Muito longe, muito perto:

Dialética, ironia e cinismo a partir da leitura hegeliana de O sobrinho de Rameau

 

 

Vladimir Safatle[1]

 

Resumo: Este artigo visa discutir o sentido da crítica hegeliana à noção romântica de ironia a partir de uma articulação possível entre ironização das condutas e cinismo presente em O sobrinho de Rameau, de Diderot.  Tal articulação talvez nos demonstre como Hegel tem em vista, principalmente, certos processos de interversão das expectativas de racionalização próprias à modernidade que só podem ser tematizados de maneira adequada pela dialética.

 

Palavras-chaves: dialética, cinismo, ironia, natureza, música,

 

Abstract: This article aims to discuss the meaning of Hegel´s critique against romantic irony. This meaning can be understood upon the commentarie of hegelian lecture on Rameau´s nephew, of Diderot.  We need to show, in this lecture, the articulation between ironisation of behaviors and cynicism. By this way, it´s possible to discuss a certain process of subversion of modernity´s claims that Hegel want to think in a dialectic way.

 

Keywords: dialectic, cynicism, irony, nature, music

 

 

 

Mas nesta vertigem na qual a verdade do mundo só se manifesta

no interior de um vazio absoluto, o homem encontra também

a irônica perversão da sua própria verdade...

Foucault, História da Loucura

 

 

 

Um campo de batalha

            ``                                

O tamanho da virulência indica o tamanho do combate. Esta frase vale, sobretudo, para a natureza do que está em jogo no combate entre a dialética hegeliana e a ironia romântica. No fundo, Hegel sente a ironia como uma sombra sempre pronta a se deixar confundir com o corpo da dialética. E lá onde a proximidade é grande, a violência da crítica deve ser ainda maior.

            De fato, há um movimento complexo de proximidade e distância entre dialética e ironia. A análise deste movimento fornece uma perspectiva privilegiada de compreensão de certos problemas, estratégias e riscos que a dialética deve abordar a fim de assegurar um conceito positivo de razão. Por um lado, dialética e ironia partilham a consciência a respeito do advento de uma modernidade disposta a problematizar tudo aquilo que poderia se apresentar como fundamento substancialmente enraizado. Espírito de época para o qual: “não somente está perdida (verloren) para ele sua vida essencial; está também consciente desta perda e da finitude que é seu conteúdo”[2]. Tal como no caso da recuperação hegeliana da dialética, a ironia, enquanto modo privilegiado de estetização de sujeitos não-substanciais, volta normalmente à cena quando nos confrontamos com realidades históricas em crise de legitimação, incapazes de responder à expectativas de  validade com aspirações universalizantes, mas que não têm a sua disposição uma nova legalidade: “Para o sujeito irônico a realidade perdeu toda a sua validade; ela se tornou para ele uma forma incompleta que incomoda ou constrange por toda parte. O novo, por outro lado, ele não possui. Apenas sabe que o presente não corresponde à idéia”[3]. Diante de uma realidade que não responde mais a expectativas de validade, abre-se sempre, ao sujeito, a negatividade da ironização absoluta das condutas ou, para falar com Hegel, da Vereitelung consciente-de-si de tudo o que é objetivo. Abre-se ao sujeito a possibilidade de mostrar que esta realidade não pode ser tomada à sério, devendo a todo momento ser invertida e pervertida (seriedade no sentido de adequação entre expectativas de validade e determinidades efetivas).

            É por esta razão que mesmo Hegel (principalmente em seus comentários sobre Solger, já que as críticas a Schlegel sempre serão bastante contundentes) reconhece que a ironia pode aparecer como uma espécie de figura “larvar” da dialética. Sendo um processo de internalização de clivagens, de inversão de determinações fixas e de formalização de experiências de negatividade, a dialética partilha com a ironia certos traços estruturais. Dialética e ironia são modos de enunciar e apresentar a contradição entre efetividade e conceito (daí porque o conceito parece sempre ser invertido pela efetividade), entre caso e condições normativas de justificação[4]. Comentadores como Ernst Behler chegaram mesmo a se ver autorizados, a partir daí, a afirmar que, por exemplo: “A proximidade da ironia de Schlegel com a própria posição de Hegel parece estar vinculada à estrutura da dialética hegeliana, que aparece animada também por um constante sim e não, uma construção e suspensão permanentes [resultante dos usos da contradição], um alternar  entre auto-criação e auto-destruição, uma ‘negatividade’ inerente”[5]. 

            Quando Behler fez tal afirmação, ele tinha certamente em vista a presença, tanto na dialética quanto na ironia, da Verhkerung como modo de manifestação do esgotamento de determinações fixas e aparentemente substanciais. O uso da Verhkerung com suas passagens incessantes no oposto configura o primeiro nível da negatividade dialética. Tais passagens também animam o culto romântico ao paradoxo e à contradição que estão no cerne da recuperação da ironia, assim como no recurso ao witz enquanto figura privilegiada da ironia[6]. É neste sentido que há, na ironia, uma certa estetização da inadequação ás determinações fenomenais que a aproxima necessariamente da dialética.

            Por outro lado, dialética e ironia reconhecem uma certa transcendência negativa como modo de posição de sujeitos não substanciais. Em Hegel, a primeira posição da subjetividade é a transcendência do para-si em relação a toda e qualquer determinidade empírica. Não se trata aqui de compreender a transcendência simplesmente como esta ilusão própria ao uso da razão e sempre presente quando ela procura aplicar um princípio efetivo para-além dos limites da experiência possível. Hegel quer, na verdade, insistir na solidariedade entre a subjetividade e um ato de transcender que deve ser compreendido como negação capaz de pôr a não-adequação entre o ser do sujeito e os objetos da dimensão do empírico, como apresentação de uma não-saturação do ser do sujeito no interior do campo fenomenal. Tal transcendência não põe princípio efetivo algum para além da experiência possível. O que nos explica porque devemos compreendê-la como transcendência negativa.

            A este respeito, lembremos que, principalmente a partir do romantismo alemão, a ironia será compreendida não apenas como um tropo da retórica, mas como manifestação privilegiada da força de auto-reflexão própria ao sujeito moderno, ou seja, desta capacidade dos sujeitos tomarem a si mesmos como objeto de reflexão e, com isto, transcender, colocar-se para além de todo contexto determinado. De uma certa forma, isto estaria presente na capacidade do sujeito irônico nunca estar lá onde seu dizer aponta, nesta clivagem necessária ao ato de fala irônico entre sujeito do enunciado e a posição do sujeito da enunciação. 

Neste sentido, podemos lembrar aqui de como Schlegel já definira a ironia romântica como: “bufonaria realmente transcendental”[7]. Transcendental é aqui usado em um sentido “não-constitutivo”, já que o termo indicaria esta disposição que tudo supervisiona e se eleva infinitamente acima de todo condicionado. Tal necessidade de elevação acima de todo condicionado da qual fala Schlegel pode nos explicar porque: “Para poder escrever bem sobre um objeto, é preciso já não se interessar por ele; o pensamento que deve exprimir com lucidez já tem de estar totalmente afastado, já não ocupar propriamente alguém”[8]. Escrever bem, ou seja, escrever de forma irônica, pressupõe um desinteresse construído através da desafecção dos objetos. Desafecção que demonstra como o sujeito não reconhece nenhuma resistência vinda do objeto. Ao contrário, se toda descrição de objeto pode ser ironizada é porque o objeto como pólo de resistência dissolveu-se. Daí porque Hegel pode falar, pensando em Schlegel, da: "dissolução (Auflösen) irônica do determinado e do que é em si substancial”[9].

            No entanto, apesar destas proximidades aparentes, Hegel não cansa de insistir, com toda virulência, nas diferenças estruturais entre dialética e ironia. Até porque, para ele, a ironia e suas figuras não seriam mais do que a estetização de um impasse maior nos processos de racionalização da dimensão prática. Em suma, podemos dizer que, para Hegel, a problematização irônica do fundamento das expectativas de validade só pode produzir uma certa ironização geral das condutas que é figura da perpetuação da crise de legitimidade, maneira de conservar sub specie ironiae o que não tem mais legitimidade no interior das esferas sociais de valores, reduzindo a dimensão dos fenômenos a um jogo negativo de aparências. Não seria por outro razão que: “Hegel erige o momento inexpressivo da seriedade em princípio de estilização”[10].  

            Por sua vez, a negatividade irônica é vista por Hegel como um bloqueio por não poder passar ao segundo nível da negatividade dialética (Aufhebung); este nível que, ao invés de se acomodar com o jogo infinito de paradoxos e passagens ao contrário próprias à Verhkerung, procura produzir um modo de negação que conserva o objeto negado. Ou seja, a ironia seria, ao menos segundo Hegel, uma “dialética bloqueada”.

