Materialismo, imanência e política:

Algumas considerações sobre a teoria da ação de Giorgio Agamben

 

 

Materialista é somente aquele ponto de vista que suprime radicalmente a separação de estrutura e superestrutura porque toma como objeto único a praxis na sua coesão original, ou seja, como ‘mônada’ (mônada, na definição de Leibniz é uma substância simples, ‘isto é, sem partes’)[1].

 

Esta frase, Giorgio Agamben a afirma em um pequeno texto dedicado às diferenças metodológicas entre Adorno e Benjamin. Nele, o filósofo italiano parte de uma troca de cartas entre os dois autores na qual Adorno acusa o trabalho “micrológico” benjaminiano em A Paris do segundo império de “pôr imediatamente em relação causal traços isolados da superestrutura com traços correspondentes da estrutura”[2]. Maneira adorniana de insistir nos problemas de uma análise que perde as mediações entre processo sócio-histórico global e conteúdos determinados da experiência ao tender a anular toda resistência de tais conteúdos aos quadros explicativos fornecidos por reflexões estruturais. Tomando partido de Benjamin, Agamben lembra que apenas esta micrologia seria fiel a uma intuição materialista claramente presente em Marx, ao menos se aceitarmos que:

 

Marx abole a distinção metafísica entre animal e ratio, entre natureza e cultura, entre matéria e forma para afirmar que, na práxis, a animalidade é humanidade, a natureza é cultura, a matéria é forma. Sendo assim, a relação entre estrutura e superestrutura não pode ser nem de determinação causal nem de mediação dialética, mas de identidade imediata[3].

 

Não se trata aqui de entrar diretamente no mérito desta interpretação de Marx, até porque ela é imprecisa na medida em que parece deixar de lado o fato de que, em Marx, a posição da identidade em afirmações como “a matéria é forma” não pode ser compreendida como figura de uma identidade imediata. O caráter especulativa das proposições dialéticas são sempre marcas de passagens entre sujeito e predicado, passagem nas quais o primeiro termo se perde, aliena-se no segundo para retornar a si portando as marcas desta alienação. Não parece correto, neste sentido, dizer que teríamos nestas proposições uma identidade imediata (como se a cópula destas proposições fosse um mero sinal de igualdade), mas uma identidade especulativa, uma identidade que traz em si mesmo sua própria negação. Fato que Agamben conscientemente nega ao dizer que tais identidades devem ser compreendidas como figuras de uma dialética imóvel e “imanente” marcadamente benjaminiana.

            No entanto, como já foi dito, não se trata aqui de entrar diretamente no mérito desta interpretação de Marx. Melhor seria seguir a experiência intelectual de Agamben a fim de compreender como opera, em seu interior, tal perspectiva materialista, como ela serve de orientação para a configuração dos campos da práxis e, em especial, da ação política tal como ela pode ser deduzida de seus últimos livros: Homo sacer, Estado de exceção e, principalmente, Profanações. Esta indagação sobre a configuração do campo da práxis tem sua antecâmara em uma reflexão a respeito das relações entre ser e linguagem articulada a partir das tradições hegelianas e heideggerianas. Articulações heterodoxas por tentarem demonstrar os limites de um certo heideggero-hegelianismo marcado por certos usos da noção de negatividade. Mas ainda mais heterodoxas por acoplarem-se posteriormente a uma temática tipicamente foucauldiana marcada pela atualização do problema da biopolítica. Trata-se pois de seguir este movimento que vai da ontologia à política, isto a fim de dar conta da natureza do materialismo proposto por Agamben.

 

A voz do negativo

 

            Em um seminário publicado com o título de A linguagem e a morte, Agamben apresenta uma leitura particular do problema concernente ao estatuto da linguagem em Hegel e Heidegger. Leitura toda ela baseada na defesa de uma certa proximidade entre a teoria da linguagem dos dois filósofos graças aos usos da noção de negatividade. Tanto em Hegel quanto em Heidegger, a linguagem seria pensada principalmente como modo de manifestação da negatividade daquilo que não se deixa determinar através de determinações representativas e do trabalho categorial do entendimento.

