Sobre um riso que não reconcilia:

Ironia e certos modos de funcionamento da ideologia

 

Ao Paulo,

 

O que há de diabólico no riso que soa falso

é que ele parodia aquilo que há de melhor:

a reconciliação.

Adorno

 

Na aurora da pós-modernidade e em meio a uma polêmica a respeito da filosofia adorniana da música, Jean-François Lyotard afirmava : “Nós temos, em relação a Adorno, a vantagem de viver em um kapitalismo mais energético, mais cínico, menos trágico. Ele coloca tudo em representação, a representação se reduplica (como em Brecht), logo, se apresenta. O trágico dá lugar ao paródico (...)”[1]. Sem entrar diretamente na questão a respeito da pretensa obsolescência do pensamento adorniano devido a este novo diagnóstico histórico, digamos que esta afirmação de Lyotard tinha ao menos o mérito de apresentar uma mutação maior nas práticas de poder e nos seus processos de legitimação que já se fazia sentir desde então. Ela estava figurada nesta estranha passagem de um capitalismo “trágico” para um capitalismo “cínico”. Passagem que nos leva a perguntar o que estes dois termos poderiam querer dizer neste contexto.

Uma resposta programática seria: ao invés da tragédia de um sistema sócio-econômico que a todo o momento funcionava através do ocultamento do caráter fetichista de seus processos de determinação de valor em todas as esferas da vida social, tragédia de um sistema que não pode assumir aquilo que ele realmente é ao fundar-se no recalcamento ideológico de seus pressupostos, teríamos o cinismo de práticas de poder capazes de: “revelar o segredo de seu funcionamento e continuar a funcionar como tal”[2]. Práticas de poder capazes de reduplicar seu próprio sistema de representações, tomando a todo momento uma distância brechtiana em relação àquilo que elas próprias enunciam, tal como em uma eterna paródia. Lyotard era ainda mais claro a este respeito quando afirmava: “Ao mesmo tempo em que o Kapital mantém, na vida e na arte, a lei do valor como separação, poupança, corte, seleção, proteção, privatização –ele mina, ao mesmo tempo e por todos os lados, o valor da lei, ele nos obriga a vê-la como arbitrária, nos impede de crer nela. Ele é bufão (...) A crítica não pode ir além desta bufonaria”[3]. 

A colocação não poderia ser mais direta. A força do capitalismo viria do fato dele não se levar mais a sério. Ele não exigiria mais espécie alguma de crença cega nos conteúdos normativos que ele próprio apresenta. Crença que deveria ser compreendida como defesa de um princípio seguro de indexação entre critérios de validade de aspirações universalizante e situações da dimensão prática. O que colocaria em xeque a eficácia de processos de crítica pensados a partir da dinâmica do desvelamento de contradições performativas. Ou seja, poderíamos todos tomar distância dos conteúdos normativos do universo ideológico capitalista porque o próprio discurso do poder já ri de si mesmo. No entanto, e este ponto é o mais importante, esta aparente crise de legitimidade seria o verdadeiro núcleo de sua força. Assim, Lyotard apontava não apenas para o momento em que as sociedades capitalistas começaram a passar por uma crise geral de legitimação, mas para o momento em que elas foram capazes de se legitimar através de uma “racionalidade cínica”, e com isto estabilizar uma situação que, em outras circunstâncias, seria uma típica e insustentável situação de crise. Se “a crítica torna-se impotente para ir além desta bufonaria”, tal impotência da crítica seria resultante da capacidade do capitalismo em realizar cinicamente a crítica.

 

Adorno e o riso que vem do poder

 

No entanto, não deixa de ser irônico encontrar exatamente em Adorno a consciência deste cinismo constitutivo do regime contemporâneo de funcionamento do capitalismo e de sua estrutura ideológica. Por exemplo, a leitura atenta de alguns textos centrais de Adorno nos demonstra seu esforço em pensar, para a configuração dos móbiles da ideologia, a obsolescência de categorias como: falsa consciência, reificação, desconhecimento e ilusão. Resultado da exigência em pensar o impacto das modificações históricas na configuração do conceito de ideologia. Neste ponto, Adorno é claro:  “A ideologia em sentido estrito se dá lá onde o que rege são relações de poder (Machtvehältnisse) não transparentes em si mesmas, mediadas e, neste sentido, inclusive atenuadas. Mas a sociedade atual, erroneamente acusada de excessiva complexidade, transformou-se em algo demasiadamente transparente (durchsichtig)”[4]. Ou seja, de uma certa forma, o desafio atual consistiria em pensar o conceito de ideologia a partir de relações de poder que se dão no solo da posição da transparência.