            Por fim, a bufonaria transcendental própria à subjetividade irônica indica, para Hegel, uma impossibilidade de reconhecimento de si na efetividade, um “jogo  infinitamente leve com o nada”[11] como dirá mais tarde Kierkegaard, isto sem deixar de lembrar que haveria três tipos de nada: o nada especulativo (esforço criador do concreto), o nada místico (um nada para a representação, mas rico em conteúdo para um pensar não representativo) e o nada irônico (que parece almejar o niilismo da repetição indefinida do indeterminado). Podemos mesmo dizer que este jogo infinitamente leve da subjetividade irônica prenuncia o advento de uma subjetividade “flexível” pensada fundamentalmente como jogo de máscaras.

            Neste ponto, vale a pena salientar que tais discussões sobre a relação complexa entre dialética e ironia têm uma estranha atualidade. Pois é possível que Hegel tenha percebido, através dos móbiles que levaram à recuperação da ironia pelo romantismo alemão, a estetização de um processo geral de interversão das aspirações normativas da modernidade, fracasso que só atualmente se mostrou em toda sua extensão através das discussões a respeito do que chamamos de “racionalidade cínica”[12]. Neste sentido, trata-se aqui de insistir no fato de que uma certa compreensão dialética dos processos de ironização presentes em determinados momentos da recuperação filosófica da ironia tende a se colocar no ponto de indistinção entre ironia e cinismo.

            É certo que a hipótese de Hegel como crítico da razão cínica pode parecer o mais profundo contrasenso. No entanto, ela ganha plausibilidade se formos capazes de mostrar que o modo através do qual Hegel compreende a dinâmica de ironização geral das condutas já prefigura os debates da contemporaneidade a respeito do cinismo como figura do esclarecimento. Não se trata absolutamente, com isto, de afirmar a solidariedade entre o que compreendemos atualmente por cinismo e o que estava em jogo na recuperação romântica da ironia. Trata-se de afirmar tal solidariedade no interior do texto hegeliano. Isto nos explica muito sobre a maneira com que Hegel compreende os impasses possível da racionalização da dimensão prática na modernidade, mas não necessariamente serve como análise interna da extensão dos problemas relativos à ironia romântica a partir das expectativas de seus teóricos.

            De qualquer forma, o quiasma entre ironia e cinismo pode ser derivado do texto hegeliano. Para tanto, devemos adotar uma estratégia que não passa exatamente pelo comentário das posições explícitas de Hegel a respeito da ironia romântica. Pois uma leitura atenta da Fenomenologia do Espírito nos demonstra um momento instrutivo a respeito da relação crítica entre dialética e processos de ironização da efetividade. Faz-se necessário pois levar às últimas conseqüências o fato de que um dos momentos mais significativos a respeito desta relação crítica ser dado pelo comentário hegeliano, presente na Fenomenologia do Espírito, sobre O sobrinho de Rameau[13]: estetização deste momento em que o Iluminismo depara-se, em sua aurora, com um processo geral de interversão de suas expectativas normativas através da ironização cínica de condutas e valores que aspiram validade incondicional, racional e universal. Interversão capaz de abrir uma “profundeza sem fundo onde desvanece toda a firmeza e substância”[14]. Devemos assim mostrar como o comentário de O sobrinho de Rameau cristaliza um movimento de crítica (partilhado também pela dialética hegeliana) a certos modos de realização de expectativas normativas da razão moderna.

Esta operação não é impossível se lembrarmos que o texto de Diderot é, à sua maneira, um momento inaugural do advento da consciência das interversões das aspirações do Esclarecimento. Como dirá Foucault, o texto de Diderot marca o retorno de uma desrazão que habita o cerne da razão, o que, no nosso caso, pode ser compreendido como resultado de um movimento de suspensão dos processos de racionalização da dimensão prática que é, ao mesmo tempo, resultado da afirmação destes mesmos processos. Afirmação sem tragédia e, se seguirmos Hegel, veremos que só pode nos levar àquilo que é da ordem do cinismo. Podemos mesmo, por exemplo, dizer que O sobrinho de Rameau ocupa uma função que, posteriormente, a tradição dialética (Adorno) irá procurar em Sade: expor os mecanismos de interversão da moralidade esclarecida, seja em perversão, seja em cinismo. O uso de dois textos literários da aurora do Esclarecimento não é um mero acaso. Trata-se de insistir que problemas identificados no despertar do intrincado processo de auto-certificação da sociedade burguesa ainda ressoam (ou talvez seja melhor dizer: só ressoam em toda sua extensão agora).

 

O momento cínico do Espírito

 

            Se reconstituirmos a economia do texto hegeliano, veremos que seu comentário a respeito da peça de Diderot na Fenomenologia do Espírito encontra-se em um lugar bastante sintomático. Primeiro, ele se encontra no interior da seção “Espírito”. Esta seção foi, durante a redação da Fenomenologia, paulatinamente transformando-se no centro de gravidade do livro. Uma transformação bem ilustrada pela própria modificação do título: de Ciência da experiência da consciência para Fenomenologia do Espírito. De fato, podemos dizer que apenas aqui, nesta que é a seção mais extensa do livro, Hegel apresentará algo como um conceito positivo de razão capaz de realizar o projeto da consciência ter a certeza de ser toda a realidade. Este conceito positivo está vinculado a uma racionalidade fundada na descrição do movimento de rememoração histórica dos processos de formação das estruturas de orientação do julgamento e da ação da consciência[15]. Rememoração capaz de internalizar a luta da consciência em realizar a razão através da racionalização de estruturas de práticas sociais adequadas a aspirações universalizantes. Daí porque as figuras da seção “Espírito” são figuras de um mundo, ou seja, figuras claramente articuladas a momentos sócio-históricos e pensadas no interior de uma progressão histórica em direção à tematização do processo de constituição da modernidade.

A grosso modo, podemos dizer que tal rememoração conhece três grandes movimentos. O primeiro diz respeito á tentativa de recuperação do mundo grego como alternativa para os impasses e cisões da modernidade. Tentativa de recuperação de uma “razão ética”, para usarmos uma expressão de Robert Pippin, que terminará na impossibilidade trágica de sua realização (tal é o sentido do comentário hegeliano de Antígona). Lembremos, a este respeito, como foi particularmente forte para a geração de Hegel, principalmente após a crítica rousseauista à inautenticidade das formas modernas de vida, a tentativa de construir uma alternativa à modernidade através recurso a formas de vida e modos de socialização próprios à uma Grécia antiga idealizada e paradigmática. Neste sentido, não é estranho que a reflexão hegeliana sobre a eticidade comece a partir de uma discussão a respeito da polis grega, ou melhor, a respeito da maneira com que os modernos compreendiam o poder absoluto de unificação que imperava na polis. Pois a questão fundamental aqui: “Não está vinculada aos detalhes históricos da vida grega per se mas diz respeito a saber se a vida grega idealizada por muitos de seus contemporâneos [de Hegel] pode, em seus próprios termos, contar como alternativa genuína para a vida moderna”[16]. Daí porque Heidegger irá compreender claramente que, para Hegel: “A filosofia dos gregos [e suas formas de vida] é a instância de um ‘ainda não’. Ela não é ainda a consumação mas, contudo, é unicamente concebida do ponto de vista desta consumação que se definiu como o sistema do idealismo especulativo”[17].

            O segundo grande movimento no interior deste processo de rememoração histórica que visa fundamentar reflexivamente um conceito positivo de razão enraizado em práticas sociais diz respeito à aquisição moderna da certeza do absoluto dilaceramento da consciência devido, exatamente, à impossibilidade de realização da eticidade, ou seja, à impossibilidade de indexação não-problemática entre estruturas normativas de validade e disposições intencionais singulares. É a partir deste problema de fundo que devemos compreender o sentido deste longo trajeto, presente em toda subseção “O mundo do espírito  alienado de si” que parte da análise da ética aristocrática da honra, passa pelas relações da aristocracia com a monarquia absoluta a fim de demonstrar como a modernidade adquire a consciência do absoluto dilaceramento da consciência e da absoluta ruína da eticidade nas relações sociais de lisonja e cortesia que marcaram a vida aristocrática pré-revolução francesa, de onde se segue a importância, dada por Hegel, ao comentário do texto de Diderot: O sobrinho de Rameau. As duas últimas subseções desta parte, “O iluminismo” e “A liberdade absoluta e o terror” visam dar conta da tentativa e desdobramento do esforço revolucionário moderno de recuperação de uma “razão ética”.