            Mas, a princípio, tal proximidade entre Hegel e Heidegger não é evidente. Pois aceita-se normalmente que a negatividade ocupa lugares e funções distintas nos dois autores. Lembremos, por exemplo, do que está em jogo quando Heidegger afirma que Hegel não foi capaz de se perguntar de maneira adequada pelo problema da origem ontológica da negação, um problema que, se bem encaminhado, nos levaria a um nada mais originário que a negação. Este nada é, na verdade, maneira astuta de anular toda e qualquer dignidade ontológica da negação. Neste sentido, a estratégia heideggeriana anda na contramão do que podemos encontrar em Hegel.

            Partamos, por exemplo, de algumas elaborações apresentadas por Heidegger em um pequeno texto central: O que é a metafísica? Nele, Heidegger inicia fazendo uma crítica à racionalidade instrumental do discurso científico que reduz, ao ente, toda referência ao mundo. Ente pensado aqui como referência construída pela projeção dos esquemas categorias do sujeito:

 

O homem – um ente entre outros – ´faz ciência´. Neste ´fazer´ ocorre nada menos que a irrupção de um ente, chamado homem, na totalidade do ente, mas de tal maneira que, na e através desta irrupção, se descobre o ente naquilo que é em seu modo de ser[4].

 

Quer dizer, o modo de ser do ente, no interior do discurso da racionalidade instrumental da ciência, é referir-se ao homem, ao sujeito moderno idêntico a si mesmo, enquanto fundamento para a constituição de todo e qualquer objeto da experiência. O ente é assim simples projeção do homem. Como dirá claramente Heidegger:

 

Nos parece que, em todo lugar, o homem só encontra si mesmo. Heisenberg teve plenamente razão de dizer que, para o homem de hoje, o real (Wirkliche) não pode aparecer de outra forma[5].

 

Aquilo que não se submete a tais protocolos de constituição do objeto da experiência, que não se submete às coordenadas espaço-temporais que constituem o campo subjetivo de experiências não pode ser “algo”; é apenas “nada”. No entanto, este nada é, na verdade, um modo de ser do que não se submete à forma de objeto de uma razão instrumental. Quando Heidegger afirma que o nada é a “plena negação da totalidade do ente”[6], devemos entender, com isto, que há algo que se manifesta apenas como negação, não deste ou daquele ente, mas negação da própria forma de determinação própria ao ente em um regime projetivo de vinculação ao sujeito.

            Até aqui, poderíamos encontrar similitudes com a estratégia hegeliana de insistir que certos objetos só podem ser formalizados de maneira negativa (daí a função maior da contradição no interior da dialética). Podemos ainda encontrar similitudes se levarmos em conta esta compreensão “projetiva”da relação entre sujeito e objeto.

A este respeito, lembremos da crítica hegeliana ao vínculo entre subjetividade e identidade no programa filosófico do idealismo. Hegel procura tirar as consequências da defesa kantiana de que: “todo o diverso da intuição possui uma relação necessária ao Eu penso no mesmo sujeito em que esse diverso se encontra”[7]. Pois a ligação (Verbindung) do diverso em geral deve ser um ato da espontaneidade do sujeito. No entanto, esta ligação pressupõe a representação da unidade sintética do diverso construída a partir de pressuposições naturalizadas de identidade e diferença. Isto implica não apenas que, para serem apropriadas reflexivamente, todas as representações de objeto devem ser minhas (“o Eu penso deve poder acompanhar todas as minhas representações”), mas implica também que elas sejam estruturadas a partir de um princípio interno de ligação e de unidade reflexivamente reconhecido pela consciência-de-si. Daí porque a regra de unidade sintética do diverso da experiência é fornecida pela estrutura da própria unidade sintética de apercepções, ou seja, pela auto-intuição imediata da consciência-de-si. As representações devem se estruturar a partir de um princípio de identidade que é, na verdade, a forma geral do Eu penso. Kant ainda é mais claro ao afirmar que: “O objeto é aquilo em cujo conceito está reunido o diverso de uma intuição dada. Mas toda a reunião das representações exige a unidade da consciência na respectiva síntese”[8]. Assim, quando Hegel constrói um witz  ao dizer que, para a consciência, “o ser tem a significação do seu” (das Sein die Bedeutung das Seinen hat)[9], ele tem em vista o fato de que ser objeto para a consciência significa estruturar-se a partir de um princípio interno de ligação que é modo da consciência apropriar-se do mundo e constituí-lo à sua imagem. Daí porque, Hegel pode afirmar, em um indefectível tom “heideggeriano”, que a consciência:

 

Agora avança para a apropriação universal (allgemeinen Besitznehumung) da propriedade que lhe é assegurada e planta em todos os cimos e em todos os abismos o signo (Zeichen) da sua soberania[10].

