer [que agora se confunde com Eros] (...) Faz-se necessário supor um outro princípio. Por que Freud o chamou instinto de morte?”[21].

A questão se justifica pelo fato desta guinada parecer, a princípio, desproporcional em relação à dimensão do problema (conservar a potência disruptiva da sexualidade para além da força unificadora do Eu, força cuja extensão teria sido revelada, principalmente, pelo narcisismo). A não ser que, de fato, o problema pressentido por Freud fosse maior do que poderia parecer. Só assim poderíamos pressupor alguma espécie de unidade entre fenômenos aparentemente tão distintos quanto estes que Freud procura pensar a partir da noção de pulsão de morte, ou seja, a compulsão a repetir acontecimentos traumáticos, o fenômeno de resistência à cura e de vínculo à doença que a psicanálise chama de “reação terapêutica negativa”, a organização de um destino á libido enquanto energia livre e, por fim, o problema econômico dos fantasmas masoquistas que aparentemente desvinculam desejo e cálculo do prazer. 

Responder a questão do real problema que a derradeira teoria freudiana das pulsões tentava resolver exige, inicialmente, lembrar que a reconstrução da teoria pulsional através da dicotomia pulsão de vida/pulsão de morte foi solidária de uma aparente redefinição do próprio conceito de pulsão. Ela será agora uma: “pressão (Drang) inerente ao organismo vivo em direção ao restabelecimento de um estado anterior [inorgânico] abandonado devido a influências perturbadoras de forças exteriores”[22], e não apenas a representação psíquica de uma fonte endosomática de excitação constante. Da primeira à segunda definição, acrescenta-se um certo caráter teleológico que orienta a direção da pressão pulsional para as vias de uma operação de retorno. A pulsão aparece assim como expressão da inércia da vida orgânica, como exigência de trabalho em direção ao restabelecimento de um estado de supressão de tensão. Tendência esta, no entanto, que se manifesta principalmente através da figura da compulsão de repetição compreendida como movimento de retorno em direção à aniquilação de um indivíduo determinado como o que orienta sua conduta a partir da conservação de si graças ao cálculo do prazer, à simbolização de experiências traumáticas que bloqueiam disposições sintéticas da consciência e à efetivação de um princípio de individuação.

É neste contexto que a especulação freudiana flerta mais claramente com uma certa metafísica da morte, toda ela fundada, por sua vez, em uma verdadeira filosofia da natureza. Praticamente ausente na primeira teoria das pulsões, esta inflexão em direção à metafísica, em especial através de Schopenhauer (além de Platão, para a ilustração do poder unificador de Eros, e Empédocles), não deve ser vista simplesmente como alguma espécie de desvio de rota. De fato, vários princípios da psicofísica de Fechner que aparecerão posteriormente em Helmholtz, Mach e outros, base teórica importante para a formação da teoria freudiana das pulsões, não são estranhos à filosofia de Schopenhauer e à sua reflexão sobre a dinâmica das forças. Da mesma forma, tais princípios não são imunes a pressuposições metafísicas, o que fica bastante claro especialmente em Fechner. Tudo se passa pois como se Schopenhauer fornecesse, para Freud, uma espécie de inteligibilidade alargada do que, posteriormente, continuou se insinuando no interior da energética.

Neste sentido, vale a pena lembrar como as explicações gerais de comportamento humano e natural a partir da dinâmica de forças, pensada enquanto figura de uma metafísica da Vontade como ser em-si, é o que leva Schopenhauer a ver, na morte, um protocolo de “retorno ao ventre da natureza”[23]. Pois a morte do indivíduo apenas demonstraria a perenidade das forças e da matéria em contraposição à transitoriedade dos estados e formas: “Assim, já considerada como força natural, a força vital permanece por inteira imune à mudança de formas e estados que a série de causas e efeitos produz, e somente à qual estão submetidos o nascer e o perecer como se mostra na experiência”[24]. Podemos mesmo dizer que, neste contexto, a morte aparece como potência de suspensão da ligação das forças em representações capazes de produzir individualizações. Daí porque Schopenhauer opera com uma dicotomia entre a imortalidade da espécie enquanto “Idéia” e a destrutibilidade dos indivíduos que aparecerá, de forma reconfigurada, no próprio cerne da teoria pulsional freudiana; isto através das distinções entre soma e plasma vindas de Weismann.

            No entanto, há algumas diferenças fundamentais aqui. Schopenhauer insiste na morte como destruição do indivíduo apenas para lembrar que: “Pedir a imortalidade da individualidade significa propriamente querer perpetuar um erro ao infinito. Pois, no fundo, cada individualidade é apenas um erro especial, um passo em falso, algo que seria melhor não ser, sim, algo do qual nos trazer de volta é de fato a meta de toda vida”[25]. O que não poderia ser diferente já que a morte é pensada, ao mesmo tempo, como o que está inserido no telos do ciclo vital da renovação da natureza e como modo de acesso à inteligibilidade (acesso à inteligibilidade que não é exatamente conhecimento reflexivo) de uma dinâmica de forças não ligada e que passa livremente de uma forma a outra sem perpetuar nenhuma delas. A morte é o nome do processo que revela a natureza enquanto ciclo incessante de individuação e anulação da individuação de configurações de forças, como se estivéssemos diante de um ciclo de pulsação entre energia livre e energia ligada. Assim, longe de ser fenômeno desprovido de sentido, negação desprovida de conceito, a morte, para Schopenhauer, é o que, em última instância, garante a natureza como pólo positivo de doação de sentido por desvelar os mecanismos de orientação da força vital.

            De fato, este não é o caso em Freud. Tal como em Schopenhauer, a morte em Freud não é apenas destruição da integridade do organismo biológico, mas é também o que suspende o princípio de individuação e de unidade sintética em operação no Eu. Daí porque ela pode aparecer, no caso de Freud, como fonte da dinâmica pulsional responsável por processos como a repetição de acontecimentos traumáticos não-simbolizados e esta reação terapêutica negativa compreendida enquanto resistência aos processos de subjetivação em operação na clínica analítica. No entanto, não há nada em Freud semelhante à afirmação teleológica da vida enquanto ciclo incessante de destruição e reconfiguração resultante de alguma forma de princípio geral de conservação de energia. A noção de pulsão de morte, ao contrário, está mais próxima da absorção de um conceito energético como a entropia enquanto princípio do que aparece apenas como perda, princípio do que não se deixa configurar em um estado submetido a um protocolo de ordenação[26]. A morte é assim, para Freud, presença do que não se deixa absorver no interior de uma noção de natureza como pólo positivo de doação de sentido, presença do que não se deixa contar no interior de uma economia vitalista.

No entanto, Freud acaba por operar, no interior de sua teoria das pulsões, com um conceito muito peculiar de natureza. Pois a tendência em utilizar a teoria das pulsões para explicar princípios de conduta de organismos em geral (o que não deixa de ser uma certa “atualização” de princípios explicativos holísticos próprias à psicofísica do século XIX) deve ser vista como pressuposição de um conceito não-tematizado de natureza. Algo como uma natureza que não se deixa pensar a partir de figuras do ciclo vital ou de alguma forma de funcionalismo ordenador, mas que só se manifesta necessariamente como resistência à integração a todo e qualquer princípio de determinação positiva[27]. Fundar uma clínica, com  seus protocolos de cura, a partir de tal pressuposição a respeito da noção de natureza não é algo desprovido de dificuldades.