Por fim, temos a tematização da recompreensão da estrutura da subjetividade através do advento do idealismo alemão. Desta forma, Hegel tenta colocar em marcha a idéia de que as expectativas e aspirações de liberdade, de auto-determinação subjetivas e de auto-certificação da modernidade depositadas na revolução francesa seriam realizadas pelo idealismo alemão. Pois a guinada em direção á moralidade presente na última subseção da seção “Espírito” não significa simplesmente um recolhimento em direção à interioridade da subjetividade enquanto espaço possível de reforma moral. Trata-se, na verdade, de insistir que, através da problematização da moralidade, o idealismo alemão teria aberto as portas para a compreensão de que o fundamento das práticas e processos de racionalização que queiram realizar as aspirações modernas está na consciência-de-si, isto no sentido de que apenas uma problematização do conceito de consciência-de-si pode fornecer a reformulação dos princípios lógicos que guiam a ação dos sujeitos na realização de instituições e práticas sociais à altura das expectativas próprias à modernidade. A guinada em direção á moralidade permitirá à Hegel demonstrar a ausência de vínculos entre subjetividade e princípio de identidade, abrindo, com isto, caminho para a realização de um conceito de eticidade capaz de dar conta das aspirações de reconhecimento de sujeitos não-substanciais.

No entanto, é no interior do segundo momento, ou seja, no interior desta reflexão sobre o dilaceramento absoluto da consciência em relação a estruturas normativas que aspiram validade universal que Hegel introduz considerações importantes sobre a linguagem em sua função expressiva. Pela primeira vez em toda a Fenomenologia do Espírito, Hegel apresenta claramente a linguagem como elemento de reconhecimento. São tais considerações que servirão de preâmbulo para o comentário de O sobrinho de Rameau com sua estetização das relações de lisonja. Diz Hegel:

 

Com efeito, a linguagem é o Dasein do puro Si como Si (das Dasein des reinen Selbsts, als Selbsts), pela linguagem entra na existência a singularidade sendo para si da consciência-de-si, de forma que ela é para os outros (...) Mas a linguagem contém o Eu em sua pureza, só expressa o Eu, o Eu mesmo. Esse seu Dasein é, como Dasein, uma objetividade que contém sua verdadeira natureza. O Eu é este Eu mas, igualmente, universal. Seu aparecer é ao mesmo tempo sua exteriorização (Entäusserung) e desaparecer e, por isto, seu permanecer na universalidade (...) seu desaparecer é, imediatamente, seu permanecer[18].

 

Ou seja, após ter afirmado, na seção anterior da Fenomenologia, que a linguagem era uma exteriorização na qual o indivíduo não se conservava mais, abandonando seu interior a Outro, Hegel afirma agora o inverso, ou seja, que a linguagem é o Dasein do Si como Si. No entanto, esta contradição é apenas aparente, pois a linguagem perde seu caráter de pura alienação quando compreendemos o Eu não como interioridade, mas como aquilo que tem sua essência no que se auto-dissolve. Ao falar do Eu que acede à linguagem como um universal, Hegel novamente se serve do caráter de dêitico de termos como Eu, isto, agora etc., tal como fora o caso na seção dedicada à certeza sensível. “Eu” é uma função genérica de indicação a qual os sujeitos se submetem de maneira uniforme. Ao tentar dizer este Eu ]particular, a consciência diz apenas a estrutura de significante puro do Eu, esta mesma estrutura que o filósofo alemão chama de: “nome como nome”. Uma estrutura que transforma toda tentativa de referência-a-si em referência a si ‘para os outros’ (referência através do universal social da linguagem) e como um Outro (já que implica em alienação da particularidade). Por isto, o Eu enquanto individualidade só pode se manifestar como o que está desaparecendo em um Eu universal. Esta era a maneira hegeliana de introduzir uma temática fundamental a respeito da necessidade da despossessão de si, do sacrifício das representações naturais do si mesmo enquanto  condição para a formação da consciência-de-si. Alienação formadora que já fora tematizada à ocasião das considerações hegelianas sobre o trabalho. A este respeito, Hegel chega a afirmar que o verdadeiro processo de formação é o sacrifício que: “só é completo quando chega até a morte”, sacrifício no qual a consciência se abandona “tão completamente quanto na morte, porém mantendo-se igualmente nesta exteriorização”[19]. Uma morte cuja melhor formalização é esta linguagem formadora da despossessão de si, linguagem da morte das “ilusões do imediato”.

O ponto determinante consiste no fato de Hegel reconhecer em O sobrinho de Rameau e em sua ironia que tudo dilacera uma das figurações possíveis de força formadora da linguagem. Reconhecimento inusitado pois nos obriga a afirmar que a experiência do sobrinho de Rameau tem um conteúdo de verdade. Como se seu cinismo fosse, no final das contas, momento fundamental no interior do processo doloroso de formação da consciência-de-si. Mas este conteúdo, como veremos, não é fiel à sua forma [irônica]. Por isto, tal experiência deverá nos levar para além dela mesma.

A configuração desta experiência estetizada pelo O sobrinho de Rameau ficará mais clara se levarmos em conta que o texto de Diderot funciona, a seu modo, como momento inaugural do advento da consciência das interversões das aspirações modernizadoras do Esclarecimento. Como dissera anteriormente, foi Foucault quem compreendeu isto claramente. Em História da loucura, ele não teme em afirmar que o texto de Diderot cortava um longo movimento de exclusão ao mostrar a desrazão aparecendo no coração mesmo das operações da razão, mostrar uma certa maneira de ser irracional por seguir a razão até o ponto em que ela confessa seu contrário, em que ela se desfaz na “pantomima do não-ser”. Daí uma afirmação como: “A aventura de O sobrinho de Rameau conta a instabilidade necessária e a reviravolta (retournement) irônica de toda forma de julgamento que denuncia a desrazão como lhe sendo algo exterior e inessencial”[20]. Mas o que seria esta desrazão que é, ao mesmo tempo, o mundo racional e “este mesmo mundo separado de si apenas pela tênue superfície da pantomima”[21]? Ou seja, a desrazão como a imagem do mundo racional, mas cujo fundamento está marcado pela ironização.

Certamente, Foucault compreende O sobrinho de Rameau como caso privilegiado do que ele chamará posteriormente de “transgressão” da linguagem. Uma transgressão cuja figuração possível poderá ser descrita como a ato de: “submeter uma palavra, aparentemente conforme ao código reconhecido, a um outro código cuja chave é dada nesta própria palavra; de maneira que esta se desdobra no interior de si mesma”[22]. Uma palavra que, ao mesmo tempo, segue o código e transgride o código, anulando, com isto, toda possibilidade de submeter, de maneira segura, a mensagem ao código. Pois isto implica em dizer que a enunciação do sobrinho é um caso que, ao mesmo tempo, submete-se e não se submete à norma. A enunciação, ao mesmo tempo, preenche e não preenche exigências normativas de validade. No entanto, o que isto poderia querer dizer exatamente? Este ponto ficará claro se voltarmos nossos olhos ao eixo da peça de Diderot, a saber, o movimento especular entre os dois protagonistas da peça, movimento marcado pela partilha problemática a respeito da determinação do sentido da experiência cínica.

 

Dois cinismos

 

Há uma complexa história envolvendo a recuperação dos motivos do cinismo antigo pelo Iluminismo francês. Uma recuperação que se inscreve no interior do movimento de confrontações a respeito do legado e das múltiplas recepções do cinismo. Esta recuperação do cinismo pelo Iluminismo, que chegou a transformar Diógenes em herói popular na iconografia da Revolução francesa, deve ser compreendida no quadro de constituição dos móbiles da crítica iluminista. A parresia cínica com seu sarcasmo em relação aos preconceitos sexuais, religiosos, morais, políticos e à autoridade aparecerá como ponto de orientação da crítica no iluminismo. Por outro lado, a autarkeia, figura privilegiada da crença na autonomia do indivíduo, assim como o cosmopolitismo cínico e um certo naturalismo problemático, funcionarão como horizontes reguladores para a ação iluminista em suas aspirações críticas.