 

Mas as similitudes entre os dois terminam quando Heidegger se pergunta:

 

Representa o “não”, a negatividade e com isto a negação, a determinação suprema a que se subordina o nada como uma espécie particular de negado? “Existe” o nada apenas porque existe o “não”, isto é, a negação? Ou não acontece o contrário? Existe a negação e o “não” apenas porque “existe” o nada?[11]

 

            Heidegger coloca tais questões para posteriormente poder afirmar que a negação é compreendida como atividade do entendimento, uma atividade secundária, já que dependente da determinação da realidade de algo que será posteriormente negado. Como dirá Sartre, marcado profundamente aqui pelo encaminhamento heideggeriano: “Seria vão negar que a negação apareça sobre o fundo primitivo de uma relação do homem ao mundo; o mundo não descobre seus não-seres a alguém que primeiramente não os pôs como possibilidade”[12]. Ou seja, a negação é, no fundo, pensada como privação, como ausência de atributos ou objetos. Neste sentido, ela não pode ter um ser que lhe seja próprio, como afirmou Hegel, ao insistir na existência de uma “negação em si que só tem um ser enquanto negação reportando-se a si”[13], ou seja, uma negação que não pode ser compreendida como mera figura da privação, mas como modo de determinação daquilo cuja essência é um negativo posto como negativo.

            No entanto, Heidegger lembrará que há uma relação do ser ao nada que não seria apenas posição do imediatamente indeterminado, como teria pensado Hegel. Tal relação se constituiria, na verdade, porque o ser só se manifesta na transcendência do Dasein suspenso dentro do nada. De uma certa forma, isto significa mostrar que vincular o ser ao nada equivale a negar qualquer vínculo essencial entre ser e negação, até porque, o nada é negativo apenas para um certo regime de disponibilização dos entes. É isto que leva Adorno, na Dialética Negativa, a afirmar que a negatividade em Heidegger não é suficientemente negativa. Ela não reconhece uma dignidade ontológica à negação. De uma certa forma, é este problema que leva Adorno ver, em Heidegger, aquilo que ele chama de “ontologização do ôntico”[14].

            Lembremos que, ao mesmo tempo em que insiste na centralidade da diferença ontológica, Heidegger afirma que: “O nada não é um conceito oposto ao ente [como poderia parecer até agora], mas pertence originariamente à essência mesma (do ser). No ser do ente acontece o nadificar do nada”[15]. Segundo Heidegger, na base da tradição metafísica ocidental estaria a pressuposição de que o nada é apenas o não-ente [ou, ainda, o não-ser em sentido trivial]. Mas devemos nos perguntar, então, em que condições o nada deixa de ser um conceito oposto ao ente para advir a manifestação mesma da essência do ser do ente? Lembremos ainda que Heidegger continua afirmando que “o ser não se deixa representar e produzir objetivamente à semelhança do ente”, mesmo que insista que: “o ser nunca se manifesta sem o ente, jamais o ente é sem o ser”[16]. Esta contradição aparente se resolve se nos perguntarmos sobre o modo de relação que permite ao ser manifestar-se como ser do ente. Uma resposta esquemática consiste em dizer que o ser “passa’ ao ente quando o ente se anula, quando ele advém nada, quando ele perde suas características individualizantes resultantes da estrutura projetiva categorial própria ao sujeito da experiência. Poderíamos mesmo dizer, que o ser do ente é o ente sem determinação qualitativa.

            Para Adorno, esta é uma forma astuta de ontologizar o ôntico através de uma negação simples do segundo termo pelo primeiro. Pois, se podemos dizer que o ser “passa” ao ente, devemos completar lembrando que nesta passagem não há uma interversão que permitira negar o ser através do ente. Há apenas uma negação simples do ente pelo ser. Daí porque Adorno pode afirmar que não há, neste caso, propriamente uma dialética entre ser e ente, mas os dois termos são pensados sem mediação recíproca, sendo que o primeiro termo tem primazia sobre o segundo. Pois o sentido do ente é dado em sua integralidade pelo ser. Já o ser, por sua vez, não tem seu sentido modificado pela sua relação ao ente. Como gostaria de mostrar ao final deste artigo, não é certo que esta estrutura de negação simples do ente pelo ser anime as considerações hegelianas (mesmo que esta não seja exatamente a interpretação de Adorno).