Isto talvez nos explique, entre outras coisas, a posição sintomática da pulsão de morte no interior da clínica freudiana. De fato, o lugar da pulsão de morte na clínica freudiana é complexo e difícil de ser equacionado. Lembremos apenas que, em um texto da fase final como Análise finita e análise infinita, Freud se pergunta se há limites para a ligação (Bändigung) das pulsões em representações – o que podemos entender como uma questão referente à possibilidade de dominar, principalmente, a compulsão de repetição própria à pulsão de morte. A resposta é programática: é a correção a posteriori do processo de recalcamento originário que pode colocar um fim à força efetiva do fator quantitativo da pulsão. Mas Freud é o primeiro a reconhecer a infinitude da força pulsional ao sublinhar o caráter inesgotável de seu domínio: “Pode-se duvidar que os dragões do tempo originário estejam verdadeiramente mortos até o último”[28]. Como se a simbolização analítica não pudesse dissolver esta forçagem repetitiva da pulsão de morte.

No entanto, a negatividade da pulsão de morte não será incorporada pela clínica freudiana como motor dos processos de cura. A compulsão de repetição aparecerá como limite à clínica e aos mecanismos de rememoração, verbalização e de simbolização reflexiva próprios aos modos freudianos de subjetivação. Freud só pode pensar a manifestação da negatividade da pulsão de morte no interior da clínica sob a forma da reação terapêutica negativa, da destruição do outro na transferência e de outras manifestações de fantasmas masoquistas ou sádicos que devem ser liquidados a fim de levar o sujeito ao final de análise. Ou seja, o programa freudiano de: “ligar (bändigen) a compulsão de repetição e de transformá-la em um motivo para rememorar (Motiv fürs Erinnern)”[29] graças a liquidação de uma repetição normalmente confundida com a transferência continuará válido até o final, mesmo se Freud encontra limites para a sua eficácia.

 

Lacan e a clínica da pulsão de morte

 

Dado este impasse, a saída mais usual da posteridade psicanalítica consistiu em abandonar tal amálgama feito por Freud ao introduzir o conceito de pulsão de morte. Normalmente, insistiu-se que a pulsão de morte se tratava de um fato social vinculado ao impulso de destruição em sociedades que socializam os sujeitos através de processos repressivos de culpabilização (Marcuse é um bom exemplo aqui) ou que estávamos simplesmente diante de um entulho metafísico desprovido de função clínica, até porque não haveria necessidade alguma da clínica apelar a forças abstratas postuladas na antecâmara dos  fenômenos que ela trata.

            Neste sentido, uma das grandes peculiaridades de Jacques Lacan consistiu em tentar reorientar a clínica analítica através da centralidade da pulsão de morte como perspectiva de inteligibilidade da clínica . De fato, o reconhecimento de tal centralidade será visto como o motor do progresso analítico e da direção do tratamento. Pois o verdadeiro problema clínico para Lacan não consistirá em limitar o impulso de destruição da pulsão de morte a fim de permitir à vida operar processo cada vez mais amplos de unificação. Ao contrário, trata-se de produzir inicialmente uma ruptura desta unidade almejada por Eros, unidade que, para Lacan, era fundamentalmente narcísica e imaginária pois vinculada à projeção e introjeção da imagem do Eu. Desta forma, Lacan teve o mérito de compreender a pulsão de morte para além da repetição compulsiva do instinto de destruição, o que abriu a possibilidade de estruturamos uma nova via de reflexão sobre as figuras do negativo na clínica.

            Neste esforço, Lacan procurou, inicialmente, tecer aproximações entre o poder disruptivo da pulsão de morte e um conceito de “negatividade” herdado das reflexões francesas sobre a Begierde hegeliana, primeiro modo de manifestação da individualidade da subjetividade, assim como dos vários momentos de confrontação com a experiência da morte que permeiam a Fenomenologia do Espírito. No entanto, empréstimos filosóficos sempre têm uma peculiaridade: eles devem ser os únicos nos quais aquele que pega emprestado sempre leva mais do que percebe. Assim, temos o direito de perguntar se Lacan não acabou por trazer, ao coração da teoria pulsional psicanalítica, um conceito de negação que, em Hegel, tem um estatuto claramente ontológico, já que, como veremos mais á frente, vinculado ao modo de manifestação do que se determina como essência. Tal conceito teria servido para dar conta do que já se manifestava quando Freud procurava “naturalizar” a pulsão de morte, transformando-a em conceito norteador da inteligibilidade da conduta de todo e qualquer vivente.

Antes de avançarmos neste ponto, lembremos como, de fato, o encaminhamento lacaniano a respeito da teoria psicanalítica das pulsões só é inteligível como desdobramento de suas reflexões iniciais a respeito do estatuto do desejo na clínica analítica. Podemos mesmo dizer que o problema do estatuto da pulsão ganha centralidade na experiência intelectual lacaniana a partir do momento em que ele se vê obrigado a rever certas questões deixadas em abertos por sua teoria do desejo.

A este respeito, sempre vale a pena lembrar que a característica principal do desejo, em Lacan, é ser desprovido de todo procedimento natural de objetificação. Ele é fundamentalmente sem objeto, desejo de "nada de nomeável"[30]. Aqui, escutamos o leitor atento de Kojève. O mesmo Kojève que tentava costurar o ser-para-a-morte heideggeriano à Begierde hegeliana a fim de afirmar que a verdade do desejo era ser “revelação de um vazio”[31], ou seja, pura negatividade que transcendia toda aderência natural e imaginária. Um estranho desejo incapaz de se satisfazer com objetos empíricos e arrancado de toda possibilidade imediata de realização fenomenal.

Esta pura transcendência negativa, vinculada à função intencional de um desejo que insiste para além de toda relação de objeto coloca-se como algo absolutamente incontornável para Lacan em seus primeiros escritos e seminários. A razão vem do fato de Lacan ter desenvolvido uma teoria da constituição dos objetos apoiada sobretudo em considerações sobre a centralidade do narcisismo. Trata-se do resultado do reconhecimento simultâneo do caráter constitutivo do Eu na ligação do diverso da intuição sensível em representações de objeto e da gênese empírica da função do Eu a partir de uma lógica de identificações narcísicas.

Desta forma, neste momento do pensamento lacaniano, tanto os objetos quanto os outros indivíduos empíricos são sempre projeções narcísicas do eu. Lacan chega a falar do caráter egomórfico dos objetos do mundo empírico. De onde se segue um narcisismo fundamental guiando todas as relações de objeto, assim como a necessidade de atravessar este regime narcísico de relação através de uma crítica ao primado do objeto na determinação do desejo.

O motivo da crítica ao primado do objeto aparecerá em Lacan principalmente através da crítica às relações reduzidas a dimensão do Imaginário, já que o Imaginário lacaniano designa, na sua maior parte, a esfera das relações que compõem a lógica do narcisismo com suas projeções e introjeções[32]. Grosso modo, podemos dizer que, para Lacan, o Imaginário é um gênero de esquema de categorização espaço-temporal que funcionaria através da subsunção do diverso da intuição sensível à imagem (neste sentido, Lacan está muito próximo da teoria da imagem e do esquematismo presente em Kant e o problema da metafísica, de Heidegger). Esta imagem, no entanto, unifica o diverso a partir de um princípio de ligação e de identidade derivado do próprio Eu como unidade sintética e auto-idêntica. Ela é, por sua vez, o verdadeiro nome do que está em jogo na representação, isto ao menos segundo Lacan. De onde se segue esta articulação lacaniana cerrada entre Imaginário, narcisismo e representação[33].