            Se voltarmos à Grécia, veremos o cinismo como uma filosofia eudemonista  fundada na crítica ao convencionalismo da moral que guia o nomos e na tentativa de recuperação de uma autenticidade do agir que apela ao recurso à physis. Ou seja, o cinismo visava fornecer a figura privilegiada de uma crítica ao nomos e à cultura através de um programa de retorno à uma moral naturalista que toma a animalidade como padrão regulador da conduta. Conhecemos, por exemplo, a anedota que diz: “Tendo visto um dia um rato que corria sem se preocupar em encontrar uma morada, sem temer a obscuridade e sem desejo algum de tudo o que transforma a vida em algo agradável, Diógenes o tomou por modelo e encontrou remédio em seu despojamento”[23]. Isto permite ao cínico fundar a idéia de virtude na simplicidade dos costumes, na limitação das necessidades e, principalmente, na negação direta do vínculo aos objetos sensíveis. Para o cinismo, a virtude era uma questão de apatia e desafecção, ou seja, indiferença absoluta em relação aos objetos. Indiferença que encontramos, por exemplo, na afirmação de Antístenes presente no Banquete de Xenofonte: “E se, por acaso, meu corpo sentir a necessidade dos prazeres do amor, a primeira que vier será suficiente, a tal ponto que as mulheres das quais me aproximo acolhem-me com transporte pela simples razão de que ninguém consente em ter comércio com elas”[24]. Desta forma, o retorno à physis pode fundamentar a autarkeia dos que se reconciliam com o curso de um mundo estabelecido para além das exigências da polis[25].        

            No entanto, esta crítica cínica a uma cultura compreendida como degradação da natureza foi percebida, em várias ocasiões, como entificação de um discurso amoralista. Isto fez com que os próprios cínicos, principalmente à ocasião da recuperação romana, se dedicassem à separação entre um “falso” e um “verdadeiro” cinismo (basta lembrar do combate de Luciano contra os falsos cínicos). Uma explicação possível para o fato desta duplicidade na recepção do cinismo pode ser fornecida se nos atentarmos para certos problemas na fundamentação de uma moral naturalista.

Neste sentido, lembremos do significado em fundar a autarkeia cínica através da posição da apatia. Fundar a dominação de si na negação direta dos vínculos privilegiados a objetos sensíveis equivale a recorrer a um conceito negativo de liberdade. Digamos que a liberdade cínica não é “liberdade de fazer determinadas ações”, mas principalmente “liberdade em relação a certos objetos e paixões”. Este conceito negativo de liberdade nos demonstra como a physis, enquanto plano de imanência que permite a orientação da ação virtuosa, aparece principalmente como a negação do nomos. Para que a physis fornecesse um princípio positivo e autônomo de orientação da ação, seria necessário algo como uma filosofia da natureza como base para a filosofia moral, mas isto falta ao cinismo. Várias anedotas dão conta desta orientação moral como negação simples do nomos. Lembremos, por exemplo, da declaração de Diógenes a respeito de seu hábito de sempre entrar no teatro pela porta de saída: “Eu me esforço de fazer na minha vida o contrário de todo mundo”[26]. Mas, se a physis é apenas o Outro da vida social, então ela será apenas uma abstração capaz de englobar disposições muitas vezes contraditórias entre si, pois variáveis de acordo com a modificação subjetiva da perspectiva de avaliação do que pode se pôr como negação simples do nomos. Impasse que Hegel tinha em vista ao lembrar que: “Diógenes no seu tonel está condicionado pelo mundo que procura negar”[27], ou seja, que a verdadeira essencialidade de sua conduta é fornecida por aquilo que aparece como limite à sua dominação de si. Esta variabilidade das perspectivas de avaliação implica em instabilidade na determinação dos preceitos morais. O que abre as portas para uma discussão infinita ruim entre “falso” e “verdadeiro” cinismo.

            O fato é que esta discussão a respeito de um falso e de um verdadeiro cinismo atravessou a recepção medieval e renascentista do legado cínico. O elogio da pobreza, da autarkeia, e a crítica ao caráter heterônomo das obrigações morais da vida social foram motivos para a recuperação do cinismo pela filosofia moral do cristianismo medieval (Erasmo, Morus). No entanto, não foram poucos os teólogos cristãos que compreenderam como simples figura do amoralismo a crítica cínica com sua ausência de vergonha (verecundia) e com seu desprezo pelas regras sociais. A possibilidade de aproximação entre a moralidade cristã e o cinismo chegou mesmo a ser determinada, em alguns casos, como heresia (vide o caso dos Turlupins). Não deixa de ser desprovido de interesse lembrar ainda que tal dicotomia na recepção do cinismo chegou até a contemporaneidade. Basta lembrarmos do projeto de Peter Sloterdijk em recuperar o pretenso potencial disruptivo da crítica cínica aos costumes e á moral, isto a fim de contrapô-lo ao cinismo próprio à ideologia do capitalismo contemporâneo.

 

Diógenes e a lanterna de Diderot

 

            Como não poderia deixar de ser, esta clivagem continuou como pano de fundo para a recuperação do cinismo pelo Iluminismo francês. No entanto, nas mãos de Diderot, tal clivagem será usada de maneira bastante especifica, ou seja, para tematizar uma possibilidade sempre aberta de interversão do trabalho crítico do Esclarecimento em seu contrário, ou seja, na preservação do que deveria ser descartado.

Foi dito anteriormente que a recuperação do cinismo fora importante para a constituição dos móbiles da crítica iluminista. No entanto, esta aproximação entre Iluminismo e cinismo não foi um processo simples, já que também se inscrevia em uma economia de desqualificação das Luzes pelos anti-iluministas. Neste sentido, a posição ambígua de Rousseau (que chegou a ser chamado por Kant de Diógenes sutil devido à sua moral de forte inspiração naturalista e por Frederico da Prússia de membro da seita de Diógenes devido a seu modo de crítica da cultura) e de Voltaire em relação ao cinismo podem ser explicadas. Já D´Alembert tinha uma preferência bem conhecida pelo cinismo, onde ele reconhecia o ideal de autonomia. “Toda era”, dirá D´Alembert, “e, principalmente, a nossa precisa de um Diógenes”.

            No entanto, é Diderot quem ocupa um lugar especial nesta discussão, não apenas pelas afinidades evidentes da sua escrita com a sátira menipéia, mas sobretudo por sua reflexão a respeito da herança cínica nas aspirações críticas do iluminismo. De fato, o sarcasmo cínico diante das imposturas do poder aparece para Diderot como método e a moral naturalista aparece como um certo horizonte de reconciliação. O que pode nos explicar porque o artigo da Enciclopédia dedicado aos cínicos termina com um elogio a estes “entusiastas da virtude” capazes de “transportar para o meio da sociedade os costumes do estado de natureza”[28]. Mas Diderot compreendeu, na aurora das Luzes, como uma crítica inspirada nos móbiles do cinismo grego poderia nos levar a um impasse. Neste sentido, O sobrinho de Rameau é, sem dúvida, um documento central. Pois podemos ler O sobrinho de Rameau como o exemplo mais claro da afirmação de Niehues-Pröbsting: “No cinismo, o Iluminismo descobre o perigo de uma razão pervertida, razão transformando-se em irracionalidade, razão frustrando-se devido às suas expectativas muito exaltadas. O iluminismo conscientiza-se desta ameaça através de sua afinidade com o cinismo. A reflexão sobre o cinismo providencia uma peça necessária de auto-reconhecimento e auto-crítica”[29].

            Notemos, no entanto, que a peculiaridade de Diderot é não organizar o embate entre falso cinismo e crítica inspirada no “verdadeiro” cinismo a partir da figura da exterioridade indiferente. Diderot procura criar uma situação na qual nos deparamos não apenas com uma perversão da crítica, mas com uma interversão da crítica através de sua própria realização. Ou seja, não se trata apenas de mostrar a inefetividade de uma moralidade que procura orientar-se a partir da aplicação de critérios normativos abstratos, expondo assim o caráter formal dos valores que guiam a crítica ilustrada. Trata-se de mostrar que o fundamento de tal moralidade pode acomodar-se a disposições absolutamente contrárias umas em relação às outras, sem que isto seja alguma forma de “contradição performativa”. Atentemos para a peça a fim de compreender do que trata este modo de interversão.

A estrutura da peça é bem conhecida. Dois personagens encontram-se no Café Regence, perto do Palais Royal: um (eu) é honnête homme e filósofo esclarecido com aspirações moralizantes, outro (ele) é Jean-François Rameau, músico medíocre, inconstante, amoral, sobrinho do grande Jean-Phillipe Rameau e figura sempre presente nos salões da nobreza devido ao seu poder infinito de bajulação. A peça inteira é um grande diálogo entre os dois, no qual é questão da vida dos salões parisienses, das querelas musicais da época e, principalmente, da maneira com que o sobrinho realiza de maneira invertida todos os argumentos morais do filósofo esclarecido[30]. Daí porque o texto da peça é todo construído a partir da dinâmica de espelhamento contínuo.