 

            De qualquer forma, não é por este caminho que Agamben organiza a comparação entre Heidegger e Hegel. Na verdade, seu caminho segue uma intuição que visa insistir na conexão, presente desde Aristóteles, entre o problema do ser e o problema da indicação. Isto o permite compreender o Dasein heideggeriano como setor do problema referente aos modos de indicação do ser. Daí porque Agamben privilegia a compreensão do Dasein como “ser-o-aí”, ser que vem à manifestação lá onde a indicação, lá onde a designação alcança, lá onde a designação é capaz de mostrar um nada que é modo de presença e não simplesmente modo de privação.

            Dito isto, Heidegger pode afirmar que o modo privilegiado de manifestação disto que aparece enquanto nada é a angústia:

 

A angústia é sempre angústia diante de ..., mas não angústia diante disto ou daquilo. A angústia diante de ... é sempre angústia por ..., mas não por isto ou por aquilo. O caráter de indeterminação daquilo diante de e por que nos angustiamos, contudo não é apenas uma simples falta de determinação, mas a essencial impossibilidade de determinação[17].

 

Com isto, Heidegger vincula-se a uma temática tipicamente hegeliana de compreensão da angústia como situação de fragilização das imagens do mundo, como disposição intencional desprovida de objetos, isto a fim de afirmar que, na angústia, o ente em sua totalidade se dissolve diante da manifestação de um nada cuja essência consiste em conduzir o Dasein à posição de ente: “Somente à base da originária revelação do nada pode o Dasein do homem chegar ao ente e nele entrar”[18]. Um Dasein que, desta forma, está sempre além do ente, está sempre em uma transcendência negativa.

De fato, algo desta coreografia de designação e negatividade pode ser encontrado na maneira hegeliana de pensar a relação entre linguagem e ser no início da Fenomenologia do Espírito. Se voltarmos os olhos para o início da Fenomenologia do Espírito, veremos que ela começa com a exposição de um problema lingüístico ligado à natureza do que podemos chamar de “designação ostensiva”. Chamamos de “designação ostensiva” a tentativa de fundar a significação de um termo através da indicação referencial de um caso empírico que determinaria a extensão do uso do referido termo. Ou seja, trata-se de tentar definir a significação através da indicação da referência. De uma certa forma, todo capitulo inicial sobre a certeza sensível é uma longa reflexão sobre a impossibilidade de designações ostensivas e a conseqüência disto para a compreensão da maneira com que o conceito pode reconciliar-se com a Coisa mesma.

Vejamos pois como tal problematização é inicialmente apresentada. Sabemos que a consciência crê ter a intuição imediata do ser. Ela crê também poder mostrar tal intuição através de uma designação. Daí porque Hegel afirma: devemos perguntar à consciência “o que é o isto (Was ist das Dieses)?”:

 

Se o tomarmos na dupla forma (Gestalt) de seu ser, como o agora e como o aqui, a dialética que tem nele vai tomar uma forma tão inteligível quanto o ser mesmo. À pergunta: o que é o agora? respondemos com um exemplo (Beispiel): o agora é a noite. Para tirar a prova da verdade dessa certeza sensível basta uma experiência simples. Anotamos por escrito essa verdade; uma verdade nada perde por ser anotada, nem tampouco porque a guardamos. Vejamos de novo, agora, neste meio-dia, a verdade anotada: devemos dizer, então, que se tornou vazia. O agora que é noite foi conversado (aufbewahrt), isto é, foi tratado tal como se ofereceu, como um ente; mas se mostra, antes, como um não-ente. O próprio agora, bem que se mantém, mas como um agora que não é noite. Também em relação ao dia que é agora, ele se mantém como um agora que não é dia, ou seja, mantém-se como um negativo em geral (...) Nós denominamos um universal um tal Simples que é por meio da negação; nem isto nem aquilo – um não-isto – e indiferente também a ser isto ou aquilo. O universal, portanto, é de fato, o verdadeiro da certeza sensível[19].

 

O que esta passagem quer dizer? Primeiro, notemos como Hegel introduz o problema da designação a partir da dupla forma da intuição, ou seja, o espaço (aqui) e o tempo (agora). Trata-se assim de, primeiramente, compreender o que acontece a uma Coisa quando a intuímos categorialmente no espaço e no tempo. Hegel nos fornece o exemplo da intuição dos momentos no tempo, é ela que lhe serve de paradigma.