            Esta exigência nos coloca diante de uma tarefa complexa. Pois, quando o que impera são relações imediatas de poder postas enquanto tais, não há necessidade de falar em “ideologia” em sentido estrito, já que “ideologia é justificação (Rechtfertigung)”[5], ela é operação de conformação de situações empíricas determinadas às expectativas de validade exigidas pelas aspirações universalizantes da razão. Ela exige assim que o poder seja mediado pela reflexão acerca da sua legitimidade, mediação que levaria o poder a, por exemplo, mascarar seus verdadeiros pressupostos lá onde eles não podem ser postos sem contradição. É inclusive o reconhecimento de tais expectativas de validade em toda construção ideológica que leva Adorno a insistir na existência de um elemento racional sempre presente na ideologia. Desta forma, a crítica da ideologia poderia operar nestes interstícios nos quais se evidenciam os nós sintomais nos quais se lê a contradição entre os procedimentos de justificação e o domínio das situações na efetividade. A crítica não faria outra coisa que mostrar como a construção ideológica, de uma certa forma, não realiza seu próprio conceito. 

            No entanto, o que dizer de uma situação na qual a própria transparência parece ser o motor central para a sustentação da ideologia, ou seja, situação na qual os pressupostos do poder estão claramente postos em sua contradição mas, nem por isto, segue-se uma reorientação das condutas dos sujeitos? Problema que Peter Sloterdijk enuncia em um acento de forte inspiração adorniana ao perceber que: “há uma nudez que não desmascara mais e que não faz aparecer nenhum ‘fato bruto’ sobre o terreno no qual poderíamos nos sustentar com um realismo sereno”[6]. Não se trata simplesmente de pensar relações de poder sustentadas na dessimetria da força – no estágio atual de esclarecimento, não há relação estável de poder que não dê respostas às exigências de legitimidade.  Trata-se, ao contrário, de compreender como o regime contemporâneo de transparência do poder  é capaz de preencher exigências de validade e legitimação, transformando a contradição posta em contradição resolvida. Para tanto, o primeiro passo consiste em perceber que esta “nudez que não desmascara” só pode ser compreendida ao identificarmos, atuando em seu cerne, uma certa ironia que lhe é constitutiva. Como se o regime contemporâneo de funcionamento da ideologia só pudesse ser descrito através de uma reflexão prévia sobre a ironia.

            Este é, a princípio, um ponto que parece inconsistente porque todos conhecemos as múltiplas figura da ironia como arma suprema do esclarecimento na constituição retórica da crítica. Um dos móbiles mais usados pela crítica esclarecida foi o riso como modo de desmascaramento das imposturas do poder, desmascaramento da contradição performativa entre procedimentos de justificação e a dimensão da ação.

Mas esta noção da ironia vinculada à eficácia retórica da crítica não encontra ressonâncias em Adorno. Ilustrativo neste sentido é o parágrafo 134 da Mínima moralia, intitulado “O erro de Juvenal”, o mesmo Juvenal que afirmava: difficile est satyras non scribere. No parágrafo de Adorno, a ironia, em especial aquela que aparece sob a forma da sátira, é compreendida como reação do poder aos imperativos de mudança, isto devido ao alvo privilegiado da sátira ser normalmente a “decadência dos costumes”. A crítica que se serve da ironia seria vinculada à lógica da conservação porque seu critério de orientação: “é sempre o critério ameaçado pelo progresso; este permanece pressuposto como ideologia imperante, a tal ponto que o fenômeno que foge à regra é rejeitado, sem que se lhe faça a justiça de uma discussão racional”[7]. Ela se orientaria assim através de um “acordo transcendental imanente”, de um common sense nunca colocado em causa.