Aqui, faz-se necessário salientar um ponto importante: é desta forma que o objeto empírico aparece necessariamente como objeto submetido à engenharia do Imaginário. A possibilidade de fixação libidinal a  um objeto empírico não-narcísico ainda não é posta. Assim, a fim de livrar o sujeito da fascinação por objetos que são, no fundo,  produções narcísicas, restava à psicanálise “purificar o desejo” de todo e qualquer conteúdo empírico. Subjetivar o desejo no seu ponto brutal de esvaziamento. Pois a ligação do desejo em representações de objeto implica alienação de um ser pensado como transcendência. De onde se segue necessariamente a definição, em um indefectível acento sartriano, da negatividade do desejo como manque d’être  : “O desejo é uma relação do ser à falta. Esta falta é falta de ser (manque d’être) propriamente dita. Ela não é falta disto ou daquilo, mas falta de ser através da qual o ser existe”[34]. Levar o sujeito a reconhecer o ser como falta-a-ser (como Lacan adotará posteriormente a fim de se diferenciar de Sartre) seria a estratégia maior da prática analítica.

            Este é o esquema que anima as primeiras elaborações lacanianas a respeito da teoria pulsional. Já em seus primeiros seminários, Lacan tende a compreender a unidade produzida pela pulsão de vida como submissão do outro à lógica do narcisismo, definindo a ligação da energia psíquica como “captura pela forma, apreensão pelo jogo, absorção na miragem da vida”[35]. Pois há uma potência unificadora do Imaginário que consistiria em vincular o sujeito: a um outro que é essencialmente imagem do ego. Como se as unidades cada vez maiores das quais fala Freud fossem construídas através da ligação do diverso das representações e dos afetos à imagem do mesmo. A força desintegradora da pulsão de morte estaria, assim, desde o início, direcionada contra a coerência imaginária do Eu e suas relações imaginárias de objeto. Em vários momentos, esta força desintegradora da pulsão será apresentada como o que leva o sujeito para além de um prazer vinculado à submissão da energia libidinal a um princípio de homeostase garantido pela: “transferência de quantidade de Vorstellung em Vorstellung[36], ou seja, submissão da energia libidinal à forma da representações. Isto talvez nos explique porque a emergência do que é a da ordem da pulsão aparece constantemente em Lacan envolto na temática de um gozo que flerta com o informe; gozo para além do princípio do prazer que é, no fundo, gozo para além do princípio de submissão a representações. Um uso constante de motivos e exemplos vindos de Bataille se impõe, neste ponto, para Lacan.

            Bataille também coloca, como imperativo, um programa em larga medida próximo ao de Lacan: ‘Supressão do sujeito e do objeto”, dirá ele, “único meio de não terminar na possessão do objeto pelo sujeito, ou seja, de evitar a corrida absurda do ipse querendo transformar-se no todo”[37]. O motor de tal supressão aparece também a partir de uma certa temática vinculada à experiência da morte como saída do primado da antropologia: “Quem não ´morre´ por ser apenas um homem será sempre apenas um homem”[38]. No entanto, esta filiação possível entre Bataille e Lacan parece trazer vários problemas. Pois ela poderia indicar que, ao transformar a pulsão de morte em conceito central para o progresso analítico, Lacan estaria se deixando seduzir por uma espécie de implementação clínica de expectativas estetizantes de experiências limites pensadas através das temáticas da informidade e da heterologia.

            De fato, este risco esteve sempre presente, mas ele não dá conta do que estava realmente em jogo na experiência intelectual lacaniana. Neste sentido, lembremos como, inicialmente, a pulsão de morte serve a Lacan para organizar algumas distinções entre as dimensões do Imaginário e do Simbólico pensado em chave estruturalista, ou seja, como estrutura de significantes puros que organizam as diferenças linguístico-sociais. Por outro lado, Lacan nunca chegou ao ponto de defender alguma forma de supressão do sujeito, mas apenas de sua entificação na figura auto-idêntica do Eu.

            Reflitamos, por exemplo, sobre aquela que é, simplesmente, a primeira frase dos Escritos: “Nossa pesquisa nos levou a permitir reconhecer que o automatismo de repetição (Widerholungzwang) encontra seu princípio no que chamamos de insistência da cadeia significante”[39]. Ou seja, Lacan está dizendo que esta compulsão de repetição que não se encaixa em nenhuma lógica que vise explicar a conduta do aparelho psíquico apenas através da maximização de prazer e da fuga do desprazer é, na verdade, manifestação do modo de funcionamento da estrutura simbólica que determina os sujeitos. Algo muito distante do que Freud tinha em vista ao tentar tematizar a compulsão em repetir situações traumáticas e desprazeirosas própria a certos neuróticos ou a tentativa de dominar processos de perda a partir de uma repetição simbolizadora (como é o caso do famoso exemplo do fort-da).

O que Lacan quer, ao aproximar cadeia significante e automatismo de repetição é, por um lado, lembrar que a energia livre própria à força de des-ligamento da pulsão de morte produz os processos primários de condensação, deslocamento e figuração que fornecem a base da dinâmica dos significantes. Daí a possibilidade da aproximação. È assim que ele compreende o que Freud chama de caráter de rede (Netz) e fluzo (Flüssigkeit) da pulsão. Proposição que é tão ousada quanto frágil, já que a articulação da cadeia significante desconhece a disseminação própria do que se caracteriza como energia livre. Ao contrário, a cadeia significante tem um poder ordenador e articulador próprio a toda construção simbólica. Ou seja, seu trabalho é um trabalho de ligação estranho ao que é da ordem da pulsão de morte.

            Mas há ainda um outro aspecto da aproximação. Ao articular pulsão de morte e significante, Lacan parece indicar que  não há algo como a particularidade da pulsão e do impulso que se contraporia ao universo sócio-linguístico partilhado intersubjetivamente. Ao contrário, a pulsão já está, de uma certa forma, vinculada de maneira constitutiva ao que permite os sujeitos se socializarem através do acesso à linguagem (há um paralelo instrutivo, neste ponto, com o conceito hegeliano de Trieb). Em última instância, ela não é reprimida devido aos processos de socialização de sujeitos. Ela é a mola mesma do que leva os sujeitos a usarem a linguagem; à condição, é claro, de darmos realidade a um regime bastante peculiar de linguagem. Pois esta linguagem que Lacan tem em mente é absolutamente anti-realista por não ser compostas por signos, mas apenas por puros significantes, ou seja, por termos que não têm força denotativa alguma, que não denotam objeto algum. Uma anulação da faticidade da referência que é descrita por Lacan nos seguintes termos: “Os significantes só manifestam inicialmente a presença da diferença enquanto tal e nada mais. A primeira coisa que implicam é que a relação do signo à coisa seja apagada” [40].