Intuir algo no tempo é ter a experiência de que há algo diante de mim agora. No entanto, o agora não é modo de presença do singular visado. De uma certa forma, o agora é o nome que indica a negação de todos os instantes. Posso tentar designar este instante afirmando: “Este instante é o agora”, no entanto, o agora deixa de ser enquanto era indicado, ele passa diretamente para a referência de outro instante. Ele não é, no entanto, a designação do outro-instante, mas apenas a forma da passagem incessante no outro. É isto que Hegel tem em mente ao afirmar que agora é, na verdade, a forma do “negativo em geral”; figura do negativo que deve ser compreendida como a manifestação do que não pode ser a determinação que se põe no isto ou no aquilo, mas “não-isto (nicht dieses)”. Por isto, podemos dizer que o agora é a forma do desvanecimento de todo instante. Intuir objetos no tempo é assim ter a experiência do que só é não sendo (segundo a proposição hegeliana: “o tempo é aquilo que, não sendo, é”[20]). Isto implica em um modo de presença não mais assentado no primado da visibilidade do que se oferece no espaço.

            Assim, lá onde a consciência sensível acreditava designar a particularidade irredutível do instante, deste instante do qual só podemos dizer que ele é o agora, ela estava, na verdade, tendo a experiência do descompasso incessante entre a significação do agora e a designação do instante. Experiência da impossibilidade de designar a particularidade do instante. Este esquema é utilizado por Hegel como dispositivo geral de descrição da relação entre linguagem e ser. Daí porque Agamben pode afirmar haver uma relação fundamental entre o Dasein hedeiggeriano e o Diese hegeliano patrocinada pela noção de negatividade.

            Há mais a ser dito a respeito desta relação entre ser e linguagem em Hegel. Mas isto será feito apenas ao final deste artigo. Por enquanto, devemos lembrar como insistir na conexão entre as estruturas da indicação e o problema da relação entre linguagem e ser é uma maneira de seguir a idéia derridiana de que, no interior da metafísica ocidental, a voz impôs-se como medium fundamental da presença do ser. Pois a indicação através de dêiticos é, fundamentalmente, operação lingüística que remete a significação sempre à enunciação e a seus contextos: “a dimensão de significado do ser coincide com aquela experiência da voz como pura indicação e puro querer dizer”[21]. Tudo se passa como se Agamben tentasse ampliar este diagnóstico da voz, da phoné como suporte da metafísica da presença (diagnóstico que encontramos aplicado à Husserl em A voz e o fenômeno, de Derrida) para as filosofias de Hegel e Heidegger. No entanto, tal ampliação exige mostrar como as filosofias que dão um lugar privilegiado à noção de negatividade são, à sua maneira, dependentes dos móbiles desta metafísica da presença: “a negatividade é inseparável da metafísica”[22], dirá Agamben. Mas trata-se aí de uma metafísica da presença de sinais trocados, o que só pode nos levar, no máximo, a uma certa teologia negativa ou, sendo mais preciso, a uma verdadeira metafísica da ausência. Daí porque Agamben vê como tarefa filosófica maior: “encontrar uma experiência da linguagem que não suponha mais nenhum fundamento negativo”[23]. Uma experiência da linguagem que não suponha mais nenhum fundamento negativo poderia implicar na ruptura com uma certa tradição metafísica, nos levando assim em direção a este materialismo que toma como objeto único a práxis em sua coesão original, materialismo a respeito do qual Agamben falou em seu pequeno ensaio sobre Adorno e Benjamin.

 

O fundamento negativo da práxis social e os impasses da soberania

 

            No entanto, poderíamos ainda insistir nesta via descartada por Agamben e perguntar: o que haveria de errado com esta posição de um fundamento negativo da experiência da linguagem a ponto de precisarmos abandoná-la a todo custo? A originalidade de Agamben, neste ponto, consiste em procurar descrever conseqüências políticas de tal posição. Conseqüências que serão desdobradas de maneira mais demorada na série Homo sacer.