Adorno parece aqui não estar fazendo outra coisa que recuperar um tema constante na teoria clássica do riso a respeito do caráter normativo do humor no interior dos métodos de defesa próprios à lógica da conservação[8]. No entanto, Adorno está fazendo mais do que isto. Se ele não procura insistir nos vínculos claramente presentes entre ironia e crítica esclarecida é para passar à constatação de que  continua havendo uma ironia funcionando no cerne do poder, mas ela não aparece mais como apelo a uma espécie de acordo intersubjetivo transcendental “que não admite contestação” sobre normas e valores e que, por isto, desqualifica tudo o que lhe seria exterior. Na verdade, ela aparece como “acordo universal sobre conteúdos” (inhaltlich universalen Einverständnis), ou seja, como uma estranha impossibilidade de ultrapassar aquilo que se coloca na efetividade (Wirklichkeit). Assim, não se trata de pensar mais a ironia como modo de apelo a uma verdade intersubjetivamente partilhada mas transcendente à situação ironizada. Ao contrário, trata-se de pensar uma estranha ironia que sustentaria a efetividade ao zombar daqueles que procuram zombá-la.  

É neste sentido que devemos compreender a afirmação central de Adorno segundo a qual: “a diferença entre ideologia e realidade (Wirklichkeit) desapareceu”. Tal desaparecimento não diz respeito ao fato de que as contradições que a ideologia procura justificar não são resultantes apenas do descompasso entre idéia e efetividade, mas são processos constitutivos da própria posição da efetividade. Se assim fosse, Adorno não estaria fazendo outra coisa que repetir as elaborações do Marx da maturidade – como, por exemplo, a idéia marxista segundo a qual o fetichismo não seria exatamente uma ilusão da falsa consciência, mas uma espécie de “contradição objetiva”, ou seja, contradição vinda do próprio objeto.

Na verdade, ao afirmar que a diferença entre ideologia e realidade desapareceu, Adorno procura lembrar que, na contemporaneidade, a ideologia transparece e afirma-se enquanto tal na própria efetividade, sem que isto modifique o engajamento dos sujeitos em seu campo. Ele insiste na existência de uma certa relação de duplicação (Verdoppelung) entre ideologia e realidade, isto a fim de lembrar que: “a ideologia não é mais uma capa (Hülle), mas a ameaçadora aceitação (Antlitz) do mundo”[9].

Lembremos ainda que esta transparência não deve ser compreendida como realização direta, na efetividade, das expectativas de justificação presentes na ideologia. Ela apenas indica que os sujeitos agem aqui como falsas consciências esclarecidas, ou seja, como consciências que desvelaram reflexivamente os pressupostos que determinam suas ações “alienadas” (pois sabem claramente o que é a efetividade), mas mesmo assim são capazes de justificar racionalmente a necessidade de tais ações. Daí porque, eles podem ter uma “crença desprovida de crença”[10] (glaubenslosen Glauben) na mera existência. Algo resultante de uma efetividade que já traz em si mesma sua própria crítica.

 

Do fascismo ao casamento de Beatriz da Holanda

 

Esta estranha crença desprovida de crença só pode ser compreendida se levarmos em conta como a ideologia é capaz de, atualmente, colocar em marcha um processo de ironização da efetividade que responde, de uma maneira peculiar, às exigências de justificação que seriam constitutivas de seu próprio conceito. Isto nos permitirá perceber que a questão posta por Lyotard ao falar de um capitalismo bufão já havia sido levantada por Adorno, mas à ocasião de seus estudos sobre o fascismo.  Para ele, o fascismo era, de uma certa forma, o riso que vem do poder.

Podemos dizer isto porque o caráter “carnavalesco” da ideologia fascista, caráter de paródia que absorve, ao mesmo tempo, conteúdos ideológicos aparentemente contraditórios como, por exemplo, o vínculo camponês à terra e o culto futurista à indústria seria, segundo Adorno, o segredo da sua força. Tudo era aparência posta como aparência e, fato de suma importância, sabia-se disto. Adorno insiste que ninguém acreditava na mitologia do fascismo, nem sequer seus porta-vozes, mas cria-se – ou seja, a responsabilidade da crença era sempre enviada a um Outro, a uma espécie de “sujeito-suposto-crer. O fascismo seria assim a realização da distância irônica agindo de maneira reflexiva no cerne do poder.