            Desta forma, Lacan pode dizer "nós encontramos aí o esquema do símbolo como morte da coisa"[41]. Como se o impulso de negação próprio à pulsão de morte estivesse em operação, ou ainda, se satisfizesse sempre que o significante se mostrasse como anulação da coisa enquanto objeto reificado constituído pela lógica do Imaginário.  Pois, em sua essência, o significante não seria um dispositivo de denotação, mas apenas um dispositivo que marca a inadequação radical entre as palavras e as coisas, inadequação entre uma cadeia significante que se articula tal qual fluxo de energia livre e coisas pensadas como o que se submete à unidades imaginárias. Lacan procura pois encaixar sua compreensão da centralidade da pulsão de morte no interior de uma lógica da inadequação como saldo dos processos de socialização através de uma linguagem constituída por significantes. Por outro lado, ele vincula o significante não a um problema de denotação de objetos, mas de satisfação da pulsão. Como se os usos da linguagem estivessem todos subordinados a interesses práticos de satisfação.

            Como vemos, esta estratégia lacaniana era ambivalente e difícil de ser sustentada da forma como foi inicialmente construída. De um lado, a cadeia significante é solidária a um trabalho de ligação e de ordenação do mundo dos objetos estranho ao que é da ordem da pulsão de morte. Maneira lacaniana de insistir que a pulsão de morte não é puro impulso de destruição transgressora em direção à informidade ou a um gozo mortífero, mas é o que procura dar conta da inteligibidade de processos de socialização, ao menos, se pensarmos naquilo que os processos de socialização em operação em nossas sociedades teriam de não repressivo. De outro, a cadeia significante descreve exatamente o fluxo livre de energia que nega o que se deixa ligar sob a forma de objeto, sob a forma de representação.

No entanto, podemos dizer que esta contradição é criativa. É claro que Lacan procura um regime de formalização capaz de dar conta de uma relação do sujeito a uma pulsão que não se deixa pensar através de uma linguagem da representação, linguagem que, no interior da cartografia lacaniana, está submetida à lógica do Imaginário. Mas para que ele possa tematizar de forma adequada o que não se deixa formalizar a partir da representação, Lacan deve explicar como o sujeito pode estruturar relações com aquilo que não se articula a partir de princípios de ligação derivados do Eu como unidade sintética. O acento aqui vai para o imperativo de “estruturar relações” que não sejam tributárias de um retorno a alguma forma de intuição imediata..

 

Uma negação ontológica para a clínica

 

Mas, antes de avançarmos, vale a pena insistir que este problema presente em Lacan, problema que podemos dizer ser herança de um certo encaminhamento freudiano, já nos fornece uma explicação provisória para a noção de que a pulsão é um conceito ontológico. Pois ao vincular a pulsão de morte ao que se satisfaz através da potência negadora da linguagem, quando esta se libera de suas ilusões realistas, Lacan reordenado completamente a noção tradicional de simbolização como submissão à potência organizadora da representação; isto a fim de encontrar uma maneira mais adequada para tematizar os modos de relação com o que aparece, a um sujeito, como irredutibilidade da negatividade própria à pulsão de morte. Esta irredutibilidade tem um peso ontológico pois está assentada em uma noção de negação, nem sempre tematizada de maneira explícita por Lacan, como modo ontológico de acesso á essência.

O termo “ontologia” pode causar estranheza neste contexto. No entanto, antes de legitimar tal estranhamento, vale a pena perguntar se poderíamos pensar a ontologia não mais como o regime de discursividade positiva do ser enquanto ser. Regime que, ao ser posto, tende a normatizar os campos da praxis ao determinar a priori a configuração de suas possibilidades. Pois, ao problematizarmos a relação entre positividade e ontologia, talvez se abra à possibilidade de pensá-la, ao contrário, como o regime que suporta a realidade daquilo que bloqueia o esgotamento do ser em uma determinação positiva. Neste sentido, uma ontologia negativa, ou seja, um regime de pensar assentado sobre a realidade ontológica das experiências de negação, poderia ser o que estaria orientando as decisões clínicas lacanianas, assim como a direção que ele procura impor ao tratamento[42].

Talvez a dificuldade em aceitar tais colocações venha do fato do encaminhamento lacaniano a respeito do caráter ontológico de certos conceitos metapsicológicos não ter sido exatamente traçado em uma linha reta. Lembremos por exemplo, do que ele havia afirmado, no seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, dias antes de aceitar que tinha uma ontologia: “é exatamente de uma função ontológica que se trata nesta abertura (béance) através da qual acreditei dever introduzir a função do inconsciente. A abertura do inconsciente, nós poderíamos chamá-la de pré-ontológica. Insisti nesta característica, muito esquecida, da primeira emergência do inconsciente, que é de não se prestar à ontologia” já que o que é da ordem do inconsciente: “ não é nem o ser, nem o não-ser, mas o não-realizado”[43]. De fato, esta idéia de que o que é da ordem do inconsciente é pré-ontológico não deixa de nos levar diretamente a Merleau-Ponty com sua ontologia da carne. Mas vale a pena reconstruir o contexto de tal afirmação a fim de compreender o que está aí em jogo.

Na seção anterior deste seminário, Lacan havia discutido a noção de “causalidade inconsciente” com a ajuda das últimas páginas do Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa, de Kant. Lacan tinha em mente, sobretudo, a distinção kantiana entre fundamento lógico e fundamento real. A respeito do fundamento lógico, Kant, em 1763, dirá: dado um fundamento, podemos derivar uma conseqüência lógica a partir da obediência da regra de identidade. Assim: “o homem é falível, o fundamento desta falibilidade reside na finitude de sua natureza pois quando decomponho o conceito de um espírito finito vejo que a falibilidade reside nele, isto é, coincide com o que está  contido no conceito de um espírito”[44]. Mas, no fundamento real, algo segue de outro algo sem obedecer à regra de identidade como, por exemplo, quando digo que as fases da lua são as causas das marés. Kant dirá que, para dar conta do fundamento real, há apenas: “conceitos simples e indecomponíveis de fundamentos reais, cuja relação com a conseqüência não pode absolutamente fazer-se distinta”[45]. Lacan insiste que esta noção de um conceito indecomponível que visa formalizar a relação causal entre um fundamento real e sua conseqüência é adequada para determinar a especificidade da causalidade que opera no inconsciente. Uma causalidade que estabeleceria relações de necessidade entre termos descontínuos. É a esta descontinuidade que Lacan chama “béance”. No entanto, tal béance em nada invalida uma noção de ontologia que não opera mais através da posição da noção de substância e identidade, mas através exatamente através da recusa da realidade essencial de tais conceitos. De fato, haveria muito ainda a ser discutido a este respeito. Estas indicações servem, no entanto, para mostrar que o debate não é facilmente esgotável.

De qualquer forma, isto não afasta um outro problema. Pois poderíamos pensar estarmos aí diante de uma espécie perigosa de teologia negativa disfarçada em considerações clínicas, ainda mais com os motivos lacanianos insistentemente repetidos a propósito do objeto perdido, da assunção incontornável da falta, do gozo impossível, do lugar vazio do sujeito que nunca se corporifica totalmente; motivos que nos levariam, no máximo, a uma ética da “resignação infinita”, como gostava de falar Deleuze a respeito dos lacanianos[46]. Ou ainda a uma “idealização religiosa da impossibilidade”[47], como fala Judith Butler a respeito da relação lacaniana entre gozo e Lei.

É claro que poderíamos pensar tudo isto mas estaríamos equivocados. Nos estaríamos equivocados por não compreendermos o que Lacan procura ao transformar a confrontação com a pulsão de morte em eixo central do progresso analítico.  