            Este espelhamento indica um confronto perpétuo articulado em solo comum, já que tanto a posição do sobrinho quanto a posição do filósofo são articuladas sob a égide do cinismo. O sobrinho chega a dizer, no inicio da peça, que: “estaria melhor entre Diógenes e Frinéia, pois sou atrevido como o primeiro e freqüento com gosto a casa dos outros”[31]. No final da peça, o filósofo procura inverter a direção e convocar o cinismo para servir de base de crítica ao amoralismo cínico do sobrinho: “Há um ser dispensado da pantomima. É o filósofo [cínico] que nada tem e nada demanda”[32]. Como se, novamente, um falso e um verdadeiro cinismo estivessem postos em rota de confrontação. O que corrobora aquilo que Diderot havia escrito no capítulo da Enciclopédia dedicado ao cinismo: “os falsos cínicos foram um populacho de bandidos travestidos de filósofos, e os cínicos antigos, pessoas muito honestas que não merecem senão uma censura à qual geralmente não se encoraja: é a de terem sido entusiastas da virtude”.

            No entanto, não é apenas sobre a compreensão do cinismo que funda tal espelhamento. Vários outros pontos aparecem na peça a fim de reforçar a noção do sobrinho como uma certa imagem invertida do filósofo. Ele tem a mesma formação que o filósofo esclarecido (lê Teofrasto, La Bruyère e Molière). Os dois partilham o mesmo ceticismo em relação aos valores estabelecidos da vida social. “Defender a pátria?”, pergunta, por exemplo, o filósofo, “Vaidade. Não há mais pátria. De um pólo a outro, eu só vejo tiranos e escravos” [33], responde Rameau. Acrescente-se a esta lista o mesmo desprezo em relação à moral sexual e aos valores religiosos. Proximidades ainda mais acentuadas se lembrarmos que várias afirmações e posições de Rameau são partilhadas pelo próprio Diderot em outros escritos, como é o caso dos julgamentos musicais de Rameau contra seu tio. É tal espelhamento que leva Diderot a afirmar: “Ó louco, arquilouco, como é possível que na sua cabeça ruim, encontre-se idéias tão justas misturadas com tanta extravagância”[34].

            De maneira esquemática, podemos dizer que a peça começa a partir da defesa, feita por Rameau, de exigências de satisfação irrestrita e da conseqüente crítica à tentativa de avaliar a existência a partir de valores morais. O filósofo procura contrapor-se tentando fundamentar valores morais de aspiração universalizante. Rameau passa à crítica ao filósofo fazendo profissão de fé realista e afirmando que a consciência imersa nas condições cotidianas de interação social não regula a ação a partir de tais valores. O filósofo reconhece a excepcionalidade da conduta virtuosa. Coisa de gente bizarra, chega a dizer. Isto abre as portas para que Rameau lembre: “Você crê que a mesma felicidade é feita para todos. Que visão estranha!”[35]. Ao invés de tentativas de universalização de uma moralidade que, ao ser aplicada à vida social, só serve como máscara de interesse particulares, melhor seria zombar destas determinações normativas que a razão procura enunciar. O filósofo tenta salvar o fundamento de valores morais ao insistir na existência de uma hierarquia entre prazeres sensíveis e prazeres da virtude. O que Rameau replica novamente ao mostrar que o vício não implica em perda da autonomia. Não se é mais autônomo guiando a conduta a partir da virtude e reibaixando os prazeres sensíveis.

Desta forma, o filósofo é obrigado a afirmar: “Havia em tudo isto muita coisa que se pensa, a partir das quais se conduz mas que não se diz. Ele reconhecia vícios que outros tem, mas não era hipócrita. Ele não era nem mais nem menos abominável que eles, mas apenas mais franco e mais conseqüente, e algumas vezes profundo na sua depravação”[36]. Ou seja, não se tratava de hipocrisia no caso de Rameau. O que não deve nos surpreender. Afinal, a hipocrisia é uma das múltiplas máscaras da insinceridade dos que escondem a particularidade do interesse através da universalidade do dever; máscara que cai através de uma crítica capaz de desvelar os verdadeiros interesses por trás da aparência de universalidade, confrontando assim o “texto ideológico” com o “texto recalcado” ao pontuar os nós sintomais nos quais se lê a contradição performativa entre os procedimentos de justificação e o domínio da ação. No entanto, isto não pode dar conta da posição de Rameau, fundada toda ela na franqueza da enunciação da verdade, nesta “franqueza fora do comum”[37] que faz tremer o filósofo por não ver seguir-se desta enunciação a reorientação da conduta que normalmente poderíamos esperar.

 

Nada pode dizer-lhe [a consciência simples e honesta do filósofo] que ele mesmo [Rameau] não saiba e não diga (...) essa consciência [o filósofo], enquanto supõe contradizer o conteúdo do discurso do espírito, apenas o resumiu de uma maneira trivial, carente de pensamento (gedankenlos)[38].

 

Como nos lembra Rubens Torres Filho: “O cínico adere a seu discurso a tal ponto que não mente: não fala contra a verdade, pois não fala em nome dela; não é moral nem imoral, pois não opera sobre o pressuposto dessa distinção, não é hipócrita: não esconde seu ser verdadeiro, pois não é nada, ‘ no fundo’, não tem nenhuma essência”[39]. A sua maneira, Diderot já nos coloca, na aurora das Luzes, diante de uma “falsa consciência esclarecida”, alguém que fala como um aufklärer e age como uma falsa consciência, clivagem que levou Hegel a ver aqui o exemplo supremo de uma “consciência dilacerada”, mas sem a tragédia de uma consciência infeliz.

Mas devemos insistir na idéia de que estas confrontações entre Rameau e o filósofo não são meras contraposições. Podemos falar, neste caso, em interversão porque as duas posições, longe de serem simplesmente contrárias, fundamentam seus critérios de julgamento e crítica no mesmo solo. De uma certa forma, os dois partilham a temática cínica da crítica ao nomos em nome da recuperação da physis. Eles falam em nome do mesmo fundamento. “O que é uma boa educação”, diz Rameau, “a não ser aquela que conduz a todas as formas de gozo, sem perigo e sem inconveniente”[40]. Neste caso, a physis aparece como espaço de retorno a um gozo dos sentidos impossibilitado pela moralidade: “beber bom vinho. engalfinhar-se com belas mulheres, dormir em leitos bem macios: o resto é vaidade”[41]. Como se o sobrinho apenas atualizasse esta crítica ao nomos que Cálicles faz, diante de Sócrates: “este que quiser viver corretamente sua vida deve, de um lado, deixar suas paixões serem as maiores possíveis e não mutilá-las; ser capaz, por outro lado, de colocar a serviço destas paixões as forças de sua energia e inteligência. Em suma, dar a cada desejo a plenitude da satisfação (...) Sensualidade, licença, liberdade sem reservas: eis a virtude e a felicidade! Quanto ao resto, quanto a estas belas convenções humanas que estão em oposição com a natureza, isto é apenas falatório e não tem valor algum”[42].

Contra esta physis que legitima uma ética do excesso e do gozo, o filósofo procura retomar a moral naturalista cínica articulada a partir da apatia e da dominação de si. E, de fato, este cinismo, o sobrinho parece desconhecer. O filósofo dirá: “Há um ser que se dispensa da pantomima [e da lisonja]. É o filósofo [cínico] que não tem nada e não pede nada (...) Diógenes zombava das necessidades”[43]. Pois, como sabemos, o recurso cínico à physis significa “restrição”, em especial, restringir o desejo àquilo que é prescrito pela natureza. Mas o filósofo se verá obrigado a entrar continuamente em contradição devido ao  caráter absolutamente abstrato, a respeito do qual já falamos anteriormente, desta natureza negativa. Isto o leva, em vários momentos, a abraçar as posições do próprio Rameau: “Eu não desprezo os prazeres dos sentidos”, dirá o filósofo, “Tenho também um palácio e ele é embelezado por iguarias delicadas e de um vinho delicioso. Tenho um coração e olhos, e amo ver uma bela mulher. Amo sentir em minhas mãos a harmonia e delicadeza de sua garganta, pressionar seus lábios contra os meus, alimentar a volúpia em seus olhos e expirá-la entre meus braços”[44]. Como se o filósofo ilustrado mostrasse com isto a consciência de que a fundamentação da crítica em uma moral naturalista só pode nos levar a uma constante interversão. É neste sentido que devemos compreender a colocação de Hegel:

 

Esse espírito [próprio ao sobrinho de Rameau] é esta absoluta e universal inversão e alienação (Verkehrung und Entfremdung) da efetividade e do pensamento; a pura cultura. O que neste mundo se experimenta é que não tem verdade nem as essências efetivas do poder e da riqueza, nem seus conceitos determinados, bem e mal, ou a consciência do bem e a consciência do mal, a consciência nobre e a consciência vil; senão que todos esses momentos se invertem, antes, um no outro, e cada um é o contrário de si[45].