Como dirá Adorno: “Da mesma forma com que as pessoas não acreditam, no fundo de seus corações, que os judeus sejam o demônio, elas não acreditam completamente no líder. Elas não se identificam realmente com ele mas atuam esta identificação (act this identification), representam (perform) seu próprio entusiasmo e desta forma participam da performance do líder. É através desta representação que eles encontram uma balança entre seus impulsos instintuais (instinctual urges)  continuamente mobilizados e o estágio histórico de esclarecimento que eles alcançaram e que não pode ser arbitrariamente revogado. É provavelmente a desconfiança da ficção de sua própria ‘psicologia de grupo’ que faz as massas fascistas tão impiedosas e inabaláveis. Se elas parassem para raciocinar (to reason) por um segundo, todo a performance iria pelos ares e eles seriam deixados em estado de pânico”[11]. Ou seja, o fascismo não teria passado de um grande jogo de máscaras, de uma grande paródia carnavalesca. Como se ele realizasse o célebre dito de Saint-Just: “Celui qui plaisante à la tête du gouvernement tend à la tyrannie”.

Cada uma das idéias aqui presentes deve ser levada a sério. Primeiro, a noção de uma identificação irônica que leva os sujeitos a “representar seu próprio entusiasmo”. Um “como se” cínico que desarticula a distinção clássica entre ‘entusiasmo’ e ‘desencanto’ e que não exige mais que os sujeitos identifiquem-se simbolicamente com tipos ideais socialmente disponibilizados. Um pouco como se o poder que ri de si mesmo exigisse que os sujeitos ironizassem a todo momento seus papéis sociais. Segundo, a simulação como formação de compromisso entre exigências valorativas ‘esclarecidas’ e “impulsos instintuais continuamente mobilizados” (impulsos que por sua vez já são absolutamente estilizados, já que a “regressão” aqui é, de uma certa forma, uma ficção), ou seja, como aquilo que permite a sujeitos esclarecidos agirem ironicamente como se não soubessem.  Terceiro, uma certa “síndrome de pânico” que apareceria no momento em que todo este jogo de aparência ameaçasse arruinar-se.

Neste ponto, podemos compreender melhor afirmações aparentemente estranhas de Adorno como: “A dita psicologia do fascismo é largamente engendrada por manipulação”[12]. Uma “manipulação” do inconsciente, “expropriação” do inconsciente pelo controle social ou mesmo “apropriação da psicologia das massas pelo líder”, dirá em Freudian theory and the patterns of fascist propaganda. Tais termos, tomados fora de contexto, podem nos induzir a pensar que Adorno opera no interior de uma lógica do mascaramento ideológico ou mesmo da ideologia como uma espécie de ilusão da falsa consciência resultante dos móbiles de ocultamento dos pressupostos de atuação de um poder que, contrariamente ao que nos mostrou Foucault, parece ter um centro muito claro.

No entanto, nada mais equivocado no que concerne a Adorno. Não é por outra razão que o conceito central para compreender a “manipulação” fascista no texto em questão é phonyness: termo que indica a posição de uma falsidade que se afirma ironicamente enquanto tal. Isto é absolutamente central: para Adorno, os líderes autoritários fascistas não são hipócritas, eles são phonyness. Neste sentido, o regime de manipulação só ficará claro se respondermos à questão: como e porque o sujeito investe em vínculos sociais assumidamente phonyness? Questão que obedece ao imperativo adorniano de criticar a ideologia não através da refutação de teses a partir de uma análise sistêmica da coerência dos enunciados ou da identificação de contradições performativas, mas através da análise das disposições (Dispositionen) que a ideologia pretende produzir nos sujeitos. Ou seja, devemos compreender que sujeito este discurso ideológico pressupõe.