Esta estratégia da reconfiguração da pulsão de morte na clínica só ficará mais clara se levarmos em consideração o problema do estatuto das negações na práxis lacaniana. Lembremos, por exemplo, que os modos de relação do sujeito à pulsão propostos por Lacan não passam por aquilo que Freud definia como ligação da pulsão em representações de objeto, mesmo que Lacan insista na necessidade de pensarmos o que pode ser o “objeto” da pulsão (embora a própria noção de objeto, neste contexto, perca seu caráter do que se constitui a partir de princípios de ligação fornecidos pelo Eu como unidade sintética).

Esta questão nos leva a uma outra, vinculada diretamente à direção do tratamento. Lacan insiste a todo momento que as subjetivações na clínica não podem organizar-se a partir da perspectiva de alargamento do horizonte reflexivo de compreensão da consciência ou de reconstituição das capacidades sintéticas do eu. Ou seja, as subjetivações na clínica não podem passar pelos imperativos de ligação em representações que suportam a tríade rememoração, verbalização e simbolização que guiam a clínica freudiana. No entanto, a limitação dos processos reflexivos não pode significar impossibilidade completa de auto-posição do sujeito ou mesmo bloqueio insuperável das capacidades subjetivas de síntese da experiência; isto por mais que lacanianos insistam no final de análise como advento da irreflexividade de um gozo mudo, monológico, ou ainda, como advento de uma destituição subjetiva que resultaria no abandono de toda forma de aspiração sintética do pensamento.

Uma via possível para a compreensão do que Lacan tem em mente passa pela teoria lacaniana das negações. Pois Lacan sabe que a especificidade de seus modos de subjetivação se funda no reconhecimento do caráter eminentemente negativo dos “objetos” aos quais a pulsão se vincula e nos quais o sujeito deve se reconhecer. Isto demonstra como a clínica lacaniana demanda um modo de negação que não é simples indicação de um não-ser, de uma privação (nihil privativum), do vazio como o puro ausente de determinações, de uma denegação ou modo de expulsão para fora de si do que vai contra o princípio do prazer. Ela precisa de um modo de negação que é modo de presença do que resta fora da simbolização reflexiva com seus protocolos de identificação, sem que isto implique necessariamente em alguma forma de retorno ao inefável. Como veremos, é bem possível que esta foi a verdadeira contribuição das importações lacanianas massivas em relação à filosofia hegeliana. Pois, para Lacan, que sempre vinculou a cura analítica às possibilidades de auto-objetivação do sujeito para além de sua objetificação no Imaginário, só há cura lá onde o sujeito se reconhece em uma negação pensada como modo de presença do que se oferece como determinação essencial de objetos não mais constituídos como imagens narcísicas do Eu. Há algo de profundamente hegeliano nesta estratégia. No caso lacaniano, este ponto talvez fique mais claro se mostrarmos que há uma negação que pode revelar a estrutura dos objetos capazes de satisfazer a pulsão, e não apenas aparecer como modo de destruição de objetos.

 

Angústia como modo de manifestação do objeto

 

            Há várias formas de abordarmos o problema da reflexão lacaniana sobre a negatividade constitutiva do objeto da pulsão. Noção aparentemente paradoxal, já que, a primeira vista, não é evidente dizer que há modos de negação que revelam a estrutura de objetos de satisfação. Mas podemos abordar tal questão através da maneira lacaniana de configurar o sentido de um fenômeno, central para a clínica analítica, como a angústia. Maneira em larga medida distinta daquela que encontramos em Freud.

            De fato, Freud apresenta uma articulação importante entre angústia e vida pulsional, já que a angústia neurótica aparece claramente vinculada à emergência de reivindicações pulsionais. Tal articulação será preservada por Lacan.

            Já em 1895, ao criar a nosografia de “neurose de angústia”, Freud identifica sua causa no impedimento em elaborar psiquicamente (ou seja, em ligar) a acumulação de excitação endógena de ordem sexual[48]. Mais tarde, algo desta perspectiva continuará através da afirmação de que, na angústia neurótica, tem-se medo da própria libido já que a reivindicação pulsional é vivenciada como perigo interno. Este esquema servirá de base para a definição da angústia como afeto vinculado á posição de um quantum de energia libidinal inutilizável, ou seja, não ligado em representações de objetos. Isto é o que permite Freud vincular a angústia ao perigo derivado da perda de vínculo entre a pulsão e tudo aquilo que aparece como objeto determinado, uma relação de sustentação da pulsão lá onde o objeto falta e que faz o sujeito confrontar-se com o que Freud chama de “desamparo”.

            Tal manifestação de uma energia libidinal livre é o que está no cerne da definição canônica que vincula a angústia a um fator traumático que não pode ser liquidado segundo as normas do princípio do prazer. Até porque: “é apenas a grandeza da soma de excitação (Grösse der Erregungssumme) que faz, de uma impressão, um fator traumático que paralisa a ação do princípio de prazer e que dá à situação de perigo seu sentido”[49].

            Lacan começa seguindo esta via freudiana que vincula a angústia a situações de perda do objeto e de aumento de uma energia libidinal não ligada. Assim, ele afirmará: “Quando, por razões de resistência, de defesa e de outros mecanismos de anulação do objeto, o objeto desaparece, continua aquilo que pode restar, ou seja, a Erwartung, a direção ao seu lugar, lugar no qual ele está ausente, no qual ele não pode ser mais do que um umbestimmte Objekt, ou ainda, segundo Freud, do que um objeto com o qual sustentamos uma relação de Löslichkeit. Quando nos encontramos neste ponto, a angústia é o último modo, modo radical através do qual o sujeito continua sustentando sua relação ao desejo”[50].

            Mas o momento realmente original da elaboração lacaniana sobre a angústia ocorrerá mais à frente. Ele está ligado à procura lacaniana em vincular-se a uma longa tradição filosófica que encontramos claramente, por exemplo, em Hegel, e que determina as experiências de angústia como dispositivo fundamental de processos de formação subjetiva. Pois a angústia indica o momento de confrontação do sujeito com aquilo que não se articula a partir de princípios de ligação derivados do Eu como unidade sintética. Neste sentido, ela é peça central para o progresso analítico por livrar o sujeito das ilusões narcísicas do Eu, da mesma forma como é central, na perspectiva lacaniana, a experiência da pulsão de morte.

            No caso de Lacan,  tal dimensão formadora da angústia (que não exclui, é claro, uma dimensão bloqueadora da angústia) é tematizada quando o psicanalista insistir, contrariamente tanto a suas próprias elaborações anteriores quanto a Freud, que a “angústia não é sem objeto”. Na verdade, a angústia será modo de manifestação de objetos não mais submetidos às estruturas de categorização espaço-temporal próprias ao Imaginário. Daí porque ele insistirá, durante todo seu Seminário dedicado à angústia, na necessidade de reconstituir a estética transcendental que convém à experiência analítica, já que: “há momentos de aparição do objeto que nos jogam em uma outra dimensão daquela que nos é dada na experiência. Trata-se da dimensão do estranho. Tal dimensão não poderia, de forma alguma, ser apreendida como deixando diante dela o sujeito transparente à seu próprio conhecimento. Diante deste novo, o sujeito literalmente vacila e tudo o que diz respeito à relação primordial do sujeito aos efeitos de conhecimento é posto em questão”[51].