 

Esta absoluta e universal inversão e alienação da efetividade é fruto de um certo descompasso do fundamento consigo mesmo, formalismo do fundamento que faz com que toda tentativa de articulação entre Idéia e efetividade seja, por sua vez, marcada pela experiência da inadequação. Como se os problemas nos modos de indexação entre fundamento e efetividade fossem figuras da instabilidade do próprio fundamento. De onde se segue o diagnóstico de Paulo Arantes: “O vazio, a vaidade tantas vezes salientada por Hegel, da consciência dilacerada do sobrinho, que carece da experiência perversa – a nos fiarmos na tradução de Verhkerung por perversão, proposta por Hyppolite – da vacuidade de todas as coisas para forrar sua própria consciência, espelha-se no formalismo discursivo, bem falante da raciocinação”[46].

Devido a esta indeterminação no próprio fundamento, Diderot pode estetizar, através de O sobrinho de Rameau, um movimento de ironização resultante da inversão dos nossos modos de indexação entre critérios normativos e consequências da ação, sem que isto implique necessariamente em uma contradição performativa, ou seja, em uma contradição entre aquilo que faço e que aquilo que digo. Ironização significa assim ruptura entre expectativas de validade e determinações fenomenais, ruptura que é uma contradição posta que visa aparecer como contradição resolvida. Contradição resolvida no realismo cínico de quem diz: “Estive um dia à mesa de um ministro espirituoso do Rei de França, bem, ele nos demonstrou, claro como um e um são dois, que nada era mais útil ao povo que a mentira, nada mais nocivo que a verdade”[47]. Esta inversão dos modos de indexação entre critérios normativos e conseqüências da ação é uma perspectiva privilegiada de abordagem do problema contemporâneo que definimos como “cinismo”[48]. De qualquer forma, podemos mesmo fazer uma comparação e dizer que, da mesma forma como Diderot colocou um cínico para inverter as aspirações fundacionistas do Iluminismo, veremos, mais a frente mas através de estratégias distintas, Adorno e Lacan colocarem Sade para inverter as aspirações fundacionistas da filosofia transcendental.

Mas, dito tudo isto, qual será exatamente a crítica de Hegel? Ela está sintetizada da seguinte forma:

 

Enquanto conhece o espiritual pelo lado da desunião e do conflito (Widerstreits) – que o Si unifica em si -, mas não o conhece pelo lado dessa união, sabe muito bem julgar o substancial, mas perdeu a capacidade de apreendê-lo (zu fassen). Essa vaidade necessita pois da vaidade de todas as coisas para se proporcionar, a partir delas, a consciência do Si: ela mesmo portanto produz essa vaidade e é a alma que a sustém (...) Esse Si é a natureza dilacerada em si mesma (die sich selbst zerreissende Natur) de todas as relações e o dilacerar consciente delas (...) Naquela vaidade todo o conteúdo se torna um Negativo, que não se pode mais apreender (gefasst) positivamente. O objeto positivo é só o puro eu mesmo, e a consciência dilacerada é, em si, essa pura igualdade-consigo-mesma (selbstgleichheit) dessa consciência-de-si que a si retornou[49].

 

Há dois elementos importantes aqui. Por um lado, Hegel afirma que a consciência conhece a efetividade como espaço de desunião e inversão constante de determinidades. Ela se vê diante de uma realidade incapaz de responder a expectativas de validade com aspirações universalizantes e por isto passa à “dissolução irônica do determinado como do substancial em si”. No entanto, esta consciência não apreende o que conhece, pois não vê o conflito, que permite a inversão de tudo em seu contrário, como o resultado de uma desarticulação dos princípios de orientação do pensar da própria consciência. De uma certa forma, como nas críticas hegelianas ao ceticismo, a consciência não leva tal enunciação da contradição e do conflito suficientemente longe. Pois ela continua a julgar a efetividade a partir de critérios “naturalizados” de determinação do sentido de operações como a contradição, a identificação e a identidade. A dissolução da determinidade é feita em nome de uma noção de identidade que só tem realidade reguladora. Tal como no ceticismo, o cinismo é continuação do princípio de identidade por outros meios. E neste ponto, Hegel recorre novamente a sua crítica padrão contra a ironia. Crítica que consiste em afirmar que a negatividade da dissolução irônica das determinidades é feita graças à posição do Eu como único objeto positivo.

Uma das maneiras de compreendermos o que Hegel tem em vista poderia ser insistindo que a consciência mede a experiência a partir de um princípio de unidade e de identidade imediata derivado do processo de auto-determinação reflexiva do Eu. A inadequação entre Idéia e efetividade é inadequação apenas para uma certa noção de identidade. Daí porque Hegel poderia falar que a consciência conhece mas não apreende qual é o verdadeiro sentido das experiências de dilaceramento que ela tenta formalizar através da ironia.

            No entanto, tais colocações soam aparentemente estranhas. Pois não é certo que o sujeito irônico conserve uma certa auto-identidade própria ao Eu para além da dissolução de toda substancialidade. Ao contrário, se voltarmos os olhos mais uma vez ao cinismo grego já veremos aí uma aparente problematização da noção de auto-identidade. Sabemos que a parresia cínica enquanto prática de formação daquele a quem o falar da verdade se endereça estava absolutamente indissociada do riso. O humor aparecia como a maneira correta de dizer aquilo que é da ordem da verdade, humor que inverte designações e que esvazia significações. O que nos explica porque as formas da transmissão filosófica dos cínicos estavam todas vinculadas a modos humorísticos.

Neste sentido, Bakhtin chega a ver, na forma humorística dos filósofos cínicos, as primeiras marcas do humor popular contra as instaurações do gênero épico: “É precisamente o humorista que destrói o gênero épico, e geralmente destrói toda distância hierárquica”[50]. No entanto, neste processo de destruição, até mesmo a fixidez da imagem de si, imagem construída no gênero épico através da identificação com um missão simbólica que deve ser assumida pelo sujeito, é abalada. Isto permite que o sujeito: “adquira a iniciativa ideológica e lingüística necessária para mudar a natureza de sua própria imagem”[51].

Isto é um dado que encontramos no próprio sobrinho de Rameau. “ Nada é mais dessemelhante dele mesmo do que ele mesmo”, dirá o filósofo. “Trata-se de um composto de altivez e baixeza, de bom senso e desrazão. É necessário que as noções de honesto e desonesto estejam estranhamente embaralhadas na sua cabeça”[52]. Ou seja, Rameau fornece uma imagem dilacerada de si, imagem irônica que não se acomoda a nenhum princípio de identidade. O próprio Hegel verá aqui as marcas de uma ironização absoluta que não é outra coisa que uma linguagem do dilaceramento de si na qual:

 

uma só e mesma personalidade (Persönlichkeit) é tanto sujeito quanto predicado. Mas estes juízo idêntico é, ao mesmo tempo, o juízo infinito; pois essa personalidade está absolutamente cindida, e o sujeito e o predicado são pura e simplesmente entes indiferentes que nada têm a ver um com o outro, a ponto de cada um ser a potência de uma personalidade própria[53].

 

Maneira hegeliana de afirmar que as determinações atributivas do predicado estão cindidas em relação à idéia que se aloja na posição de sujeito. É isto que Hegel tem em vista ao afirmar que o ser para-si se põe como objeto enquanto Outro, não que tenha outro conteúdo, mas seu conteúdo é o próprio Si em absoluta oposição. Em outro contexto, isto poderia ser a própria realização do conceito de espírito, até porque, esta cisão é consciente-de-si, ela não se dá mais às costas da consciência, e a infinitude da distância entre sujeito e predicado poderia ser manifestação de uma “negatividade infinita absoluta” que encontra enfim uma determinidade. No entanto, de uma forma muito peculiar, Hegel age como quem diz que esta cisão absoluta é apenas nostalgia de uma unidade bloqueada; unidade que continua a orientar os julgamentos da consciência.