            Este encaminhamento próprio a Agamben é possível se assumirmos a perspectiva pragmática de que os usos da fala são necessariamente um setor privilegiado da práxis social, isto a ponto de podermos dizer que toda teoria da linguagem é uma figura determinada de uma teoria da ação social. Isto permite ao filósofo italiano agir como quem diz que, da mesma forma que, nos usos da linguagem, a indicação expõe apenas a inadequação da determinação ao ser, inadequação que é figura da transcendência negativa de sua significação, a práxis social acaba por realizar-se como sacrifício de toda determinidade. Assim, a própria não-fundamentação do fazer humano realiza-se como violência e sacrifício, ou seja, violência contra toda determinidade ou transgressão em relação a todo ordenamento jurídico. É para não entrar no círculo infinito da transgressão como motor da ação social que Agamben deve afirmar:

 

O ethos, o próprio do homem, não é um indizível, um sacer que deve permanecer não dito em toda práxis e em toda palavra humana. Ele não é nem mesmo um nada,  cuja nulidade funda a arbitrariedade e a violência do fazer social. Ele é, antes, a própria práxis social e a própria palavra humana tornadas transparentes a si mesmas[24].              

 

            Novamente, nos deparamos com o apelo a uma identidade imediata, a uma imanência que fundaria aquilo que é da ordem de uma perspectiva realmente materialista, ao menos segundo Agamben. Mas antes de passar à tematização da configuração de tal materialismo, faz-se necessário demorar um pouco mais diante destas reflexões de Agamben a respeito dos impasses de uma teoria da ação que põe a negatividade como fundamento. Pois ele nos leva à importância de Agamben às noções de soberania e exceção enquanto conceitos maiores para a compreensão da racionalidade da estrutura jurídico-normativa da modernidade. Como se os problemas contemporâneos do poder soberano e da generalização dos dispositivos governamentais de exceção tivessem sua raiz profunda em uma certa maneira da modernidade pensar a relação entre linguagem e ser. Operação aparentemente arbitrária e pouco crível já que implica em dizer que problemas do campo do político encontram sua iluminação quando reportados a uma dimensão onde metafísica e teologia se imbricam. Mas operação que ganha credibilidade se aceitarmos, com Benjamin, com Carl Schmitt e com Bataille, que o campo da práxis social na modernidade, longe de ser um campo marcado pelo desencantamento, é espaço próprio a construções teológico-políticas.  A sua maneira, Agamben parece querer nos levar a crer que a teologia-política que sustenta os impasses da práxis social na modernidade seria solidária de “teologias negativas” como estas encontradas em Hegel e Heidegger[25].

 

            “Soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção”. Esta afirmação hoje clássica serve de guia para a reflexão de Agamben sobre os impasses contemporâneos do político. Para compreender sua real extensão, devemos expor claramente o que está por trás destes dois conceitos.

Primeiro, “estado de exceção”. Criada, em 1791, pela tradição democrático-revolucionária da Assembléia Constituinte francesa sob o nome de "estado de sítio", a figura de um quadro legal para a suspensão da ordem jurídica em "casos extremos" aplicava-se inicialmente apenas às praças-fortes e portos militares. Mas, já em 1811, com Napoleão, o estado de sítio podia ser declarado pelo imperador a despeito da situação efetiva de uma cidade estar sitiada ou ameaçada militarmente. A partir de então, vemos um progressivo desenvolvimento de dispositivos jurídicos semelhantes na Alemanha, Suíça, Itália, Reino Unido e EUA, que serão aplicados, durante os séculos 19 e 20, em situações variadas de emergência política ou econômica. O caso mais recente desta lógica de generalização do estado de exceção foi obra do governo francês que, no ano passado, como resposta às manifestações de descontentamento social nas periferias das grandes cidades, colocou o país sob situação de emergência.

            Giorgio Agamben compreende tal desenvolvimento como a manifestação de um processo de generalização dos dispositivos governamentais de exceção. O que nos explicaria porque: “a declaração do estado de exceção é progressivamente substituída por uma generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo”[26]. Processo este que teria sido o motor invisível das democracias ocidentais. Daí porque ele insiste que a exceção não é uma lógica exclusiva de estados totalitários, mas criação da tradição democrático-revolucionária ocidental.