No entanto, antes de tentar responder esta questão, não poderíamos dizer que esta análise da ideologia fascista parece estranhamente próxima de algo fundamental em nossas sociedades “pós-ideológicas” pretensamente marcadas pelo desengajamento em relação a todo projeto utópico? Se assim for, a semelhança de família entre o capitalismo bufão pós-ideológico de Lyotard e o fascismo na sua versão adorniana não seria mero acaso. Pois nos dois casos estaríamos diante de mecanismos de poder fundados em ideologias da ironização. Fato que não seria estranho a Adorno.

Para se ter certeza de que o mesmo esquema de ironização serve a Adorno na análise do mecanismo de funcionamento da ideologia na contemporaneidade capitalista em seu sentido mais amplo, lembremos como termina um texto seu consagrado à análise da televisão como ideologia: “Dentre os scripts analisados, numerosos são estes que jogam com a consciência de ser kitsch e dão uma piscadela de olhos em direção ao espectador (Betrachter) não ingênuo, como quem diz que eles mesmos não acreditam no que mostram, que eles não são assim tão idiotas”[13]. Exemplo supremo de ideologia que pode funcionar exatamente por não se tomar a sério, diríamos nós.

Uma colocação desta natureza é central se lembrarmos que, para Adorno, a indústria cultural e as estruturas de comunicação de massa que as suporta respondem, de maneira hegemônica, pelo estabelecimento das dinâmicas dos processos de socialização. Neste sentido, a verdadeira questão posta por Adorno não diz respeito a processos unívocos de “manipulação” que desconsiderariam a multiplicidade possível dos modos de recepção e de re-significação. Ela diz respeito às conseqüências de processos de socialização mediados por conteúdos previamente ironizados. As reflexões de Adorno apontam para esta direção, principalmente em um texto tardio como Tempo livre (1969), no qual, ao final, é questão de uma certa revisão no quadro geral do conceito de indústria cultural tal como ele fora apresentado na Dialética do Esclarecimento.

Partindo de um estudo empírico desenvolvido pelo Instituto de Pesquisas Sociais sobre os modos de recepção da veiculação midiática alemã do casamento da princesa Beatriz da Holanda, Adorno percebe a necessidade de abandonar um esquema clássico de ilusão ideológica em prol da análise de “sintomas de uma consciência duplicada” (Symptome eines gedoppelten Bewubtseins). A respeito de tais sintomas, ele dirá: “Verificamos que muitos [espectadores] se portavam de modo bem realista e avaliavam com sentido crítico a importância política e social de um acontecimento cuja singularidade bem propagada os havia mantido em suspenso ante a tela do televisor. Em conseqüência, se minha conclusão não é muito apressada, as pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas com um tipo de reserva, de forma semelhante à maneira como mesmo os mais ingênuos não consideram reais os episódios oferecidos pelo teatro e pelo cinema. Talvez ainda mais: não se acredita inteiramente neles[14]. Se Adorno ainda via uma possibilidade de emancipação nesta distância em relação à crença nos conteúdos ideológicos disponibilizados pela indústria cultural, podemos dizer que tal “crença desprovida de crença” é exatamente a mola de funcionamento da ideologia na contemporaneidade e a garantia de sua perenidade. Os conteúdos já são previamente ironizados e é isto que lhes permitem continuar circulando.

Podemos ver no diagnóstico desta auto-ironia da indústria cultural um caminho frutífero aberto por Adorno na análise das formações contemporâneas da ideologia. De fato, uma análise empírica dos produtos recentes da indústria cultural demonstra a prevalência deste esquema. Personagens de contos de fadas que não mais se reconhecem e criticam seus próprios papéis, peças publicitárias que zombam da linguagem publicitária (Calvin Klein, Diesel), celebridades e representantes políticos que se auto-ironizam em programas televisivos: todos estes fatos são apenas figuras de um processo geral de ironização dos modos de vida que nos coloca diante daquilo que Peter Sloterdijk um dia chamou de ideologia reflexiva, posição ideológica que porta em si mesma a  negação dos conteúdos que ela apresenta. Maneira astuta de perpetuá-los mesmo em situações históricas nas quais eles não podem mais esperar enraizamento substancial algum.