            Esta dimensão do estranho, a respeito da qual fala Lacan, é aquilo que Freud tematizou através da noção de Unheimlichkeit[52]. De fato, Freud tinha em mente fenômenos angustiantes nos quais situações e objetos familiares apareciam, de maneira inesperada, fora de seus protocolos naturais de identidade e identificação. Por exemplo, se a imagem de si no espelho aparece, de repente, não mais como imagem de si, mas como imagem de algo que parece ter uma certa autonomia em relação ao si mesmo, como se fosse a imagem de um duplo, então estaríamos diante de um fenômeno de Unheimlichkeit. Normalmente, situações nas quais a distinção entre sujeito e objeto é posta em questão, como se houvesse algo da ordem de um sujeito agente lá onde esperávamos encontrar apenas um objeto inerte (ou vice-versa) também produzirão Unheimlichkeit.

Lacan tende a transformar tais fenômenos em chave para a determinação do papel formador da angústia. Pois ele os compreende como modos de aparição de objetos que não se submetem mais a protocolos naturalizados de identidade, diferença e oposição, e que, por isto, embaralham as distinções seguras entre sujeito e objeto, si mesmo e outro, identidade e diferença. Assim, ao afirmar que tais aparições fazem vacilar a relação do sujeito às estruturas do conhecimento, Lacan procura mostrar como a aparição de objetos que colocam em questão princípios gerais do entendimento, tais como os princípios de identidade e de diferenciação, levam o sujeito a uma fragilização das imagens ordenadas do mundo e de si mesmo. Mas tais objetos podem colocar em questão princípios gerais do entendimento porque se tratam de objetos que trazem em si mesmos a negação de sua submissão à identidade.

Este é um ponto central. Quando Lacan determina tais objetos como aquilo que satisfaz a pulsão (de morte), satisfação estranhamente marcada pela angústia, é porque a negatividade da pulsão de morte pode se satisfazer com o gozo de um objeto que traz em si mesmo sua própria negação, que é a destruição de si, torção de seus protocolos de identidade (protocolos que, para Lacan, são fundamentalmente vinculados à ordem do Imaginário).

No entanto, é fato que falar de um objeto que traz em si sua própria negação parece simplesmente uma maneira mais nebulosa de dizer que estamos diante de um “objeto vazio desprovido de conceito” (nihil negativum)[53], ou seja, nada mais do que um objeto  contraditório. Sendo assim, a elaboração lacaniana a respeito da centralidade da pulsão de morte como dispositivo de direção do tratamento é dependente de uma noção de objeto que não reduza a figura da auto-negação da identidade ao estatuto de um objeto vazio desprovido de conceito. Noção que determina a essencialidade do objeto como o que é marcado por uma negatividade cuja aparição é sempre fonte de angústia por implicar na fragilização das imagens ordenadas do mundo e de si. Questão profundamente hegeliana, nos parece.

 

A gramática hegeliana da negação lacaniana: da metafísica da morte à fenomenologia da morte?

 

            Vimos como a clínica lacaniana, ao privilegiar o conceito de pulsão de morte, exigia uma teoria específica das negações. Vemos agora que tal teoria pede uma figura da negação capaz de determinar objetos que não se adequam à positividade da imagem ou da formalização a partir de representações. Tal negação tem, aqui, um valor ontológico por ser modo de manifestação do que se determina como essência.

De fato, a noção de uma negação como modo ontológico de presença do que há de essencial em objetos da experiência pode ser encontrada na tradição dialética, em especial, na Doutrina da essência hegeliana. Basta lembrarmos que, para Hegel, o negativo não é falta de determinação ou um positivo em si que aparece como negativo apenas no interior de uma relação opositiva. Ao contrário, o esforço maior de Hegel consistiu em pensar um negativo em si, para além de sua oposição ao positivo. Restituição da dimensão ontológica ao negativo, através da negatividade de uma essência que deve tomar a forma do objeto e ainda assim conservar seu caráter negativo, que talvez nos indique a verdadeira esfera da influência de Hegel em Lacan.

Conhecemos alguns capítulos da relação conflituosa entre Lacan e Hegel. Relação feita de desencontros e incompreensões, como só poderia ser prenhe de desencontros e incompreensões uma relação com um “Hegel errado, mas vivo”, para usar uma fórmula feliz de Paulo Arantes. No entanto, para além dela, devemos estar atento à gramática hegeliana da negação lacaniana, o que não implica necessariamente em alinhamento incondicional às conseqüências do sistema hegeliano. Neste sentido, poderíamos dizer que alguns dos pontos centrais do projeto de Lacan consistiriam em: a) transformar a teoria das pulsões em teoria da pulsão, b) transformar a negação própria à pulsão de morte em negação ontológica, negação como modo de manifestação da essência, c) mostrar como esta negação pode determinar objetos cuja manifestação se dá sob o afeto da angústia. Estes objetos determinados por negações colocam-se como objetos descentrados por trazerem em si mesmos a negação de sua submissão à identidade.

De fato, haveria várias formas de abordar uma possível partilha entre Lacan e Hegel no que diz respeito a um conceito de negação próximo àquele presente na pulsão de morte lacaniana. Uma discussão detalhada da noção hegeliana de “negação em si” e de sua função como peça de polêmica contra o conceito kantiano de oposição real, conceito que nos leva a ver como objeto vazio sem conceito algo que seja negativo em si, seria talvez o melhor caminho para darmos conta da aproximação das teorias da negação em Lacan e Hegel. No entanto, esta discussão nos levaria a um outro largo desenvolvimento que não cabe nos limites deste artigo[54].

Mas poderíamos lembrar aqui desta figura fenomenológica central da negação em Hegel, ou seja, a morte. Primeiro, quando Hegel fala em “morte” ele pensa na manifestação fenomenológica própria à indeterminação fenomenal do que nunca é apenas um simples ente. Ou seja, a morte indica uma experiência do que não se submete aos contornos auto-idênticos do pensar representativo, a morte como aquilo que não se submete à determinação do Eu. Para Hegel, há uma experiência de confrontação com o indeterminado, com um ponto no qual o pensar do puro Eu não consegue projetar sua própria imagem, que equivale à morte. Uma morte que não é destruição simples da consciência, não é um simples despedaçar-se (zugrunde gehen), mas é modo de ir ao fundamento (zu Grund gehen). Movimento de ir ao fundamento desprovido de conteúdo que, tal como na pulsão de morte lacaniana, impulsiona a determinação de objetos nos quais a consciência reconhece a sua própria negatividade. Daí porque Hegel dirá, na Ciência da lógica: “A essência, enquanto se determina como fundamento, determina-se como o não-determinado (Nichtbestimmte) e é apenas a superação (Aufheben) de seu ser determinado (Bestimmtseins) que é seu determinar”[55]. A respeito desta articulação entre negatividade da morte e experiência do fundamento, lembremos de um momento central da Fenomenologia do Espírito e a respeito do qual Lacan era extremamente sensível, momento em que, no interior da dialética do Senhor e do Escravo, a consciência tem a experiência da angústia:

 

Essa consciência sentiu a angústia, não por isto ou aquilo, não por este ou aquele instante, mas sim através de sua essência toda, pois sentiu o medo da morte, do senhor absoluto. Aí se dissolveu interiormente, em si mesma tremeu em sua totalidade e tudo o que havia de fixo, nela vacilou. Entretanto, esse movimento universal puro, o fluidificar-se absoluto de todo subsistir é a essência simples da consciência-de-si, a negatividade absoluta, o puro ser-para-si que assim é nessa consciência[56].