 

Natureza e música

 

Neste ponto, podemos retornar ao texto de Diderot pela última vez. Pois o texto desenvolve-se em direção a uma certa conciliação inusitada que pode dizer muito a respeito do problema que Hegel tem em mente. Depois de uma longa série de confrontações que foi exposta anteriormente, Rameau e o filósofo encontram, quase ao final do texto, um terreno de concórdia. Ele está presente no campo dos julgamentos estéticos. Trata-se da discussão a respeito da música. Isto a ponto do filósofo afirmar: “Como é possível que com um tato tão fino, uma sensibilidade tão grande para as belezas da arte musical, você seja tão cego para as belas coisas em moral, tão insensível aos charmes da virtude?”[54]. Podemos mesmo dizer que as digressões sobre música não são extemporâneas ao embate central do texto, mas nos revelam um fundamento não problemático presente no solo estético. Mas este terreno da crítica estética fica como promessa não realizada na efetividade da vida social. O filósofo gostaria de fundar julgamentos morais a partir da natureza recorrendo, com isto, à transformação de julgamentos estéticos em base para a racionalização de julgamentos morais. Pois, através da estética, a ordem natural aparece como conceito normativo.

Lembremos como, ao falar da música italiana, o sobrinho dirá : “Que verdade! Que expressão!”[55]. Mais a frente, ele advertirá: “Creia em tudo o que disse, pois é a verdade”[56], E ainda: “ O verdadeiro, o bom, o belo têm seus direitos”[57]. Que o vocabulário da expressividade da verdade saia da boca deste anti-filósofo cínico, eis algo que deve surpreender. Ainda mais porque durante toda a digressão sobre a música, os pólos invertem-se no interior da peça. Ao perguntar: “qual o modelo do músico quando ele faz um canto?”, o filósofo reconhece sua inabilidade para responder à questão e ouve atentamente a intervenção segura do sobrinho que irá dar uma aula sobre “a verdade em música”, pois é do “canto verdadeiro”, do “sublime” que será questão na intervenção do sobrinho.

 E o que diz o sobrinho? Diderot serve-se aqui do sobrinho para dar vazão à sua posição a respeito da querela que contrapunha Jean-Phillipe Rameau e defensores da opera italiana como Rousseau e Grimm. Grosso modo, trata-se de uma contraposição entre, de um lado, uma noção de modernidade musical vinculada ao primado da harmonia e das regras estritas de uma progressão harmônica derivada da teoria fisicalista do som, harmonia que abria as portas para uma polifonia contrapontística controlada pelo centro harmônico e para uma definição de estruturação da forma musical absolutamente autônoma em relação a tudo o que seria extra-musical; de outro, uma reação que insistia no primado da melodia e da simplicidade monofônica inspirada no canto. Posição rousseauista que Dahlhaus caracterizou bem: “Um sentimentalismo que ama ver-se estimulado pela música, um racionalismo que quer programas, uma pintura musical na música instrumental e a nostalgia de uma antiguidade que se opõe à polifonia moderna, confusa e savant, uma simplicidade tocante da monofonia grega – eis os compostos da estética musical de Rousseau”[58].

Para Rousseau, tratava-se de, através da defesa da centralidade da melodia, sustentar a estrutura mimética da racionalidade musical. Mimetismo entre música e a expressão natural da linguagem com suas entonações e acentos. Isto o permite vincular a música à uma pedagogia da arte capaz de servir de veículo de formação moral por recuperar o vínculo entre natureza e cultura[59]. De maneira surpreendente, é a esta vertente que o sobrinho de Rameau se vinculará (neste sentido, contra seu tio). A verdade da procura da autenticidade que se perdeu no interior das práticas sociais. Lembremos por exemplo do que diz Rameau sobrinho a respeito da questão: “qual é o modelo da música e do canto?”: “É a declamação (...) quanto mais esta declamação será forte e verdadeira, quanto mais o canto que a ela se conforma cortá-la em um maior número de ponto, mais o canto será verdadeiro e belo”[60].

            Estas não parecem palavras de um cínico desencantado. Mas ela nos revela que o impulso cínico de ironização absoluta das condutas pode conviver com uma nostalgia da verdade e da identidade como expressão imanente que se guarda na arte. Talvez isto nos permita ver no cinismo não exatamente um amoralismo, mas uma espécie de hiper-moralismo que reconhece sua impossibilidade em se realizar no campo da convivência social e que, com isto, pode voltar-se, por exemplo, para uma hiper-moralização da arte. O rousseauismo musical do sobrinho de Rameau, aliado ao seu “naturalismo” moral (resultante, na verdade, da transformação das relações predatórias do capitalismo em “história natural”), expõe, na dissociação de pólos, o caráter contraditório do recurso à natureza positiva enquanto fundamento da norma social[61]. É esta contradição que impulsiona a negatividade de Rameau. Uma negatividade que, por formalizar-se como ironização, tende a se realizar apenas como estetização da impossibilidade de identidade.

            Mas fica aqui uma questão maior: o que é uma ação que não se reduza à estetização da impossibilidade da identidade, nem recaia na posição da identidade (seja sob a forma do decisionismo e da soberania) e que reconheça a negatividade própria à subjetividade? Lembremos as críticas do jovem Marx criticando o caráter meramente formal (e, - por que não?- “irônico”) das reconciliações hegelianas que conservam contextos em crise de legitimação: “em Hegel, a negação da negação não é a confirmação da verdadeira essência, precisamente mediante a negação da essência aparente, mas a confirmação da essência aparente ou da essência alienada de si em sua negação ou a negação dessa essência aparente enquanto uma essência objetiva, habitando fora do homem e independentemente dele, e sua transformação no sujeito”[62]. Sustentação da aparência como aparência que não parece estruturalmente distante do que vimos a respeito dos processos de ironização. Resta saber o que Hegel teria a dizer sobre isto.

 

Bibliografia

 

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[1] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, autor de « A paixão do negativo : Lacan e a dialética » (São Paulo, Unesp, 2006).

[2] HEGEL, Fenomenologia, par. 7 ; Phänomenologie, p. 7

[3] KIERKEGAARD, O conceito de ironia, p. 226

[4] Neste sentido, este artigo começa lá onde um outro artigo do autor (Linguagem e negação : sobre as relações entre ontologia e pragmática em Hegel, Revista DoisPontos, 2006) termina. No primeiro artigo, tratou-se de demonstrar como a dialética era solidária de um conceito ontológico de negação que se fazia sentir na forma com que Hegel encaminhava problemas maiores vinculados à teoria da significação e à teoria da ação. Este conceito ontológico de negação poderia fornecer uma chave para a compreensão do caráter real da contradição no interior da filosofia hegeliana. Ficou em aberto, no entanto, a questão sobre os modos de apreensão e enunciação da contradição, condição para esclarecer como a contradição pode ser a forma das operações próprias do conceito em sua capacidade discursiva. Um modo privilegiado de formalização de constradições é a ironia. Besta lembrarmos da ironia como questão de eironeuesthai, ou seja, de pensar outra coisa do que se diz. Ou ainda desta definição de Aelius Donatus em sua Ars Grammatica que serviu de base para os estudos retóricos até a renascença : a ironia como tropo no qual o sentido real é oposto ao sentido aparente (tropos per contrarium quod conatur ostendens). O que nos leva ao problema da distinção entre conceitualização dialética e ironia.

[5] BEHLER, Irony and the discourse of modernity, p. 88

[6] Lembremos do que diz Schlegel: “Uma idéia é um conceito perfeito e acabado até a ironia, uma síntese absoluta de antíteses absolutas, alternância de dois pensamentos conflitantes que engendra continuamente a si mesmo” (SCHELGEL, O dialeto dos fragmentos, São Paulo, Iluminuras, 1997, p. 66).

[7] SCHLEGEL, O dialeto dos fragmentos, p. 27. Mesmo teóricos conteporâneos da ironia insistem nesta compreensão. « Ironia é transcendental », dirá Colebrook, « Ela apresenta o sujeito como fundamento ausente que nos permite pensar ou representar qualquer história ou natureza » (COLEBROOK, Irony, p. 141)

[8] idem, p. 25. Esta frase deve ser compreendida juntamente com tal colocação de Paul de Man sobre a ironia : “A linguagem irônica divide o sujeito em um eu empírico que existe em um estado de inautenticidade e um eu que existe apenas na forma de uma linguagem que afirma o conhecimento desta inautenticidade. Isto não é necessariamente feito em uma linguagem autêntica; conhecer a inautenticidade não é a mesma coisa que conhecer a autenticidade”(DE MAN, Blindness and insight, p. 214).