Neste sentido, a conservação da temática da ideologia pode mostrar sua atualidade. Nossas sociedades “pós-ideológicas” não são exatamente marcadas pela ausência de construções ideológicas usadas de maneira recorrente na justificação de práticas e valores sociais. Ao contrário, elas são marcadas pela perpetuação de tais construções sob a forma da ironia. Pois mesmo que tais construções sejam ironizadas, elas continuam fornecendo o quadro narrativo estável e socialmente partilhado para a descrição de práticas e valores. Tudo se passa assim como se o capitalismo contemporâneo e suas formações maiores funcionassem a partir de uma certa lógica da “carnavalização”.

 

Capitalismo carnavalesco

 

O termo não está aqui de maneira gratuita. Ele visa sobretudo a descrição fornecida por Mikhail Bakhtin a respeito dos modos de suspensão da Lei em festas anômicas da idade média. Por mais improvável que isto possa parecer, tais modos de suspensão da Lei podem nos indicar como a ideologia do capitalismo contemporâneo é capaz de, como dizia Lyotard, manter a lei do valor ao mesmo tempo em que mina o valor da lei. Ou seja, perpetuar a lei ao mesmo tempo em que proclama a fragilidade de sua legitimidade.

Bakhtin tem um interesse especial pelas festas anômicas da idade média, em especial o carnaval, por ver nelas a entificação do caráter subversivo do riso popular contra as imposturas do poder. Ele insiste no fato de nenhuma festa cívica desenrolar-se na idade média sem que intervenha elementos de uma organização cômica. Fato que deveria ser lido no interior de um dado antropológico mais amplo exposto na seguinte afirmação: “Encontramos, no folclore dos povos primitivos, paralelamente aos cultos sérios (devido a sua organização e tom) os cultos cômicos que se transformavam em derrisão e blasfemavam as divindades (´riso ritual´); paralelamente aos mitos sérios, os mitos cômicos e injuriosos; paralelamente aos heróis, seus sósias paródicos”[15].

No entanto, devemos nos perguntar sobre o significado de tal duplicação irônica da estruturas gerais de socialização presentes nas festas cívicas e nos mitos. Bakhtin compreende isto como exposição de tendências de subversão e ressignificação popular da Lei social. Daí afirmações como: “o carnaval era o triunfo de uma forma de liberação provisória em relação à verdade dominante e o regime existente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus”[16]. Mundo de aproximação dos contrários que marca a utopia da flexibilização das normas prometendo: “um modo particular de existência (...) baseado no princípio do riso”[17]. Riso de dissolve toda e qualquer determinidade e inverte todo e qualquer princípio normativo em prol da vida como fluxo contínuo de formas.

A adequação histórica de tal compreensão das festas anômicas exigiria uma análise empírica minuciosa.  No entanto, é impossível não problematizar esta oposição estrita entre suspensão e respeito à Lei que guia a interpretação de Bakhtin. A uma primeira vista, a redução da vida a um fluxo contínuo de formas em momentos de anomia não parece se opor ao ordenamento jurídico. Se a relação fosse realmente de oposição, seria difícil explicar como o ordenamento jurídico é capaz de se reconfigurar imediatamente após o período de anomia, sem que tal período implique em necessidade de reorientação dos processos de normatização. Ou seja, eles retornam tal como eram antes. Assim, para além da tentativa bakhtiniana de entificação de um certo caráter subversivo do riso popular que teria no carnaval seu espaço social privilegiado, riso popular que seria uma das raízes do cinismo grego, devemos insistir na complementaridade entre posição da norma e sua ironização paródica. Ou seja, devemos ver os mitos cômicos como parte constitutiva dos mitos sérios, como seu desdobramento interno, como o que permite ao sério internalizar sua própria crítica.