 

            Este trecho talvez desvele seu real foco se lembrarmos que, para Hegel, a essência não é uma substância auto-idêntica que determina as possibilidades dos modos de ser. A essência é a realização de um movimento de reflexão. Neste sentido, contrariamente ao ser que procurava sua fundamentação em determinações fixas, a essência se põe como determinação reflexiva e relacional. Em outras palavras, a essência é a unificação deste movimento reflexivo de pôr seu ser em um outro, cindir-se e retornar a si desta posição. Daí porque Hegel pode afirmar que, quando o ser encontra-se determinado como essência, ele aparece como: “um ser que em si está negado todo determinado e todo finito”[57], ou ainda, como “ser que pela negatividade de si mesmo se mediatiza consigo”[58]. Neste sentido, Hegel insiste que a internalização da negação de si própria à configuração da essência deve se manifestar inicialmente como negatividade absoluta diante da permanência de toda determinidade. 

É neste sentido que a angústia deve ser compreendida como a manifestação fenomenológica inicial desta essência que só pode se pôr através do “fluidificar absoluto de todo subsistir”, ou seja, do negar a essencialidade de toda determinidade aferrada em identidades opositivas. Manifestação inicial, daí porque Hegel fala de “essência simples”, mas manifestação absolutamente necessária. A angústia pode aqui ter esta função porque não se trata de um tremor por isto ou aquilo, por este ou aquele instante, mas se trata aqui de uma fragilização completa de seus vínculos ao mundo e à  imagem de si mesmo. É esta fragilização que traduz de maneira mais perfeita o que está em jogo neste “medo diante da morte, do senhor absoluto”. O termo “angústia” tem aqui um uso feliz porque ele indica exatamente esta posição existencial na qual o sujeito parece perder todo vínculo do desejo em relação a um objeto, como se estivéssemos diante de um desejo não mais desprovido de forma. No entanto,  se a consciência for capaz de compreender a angústia que ela sentiu ao ver a fragilização de seu mundo e de sua linguagem  como primeira manifestação do espírito, deste espírito que só se manifesta destruindo toda determinidade fixa, então a consciência poderá compreender que este “caminho do desespero” é, no fundo, internalização do negativo como determinação essencial da essência. Daí porque: “o temor do senhor é o início [mas apenas o início] da sabedoria”[59]. Uma sabedoria descrita por Hegel nos seguintes termos:

 

A morte – se assim quisermos chamar esta inefetividade é a coisa mais terrível; e suster o que está morto requer a força máxima. A beleza sem-força detesta o entendimento porque lhe cobra o que não tem condições de cumprir. Porém, a vida do espírito não é a que se atemoriza ante a morte e se conserva intacta da devastação, mas é a vida que suporta a morte e nela se conserva. O espírito só alcança sua verdade à medida que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto. Ele não é essa potência como o positivo que se afasta do negativo – como ao dizer de alguma coisa que é nula ou falsa, liquidamos com ela e passamos a outro assunto. Ao contrário, o espírito só é essa potência enquanto encara diretamente o negativo e se demora junto dele. Ele demorar-se é o poder mágico que converte o negativo em ser[60].

 

            Ao falar que a vida do espírito é aquela vida que suporta a morte e nela se conserva, Hegel quer dizer que o espírito é capaz de internalizar e conservar a negação do que não se submete ao mundo organizado pela representação e fundamentado pela forma auto-idêntica do Eu. Internalizar, aqui, não é outra coisa do que rememorar. O que o espírito procura sempre esquecer não é apenas seu processo histórico de formação, mas aquilo que o move, ou seja, a negação como força de fragilização das imagens de mundo e dos sistemas substancialmente enraizados de práticas sociais de ação e justificação. Rememorar é assim não apenas internalizar o negativo, mas transformá-lo em ser, dotá-lo de determinação objetiva. Mas rememorar esta negação que aparece aqui como morte só é possível se o pensar abandonar o primado da representação com seus protocolos fixos de identidade e diferença e com sua recusa da realidade ontológica da negação.

Assim, se a morte nunca aparece na Fenomenologia do Espírito como negação abstrata da consciência, se, ao contrário, ela é sempre este ponto de despossessão fundamental para que o sujeito tenha a experiência de uma alteridade interna ao si mesmo, é porque há um nível da negação que é sempre modo de pôr a não-identidade e reconfigurar o campo de determinações objetivas. Lembremos, por exemplo, como Dubarle notou claramente que o termo que teria valor de termo nulo está ausente da doutrina hegeliana do Conceito[61]. Isto acontece porque, em Hegel, o termo negado nunca alcança o valor zero, já que esta função do zero será criticada por Hegel como sendo um “nada abstrato” (abstrakte Nichts). Neste sentido, o interesse hegeliano pelo cálculo infinitesimal estaria ligado à maneira com que Hegel estrutura sua compreensão da negação como um impulso ao limite da determinidade. A negação hegeliana nunca alcança o valor zero porque ela leva o nada ao limite do surgir (Entstehen)  e o ser ao limite do desaparecer (Vergehen). Na verdade, ela é a exposição deste movimento no qual o ser está desaparecendo (ou em fading, se quiséssemos falar com Lacan) e onde o nada esta manifestando-se em uma determinidade. Movimento cuja exposição exige uma outra compreensão do que é um objeto, para além da idéia do objeto como pólo fixo de identidade. E é para este ponto que Lacan, com suas reflexões sobre a pulsão, parece também querer nos levar.

 



[1] LACAN, Jacques, Séminaire XI, Paris Seuil, 1973, p. 69.

[2] A afirmação canônica de Michel Foucault a respeito das ilusões da « soberania da clínica » vale para este contexto de discussões : « Desde o século XVIII, a medicina tem tendência a narrar aua própria história como se o leito dos doentes tivesse sido sempre um lugar de experiências constante e estável, em oposição às teorias e sistemas que teriam estado em permanente mudança e mascarado, sob sua especulação, a pureza da evidência clínica ». Na verdade, tudo se passa como se : « Na aurora da Humanidade, antes de toda crença vâ, antes de todo sistema, a medicina residia em uma relação imediata do sofrimento com aquilo que alivia » (FOUCAULT, O nascimento da clínica, pp. 59-60)

[3] LACAN, S VII, p. 152.