[9] HEGEL, Vorlesungen über die Ästhetik, p. 99

[10] ARANTES, Ressentimento da dialética, São Paulo, Paz e Terra, 1996, p. 33

[11] KIERKEGAARD, O conceito de ironia, p. 233

[12] CF. SLOTERDJIK, Crítica da razão cínica

[13] Este trabalho reconhece sua dependência em relação aos comentários sobre o recurso hegeliano a O sobrinho de Rameau tais como encontramos principalmente em ARANTES, Ressentimento da dialética, mas também em TORRES FILHO, Ensaios de filosofia ilustrada. Como seria supérfluo e tedioso indicar todos os momentos em que este trabalho apoiou-se nas elaborações dos dois autores, já que tais apoios são uma constante, optou-se por indicar logo de início este relação fundamental de dependência que perpassa as idéias aqui apresentadas. Dependência que, no caso de Paulo Arantes, é resultado natural de uma velha relação de admiração.

[14] HEGEL, Fenomenologia, par. 519

[15] Neste sentido, devemos admitir o Espírito hegeliano a partir de uma leitura des-inflacionada do ponto de vista metafísico. Vale a pena, neste ponto, seguir a definição de um comentador de Hegel que viu claramente isto: “Espírito é uma forma de vida auto-consciente, ou seja, uma forma de vida que desenvolveu várias práticas sociais a fim de refletir a respeito do que ela toma por legítimo/válido (authoritative) para si mesma no sentido de saber se estas práticas podem dar conta de suas próprias aspirações e realizar os objetivos que elas colocaram para si mesmas (...) Espírito não denota, para Hegel, uma entidade metafísica, mas uma relação fundamental entre pessoas que mediam suas consciências-de-si, um meio através do qual pessoas refletem sobre o que elas tomaram por válidos para si mesmas” (PINKARD, Hegel´s phenomenology : the sociality of reason, p. 9). Na verdade, já a leitura adorniana do conceito hegeliano de Espírito aponta para este ponto (ver, por exemplo, o capítulo Espírito do mundo e história natural in ADORNO, Negative Dialektik, Suhrkamp, Frankfurt, 1975)

[16] PINKARD, idem, p. 137

[17] HEIDEGGER, Hegel e os gregos, p. 50

[18] HEGEL, Fenomenologia,par. 508, Phänomenologie, p. 335

[19] HEGEL, Fenomenologia, par. 507, Phänomenologie, p. 333

[20] FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 434

[21] idem, p. 439

[22] FOUCAULT, Dits et écrits I, p. 444

[23] DIÓGENES LAÉRCIO, Vida, doutrina e sentenças de filósofos ilustres, p. 14

[24] XENOFONTE, Banquete, IV, 38

[25] Lembremos aqui que falar do cinismo grego é um exercício mais complexo do que pode parecer pois falta um acesso direto aos textos. Os textos canônicos de contato com o pensamento cínico ainda são recensões feitas por terceiros, a parte os textos de um cínico menor, Teles. Neste sentido, o sexto livro do Vida, doutrinas e sentenças de filósofos ilustres de Diógenes Laércio ainda é a grande referência; mas ele, por sua vez, é um recessão de anedotas de domínio público e fragmentos de textos cínicos. Na verdade, os textos cínicos que temos acesso hoje são principalmente da fase romana do cinismo que se inicia a partir do século I DC, como, por exemplo, os escritos de um sofista. Dion Crisostomos, de Favorinus, além das sátiras de Luciano (nas quais Menipo e Diógenes aparecem freqüentemente como protagonistas principais) e dos discursos do Imperador Juliano. Este estado das fontes impede um estabelecimento mais preciso dos contornos da filosofia cínica. Por outro lado, ele faz com que: “O estudo do cinismo, contrariamente ao estudo do platonismo, seja inseparável do estudo de sua recepção” (BRANHAM e GOULET-CASÈ, The cynics, p. 14).

[26] DIÓGENES LAÉRCIO, idem, p. 30

[27] HEGEL, Fenomenologia, par. 524, Phänomonologie, p. 345

[28] ENCICLOPÉDIE, volume IV, p. 198

[29] NIEHUES-PRÖBSTING, The modern reception of cynicism in BRANHAM e GOULET-CASÈ, The cynics, p. 333. Como dirá também Torres Filho a respeito da peça de Diderot : “a Ilustração morde sua própria cauda e gera seu Outro, mas sem que esse Outro, por ser gerado por ela, lhe seja necessariamente dócil” (TORRES FILHO, Ensaio de filosofia ilustrada, p. 69)

[30] Até porque, como nos lembra Peter Bürger, o problema central do livro consiste em saber : « se há realmente uma fundamentação racional da moralidade que não entre em conflito com os interesses do agente individual » (BÜRGER, The decline of modernity, p. 78)

[31] DIDEROT, Le neveu de Rameau, p. 49

[32] idem, p. 129

[33] idem, pp. 75-76

[34] idem, p. 69

[35] idem, p. 75

[36] idem, p. 119

[37] idem, p. 62

[38] HEGEL, Fenomenologia, par. 523, Phänomenologie, p. 346

[39] TORRES FILHO, Ensaios de filosofia ilustrada, p. 58

[40] DIDEROT, idem, p. 121

[41] idem, p. 75

[42] PLATÃO, Górgias, 492C

[43] DIDEROT, idem, p. 130

[44] idem, p. 77

[45] HEGEL, Fenomenologia, par. 521. Phänomenologia, p. 343. Ou ainda : « O conteúdo do discurso que o espírito profere de si mesmo e sobre si mesmo é, assim, a inversão de todos os conceitos e realidades, o engano universal de si mesmo e dos outros. Justamente por isso, o descaramento de enunciar essa impostura é a maior verdade » (HEGEL, idem, par. 522/p. 344).

[46] ARANTES, Ressentimento da dialética, p. 35

[47] DIDEROT, idem, p. 50

[48] Ver SAFATLE, Was ist Zynismus?(no prelo)

[49] HEGEL, Fenomenologia, par. 526, Phänomenologie, pp. 347-348

[50] BAKHTIN, The dialogical imagination, p. 23. Esta é uma idéia que encontramos também em Nietzsche: “Se a tragédia havia absorvido em si todos os gêneros de arte anteriores, cabe dizer o mesmo, por sua vez, do diálogo platônico, o qual, nascido por mistura do todos os estilos e formas precedentes, paira no meio, entre narrativa, lírica e drama, entre prosa e poesia, e com isto infringe igualmente a severa lei antiga da unidade da forma lingüística; caminho este por onde os escritores cínicos foram ainda mais longe, atingindo, na máxima variegação do estilo, na constante variação entre formas métricas e prosaicas, também a figura literária do “Sócrates furioso” que eles costumavam representar em vida” (NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, p. 88)

[51] BAKHTIN, idem, p. 38

[52] DIDEROT, idem, p. 46

[53] HEGEL, idem, par. 526, p. 345

[54] idem, p. 116

[55] idem, p. 106

[56] idem, p. 107

[57] idem, p. 109

[58] DAHLHAUS, L´idée de la musique absolue, p. 49

[59] Lembremos do que diz Rousseau : « Quando pensamos que, de todos os povos da terra, todos o que têm uma música e um canto, os europeus são os únicos que têm uma harmonia, acordes, achando esta mistura agradável ; quando pensamento que o modo durou tantos séculos sem que, em todas as nações que cultivaram as belas-artes, nenhuma tenha conhecido esta harmonia, que nenhum animal ou pássaro, nenhum ser na natureza produziu outro acorde que o  uníssono ou outra músical que a melodia ; que as línguas orientais, tão sonoras, tão musicais, exercidas com tanta arte, nunca guiaram estes povos voluptosos e apaixonados em direção à nossa harmonia ; que sem ela suas músicas tiveram efeitos tão prodigiosos ; que com ela a nossa tenha efeitos tão fracos ; que, enfím, estava reservado aos povos do norte, cujos órgãos duros e grosseiros são mais tocados pelos ruídos e explosões de vozes do que pela doçura dos acentos e melodias das inflexões, fazerem esta grande descoberta e definí-la como princípio a todas regras da arte ; quando, digo eu, levamos tudo isto em considerações, é muito difícil não desconfiar que toda nossa harmonia é uma invenção gótica e bárbara a respeito da qual nunca seríamos avisados se fôssemos mais sensíveis as verdadeiras belezas da arte e à música realmente natural » (ROUSSEAU, Dictionnaire musical)

[60] DIDEROT, idem, 106

[61] Já a confrontação Kant/ Sade seria o outro pólo da crítica às aspirações fundacionistas do esclarecimento devido à exposição da impossibilidade de fundar a moralidade em um determinação transcendental da vontade (ver, a este respeito, SAFATLE, O ato para além da Lei in Um limite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise, São Paulo: Unesp, 2003).

[62] MARX, Manuscritos econômico-filosóficos, p, 130