Giorgio Agamben chegou a uma conclusão similar ao apoiar-se nos estudos de Karl Meuli para afirmar que as festas anômicas devem ser relacionadas com: “o estado de suspensão da lei que caracteriza alguns institutos jurídicos arcaicos, como a Friedlosgkeit alemã ou a perseguição do vargus no antigo direito inglês”[18]. Colocação astuta por lembrar que a pretensa suspensão da lei já é, de uma certa forma, fenômeno ordenado juridicamente. A suspensão da Lei não significaria necessariamente sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é desprovida de relações com a ordem jurídica. Como se um certo ordenamento jurídico “socialmente pressuposto” reconhecesse que a suspensão da lei é fenômeno interno ao próprio processo de efetivação da lei e que a alternância entre ordem e desordem não coloca em xeque a coesão do poder. Tal como se a lei ironizasse sua própria aplicabilidade. Se Agamben estiver correto, então a suspensão irônica da Lei não é desprovida de relações com a ordem jurídica. Mas aquilo que anteriormente estaria restrito a momentos de anomia tende, na dinâmica ideológica do capitalismo contemporâneo, a se colocar como modo hegemônico de funcionamento da Lei.

 

Identificações irônicas

 

            Talvez só seja possível compreender melhor a necessidade desta auto-ironia atuando no cerne do modo de funcionamento da ideologia se relevarmos o advento de um modo peculiar de identificação dos sujeitos com os vínculos sociais. Notemos, por exemplo, como atualmente os sujeitos não são mais chamados a se identificar com tipos ideais construídos a partir de identidades fixas e determinadas, o que exigiria engajamentos e uma certa ética da convicção. Na verdade, eles são cada vez mais chamados a sustentar identificações irônicas, ou seja, identificações nas quais, a todo o momento, os sujeitos afirmam sua distância em relação àquilo que estão representando, ou ainda, em relação a suas próprias ações. Como se Adorno, ao perceber que os sujeitos atuavam suas identificações com o líder fascista e tomavam, a todo momento, uma distância reflexiva dos conteúdos da comunicação de massa, tocasse em um ponto central a respeito do modo de investimento libidinal das sociedades capitalistas contemporâneas.

            A psicanálise, em especial a psicanálise de orientação lacaniana, insistiu no papel das identificações como processos centrais na socialização e sustentação dos vínculos sociais. Socializar é, fundamentalmente, “fazer como”, atuar a partir de tipos ideais que servem de modelo. No entanto, a fim de dar conta de dois modos distintos de “fazer como”, a psicanálise lacaniana se viu obrigada a estabelecer uma distinção estrita entre identificação imaginária, fundada na introjeção constitutiva e especular da imagem de um outro que tem o valor de tipo ideal, e identificação simbólica, que indica o reconhecimento de si em um traço unário vindo de um Outro na posição de Ideal do eu. Esta forma de identificação é modo de reconhecimento que, por operar através de traços unários, isto ao invés de operar por imagens estáticas, não impõe ao sujeito a partilha de uma identidade fixa, mas o leva a se reconhecer e a reconhecer seu desejo naquilo que não tem objetivação previamente determinada.

            Através desta duplicidade nos mecanismos de identificação, Lacan procurava explicar como os processos de socialização baseados em identificações podiam dar conta do fato dos sujeitos serem capazes de se reconhecer em funções simbólicas que não se esgotam nas figuras contingentes daqueles que as portam. No entanto, tudo se passa como se transformássemos esta ausência de objetivação previamente determinada própria às funções simbólicas em ironia.

Tal como as identificações simbólicas, as identificações irônicas não estão vinculadas a introjeção de imagens privilegiadas colocadas em posição de ideal. Desde há muito, a dissolução irônica da determinidade foi compreendida também como dissolução da fixidez da imagem de si. Ao expor continuamente a distância entre enunciado e enunciação, o ironista aparece como aquele que nunca está presente no seu dizer, aquele que nunca fornece uma imagem de si. Como dizia Schlegel a propósito de Sócrates: “Nele tudo deve ser gracejo e tudo deve ser sério: tudo sinceramente aberto e tudo profundamente dissimulado”[19].

Desta forma, a destruição da pregnância das imagens de si pode redundar simplesmente na implementação contínua de uma certa distância irônica em relação a toda determinidade empírica, ou seja, em relação a todo papel identitário que determina um fazer social. Um distanciamento que pode se estabilizar a partir do momento em que os sujeitos tratam suas identidades sociais como simples aparências postas enquanto tal. Assim, eles se aferram a identidades sociais que não têm realidade substancial devido exatamente ao fato delas não terem realidade substancial alguma. Tal lógica da ironização pode realizar-se, por exemplo, através da “flexibilidade” de uma subjetividade plástica que compreende identidades sociais como puro jogo de máscaras não mais submetido a princípio unificador algum[20].