[4] LACAN, S XX, p. 55

[5] FREUD, GW, p. 143-144

[6] LACAN, S II, p. 80

[7] FREUD, G XIII, p. 231

[8] FREUD,  G X, p. 216 (trad bras, p. 149)

[9] CANGUILHEM, Etudes d´histoire et de philosophie de la science, p. 370

[10] FECHNER, Elements of psychophysics, p. 9. Lembremos ainda como a noção de energia cinética (Lebendige Kraft) de Fechner foi importante para a constituição do conceito freudiano de pulsão em sua tentativa de suspender o dualismo entre somático e psíquico. E tendo em vista tal suspensão que Fechner afirma : « Energia cinética empregada para cortar madeira e energia cinética usada no pensamento não são apenas quantitativamente comparáveis, mas cada uma pode ser transformada na outra e, consequentemente, ambos os tipos de trabalho são mensuráveis , em seu aspecto físico, por uma referência comum » (idem, p. 36)

[11] Neste sentido, lembremos do que diz Canguilhem : « Se acrecentarmos que Descartes, mesmo não sendo exatamente o inventor do termo e do conceito de reflexo, ao menos afirmou a constância da ligação entre excitação e reação, vemos que uma psicologia entendida como física matemática do sentido externo começa com ele para chegar a Fechner, graças ao socorro de fisiologistas como Hermann Helmholtz » (idem, p. 370)

[12] FREUD, G X, p. 280

[13] Sobre o uso do termo « destino » neste contexto, lembremos que : « Ele indica que o que está em jogo em um ser humano no que diz respeito a suas pulsões é propriamente humano e produto de seres singulares, isto ao mesmo tempo que uma pulsão, devido ao fato de seus componentes escaparem ao sujeito que é dela o teatro, aparece como anônima, despersonalizada, a-subjetiva » (DAVID-MÉNARD, Les pulsions caractérisés par leurs destins : Freud s´éloigne-t-il du concept philosophique de Trieb ?, p. 207)

[14] Lembremos como o auto-erotismo indica uma posição anterior ao narcisismo. Neste sentido, ela serve para indicar a polimorfia de uma libido que se direciona ao prazer de órgãos que ainda não se submetem a um princípio geral de unificação fornecido pelo Eu enquanto unidade sintética.

[15] FREUD, G X, p. 275-276

[16] FREUD, G X, p. 215 (trad. Bras. p. 149)

[17] LACAN, E, p.  848

[18] FREUD, G XIII, p. 233

[19] Como dirá Laplanche : « Eros é o que procura manter, preservar e mesmo aumentar a coesão e a tendência sintética tanto do ser vivo quanto da vida psíquica. Enquanto que, desde as origens da psicanálise, a sexualidade era, por essência, hostil à ligação, princípio de ‘des-ligamento’ ou de desencadeamento (Entbildung) que só se ligava através da intervenção do Eu, o que aparece com Eros é a forma ligada e ligadora da sexualidade, colocada em evidência pela descoberta do narcisismo » (LAPLANCHE, Vie et mort en psychanalyse, p. 187). Isto nos explica porque, em Freud : « O Eu aparece como uma estrutura inibidora e defensiva que funciona (...) para estabelecer uma economia restrita de impulsos e de suas descargas » (BOOTHBY, Freud as pholosopher, p. 285)

[20] O que nos leva a concordar com a idéia de Boothby, para quem : « A idéia mais crucial de Freud, raramente posta de maneira explícita exatamente por ser tão fundamental para toda a concepção freudiana, é a assunção da disjunção inevitável e irremediável entre o nível das excitações somáticas e de suas representações psíquicas. Sempre há um resto, algo que é irremediavelmente deixado, uma porção de energia corporalque não recebe registro adequado na bateria dos Triebrepräsentanzen » (BOOTHBY, idem pp. 286-287)

[21] LACAN, S II, p. 163

[22] FREUD, GW XIII, p. 38

[23] SCHOPENHAUER, Metafísica do amor, metafísica da morte, p. 71

[24] idem, p. 74

[25] idem, p. 110

[26] Neste sentido, vale a afirmação de Assoun, para quem o conceito freudiano de energia : « marca uma ´passagem´ entre dois estados que traduz uma  despesa mecânica, ela mesma expressão particular (moção) do aumento geral de desordem formulado pelo segundo princípio da termodinâmica (Cornot-Clausius). O que, desde este momento, poderia ser expresso dizendo que : ´toda pulsão, enquanto pulsão, é pulsão de morte » (ASSOUN, Introduction à l´épistémologie freudienne, pp. 182-183).

[27] Quem compreendeu claramente esta defnição eminentemente negativa de natureza presente nas elaborações freudianas foi Theodor  Adorno. Lembremos aqui, apenas para ficar em um exemplo, desta definição adorniana de mimetismo (operador central de reconciliação entre sujeito e natureza). Ele seria uma : « tendência a perder-se no meio ambiente (Unwelt) ao invés de desempenhar aí um papel ativo, da propensão a se deixar levar, a regredir à natureza. Freud denominou-a pulsão de morte (Todestrieb), Caillois le  mimetisme » (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 212). Se a pulsão de morte indica, para Adorno, as coordenadas da reconciliação com a natureza, então devemos admitir várias conseqüências. Pois a pulsão de morte freudiana expõe a economia libidinal que leva o sujeito a vincular-se à uma natureza compreendida como espaço do inorgânico, figura maior da opacidade material aos processos de reflexão. Esta “tendência a perder-se no meio ambiente” da qual fala Adorno pensando na pulsão de morte é o resultado do reconhecimento de si no que é desprovido de inscrição simbólica. (ver SAFATLE, Espelhos sem imagens : mimesis e reconhecimento em Lacan e Adorno, Trans/form/ação)

[28] FREUD, G , p. 73

[29] FREUD, G X, p. 134

[30] LACAN, S II, p. 261

[31] KOJÈVE, Introduction à la lecture de Hegel, p. 12

[32] "Nós consideramos o narcisismo como a relação imaginária central para a relação interhumana " (LACAN, S III, p. 107)

[33] Para uma descrição mais detalhada desta função do Imaginário, tomo a liberdade de remeter a SAFATLE, A paixão do negativo : Lacan e a dialética, Unesp, 2006.

[34] LACAN, 1978, p. 261

[35] LACAN, 1978, p. 110

[36] LACAN, S VII, p. 72

[37] BATAILLE, L´expérience intérieur, p. 67

[38] idem, p. 47

[39] LACAN, E, p. 11

[40] LACAN, S X, sessão do 06/12/61.

[41] LACAN, S IV, p. 377.

[42] Alain Badiou nos mostra uma via frutífera para pensarmos uma negação ontológica em Lacan quando afirma que há, na psicanálise lacaniana, um acesso à ontologia, já que: “o inconsciente é este ser que subverte a oposição metafísica do ser e do não-ser” (BADIOU, Théorie du sujet, Paris: Seuil, 1982, p. 152). O inconsciente da pulsão, o isso, é este ser que só é pensável em uma ontologia fundada no negativo e é isto que Lacan tem em mente ao dizer que o inconsciente “traz ao ser um ente apenas do seu não-advento” (LACAN, S XI, p. 117)

[43] LACAN, S XI, pp. 31-32)

[44] KANT, Ensaio..., p. 97

[45] KANT, idem, p. 62

[46] DELEUZE, Dialogues

[47] BUTLER, Gender trouble

[48] Cf. FREUD, Sobre a justificativa de separar um certo complexo sintomático sob o nome de « neurose de angústia »

[49] FREUD, GW  XV, p. 100

[50] LACAN, S VIII, p. 429

[51] LACAN, S X, pp. 73-74

[52] Cf. FREUD, Das Unheimliche, G XII

[53] Cf. KANT, Crítica da razão pura, A292/B348

[54] Neste ponto, tomo a liberdade de remeter a SAFATLE, Linguagem e negação em Hegel in Dois Pontos

[55] HEGEL, Wissenschaft der Logik II, p. 81

[56] HEGEL, Fenomenologia, par. 194

[57] HEGEL, Ciência da lógica – doutrina da essência

[58] HEGEL, Enciclopédia, par. 112

[59] HEGEL, Fenomenologia, par. 195

[60] HEGEL, Fenomenologia I, p. 38

[61] DUBARLE et DOZ, Logique et dialectique, Paris: Larousse:, 1972, pp.134-145