            Notemos ainda que este regime de identificação ganha importância se lembrarmos como tal distância irônica é atualmente condição necessária para o funcionamento da ideologia. Lembremos desta afirmação central de Althusser (ao menos neste ponto, próximo a Adorno), segundo a qual a ideologia não é uma questão de falsa consciência ou de crença cega, mas uma questão de repetição de rituais materiais[21]. Repetição que pode muito bem prescindir de todo e qualquer engajamento subjetivo. Na verdade, é até melhor que o sujeito tome distância crítica em relação ao seu fazer, que ele não se confunda com seus papéis e rituais sociais. Desta forma, a inércia na modificação do agir será ainda maior, pois o sujeito se dessolidariza do seu próprio ato, que ganha a força do automatismo. Repetir sem acreditar, ou seguir o famoso dito pascaliano que inverte a relação entre ato e crença: “Ajoelhai-vos, orais e acreditareis”. É tendo em vista fenômenos similares que Adorno podia falar em “crença desprovida de crença”.

 

Vladimir Safatle, Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo

 



[1] LYOTARD, Jean-François; Des dispositifs pulsionels, Paris, Christian Bourgois, 1980,  p. 121

[2] ZIZEK, Slavoj ; Fétichisme et subjectivation interpassive in Actuel Marx, n. 34, 2003, p. 100

[3] LYOTARD, idem, p. 130

[4] ADORNO, Beitrag zu Ideologienlehre in Gesammelte Schriften VIII, Digitale Bibliothek Band 97, p. 467

[5] ADORNO, idem, p. 465

[6] SLOTERDIJK; Critique de la raison cynique, Paris, Christian Bourgeois, 1987, p. 30

[7] ADORNO, Minima moralia, São Paulo, Ática, 1993, p. 184

[8] “Boa parte do humor, em especial a comédia do reconhecimento – e a maior parte do humor consiste em comédia do reconhecimento – simplesmente procura reforçar consenso e de maneira alguma procura criticar a ordem estabelecida ou mudar a situação na qual nos encontramos” (CRITCHLEY, On humor, Routledge, Londres/Nova York, 2002, p. 11)

[9] ADORNO, idem , p. 477

[10] ADORNO, idem, p. 476

[11] ADORNO, Freudian theory and the patterns of fascist propaganda in Gesammelte Schriften VIII, Digitale Bibliothek Band 97, p. 418

[12] ADORNO, idem, p. 430

[13] ADORNO, Fernsehen als Ideologie, in Gesammelte Schriften X, Digitale Bibliothek Band 97 p. 530.

[14] ADORNO, Tempo livre in Indústria Cultural e Sociedade, São Paulo, Paz e Terra, 2002, p. 127

[15] BAKHTIN, oeuvre de François Rabelais et la culture popularie au Moyen age et sous la Renaissance, Paris, Gallimard, 1970, p. 14

[16] BAKHTIN, idem, p. 18

[17] BAKHTIN, idem, p. 16

[18] AGAMBEM, Estado de exceção, São Paulo, Boitempo, 2004, p. 109

[19] SCHLEGEL, Dialeto dos fragmentos, São Paulo, Iluminuras, 1997, p. 37

[20] Como se o presente tivesse realizado o diagnóstico preciso de Nietzsche: “Há épocas nas quais o indivíduo esta convencido de poder quase tudo fazer, estar a altura de quase todos os papéis, nas quais cada um tenta, improvisa, tenta novamente (...) Os gregos, uma vez engajados nesta crença nos papéis (...) realmente se transformaram em atores (...) Mas o que temo é que nós, homens modernos, já estejamos plenamente engajados no mesmo caminho, e cada vez que o homem começa a descobrir em que medida ele desempenha um papel e em até que ponto ele pode ser um ator, ele se transforma em ator” (NIETZSCHE, A gaia ciência, par. 356).

[21] Cf. ALTHUSSER, Aparelhos ideológicos de estado, Rio de Janeiro, Graal, 1992, p. 91