            No entanto, se é fato que estaríamos aí diante de um paradigma constitutivo da ordem jurídica, então devemos ver, no problema colocado pela exceção, a exposição de uma estrutura “sintomática” própria a modos privilegiados de racionalização das esferas sociais de valores na modernidade. Pois a compreensão de que a ordem jurídica pode incluir sua própria exceção sem, no entanto, deixar de estar em vigor nos remete, necessariamente, a modos de racionalização através da posição de estruturas normativas capazes de indexar casos que suspendem o próprio funcionamento de tais estruturas, sem que isto seja uma contradição. A exceção indica que o fundamento da Lei é aquilo que pode manifestar-se de maneira negativa, transgredindo a própria Lei, sem fazer com que ela deixe de estar em vigor. Assim: “um dos paradoxos do estado de exceção quer que, nele, seja impossível distinguir a transgressão da lei e a sua execução”[27]. Pois a norma pode ser suspensa sem, no entanto, deixar de estar em vigor, é porque seu regime de aplicabilidade pode englobar sua própria suspensão, sua significação não reconhece um campo seguro de indicações. Não há nenhum caso que seja imediatamente a significação da Lei. Como se a dinâmica entre violência instituinte e violência instituída fosse interna ao próprio funcionamento normal da Lei. Neste sentido, Agamben poderia concordar com Habermas, para quem:

 

É a estética da violência que fascina Schmitt [nas suas reflexões sobre os estado de exceção]. Interpretada segundo o modelo de uma criação ex nihilo [de novo, o nada], a soberania adquire um halo de sentido surrealista devido à sua relação com a destruição violenta do normativo[28].

 

            De fato, é esta violência vinculada à posição do nada que caracterizaria o lugar da soberania. O que interessa a Agamben é o fato do poder soberano ser o fundamento jurídico ao mesmo dentro e fora do ordenamento, como se houvesse uma certa transcendência negativa própria à soberania. Ou seja, ela é o lugar a partir do qual a negatividade pode manifestar-se no campo do político como uma transgressão da Lei que toca o seu ponto mais sensível. Pois ela não é a troca de uma norma por outra, mas simplesmente a exposição da fragilidade e da inadequação geral entre norma e caso. Ou seja, fragilidade de toda norma em relação à negatividade soberana.

No fundo, uma das referências silenciosas maiores para tal reflexão de Agamben é Georges Bataille. Grosso modo, Bataille procurava pensar uma certa solidariedade entre transgressão e interdito enunciado pela Lei que encontramos em estruturas sociais marcadas por uma experiência do sagrado e do erotismo estranha para o mundo “desencantado” da modernidade. Tais estruturas sociais, fundam-se em uma normatividade que aceita e regula sua própria suspensão temporária: “Não há interdito que não possa ser transgredido. Muitas vezes a transgressão é admitida, muitas vezes ela chega mesmo a ser prescrita”[29]. Ou seja, a transgressão é modo de funcionamento do vínculo social, isto na medida em que a transgressão não é um retorno à natureza, ela é uma forma da norma internalizar momentos de anomia, sem com isto destruir-se. Assim, a redução da vida a um fluxo contínuo de formas em momentos de anomia não parece se opor ao ordenamento jurídico. Daí porque Bataille pode afirmar que: “a transgressão suspende o interdito sem surpimí-lo”, isto sem deixar de lembrar, e aqui encontramos uma chave preciosa para a gênese desta idéia de Agamben em vincular metafísica da negatividade e lógica jurídica da exceção: “Inútil insistir sobre o caráter hegeliano desta operação que responde ao momento da dialética expressa pelo verbo alemão intraduzível aufheben[30]. Ou seja, para Bataille, esta transgressão à Lei interna ao próprio funcionamento da Lei não é outra coisa que uma figura social da Aufhebung hegeliana. Pois, no fundo, ela seria mais um caso próprio a um modo de superar um limite exterior que foi posto pelo próprio conceito. Como se essa dinâmica de relação entre transgressão e Lei fosse um figura da dialética hegeliana entre o limite (Grenze) e a borda (Schranke).

            Por outro lado, todo o esforço de Agamben consiste em mostrar como a centralidade da “suspensão legal da lei” na compreensão da estrutura jurídico-política da modernidade não é apenas um fenômeno localizado. Se, por um lado, ela é peça fundamental de uma crítica à metafísica da negatividade, por outro, ela é também crítica a uma tendência hegemônica na modernidade em vincular razão e norma, racionalidade e normatização da vida. Ou seja, trata-se fundamentalmente de criticar uma noção de razão vinculada à crença de que racionalizar é assegurar a vida por meio da posição de critérios normativos de justificação intersubjetivamente partilhados. Neste ponto, o trabalho de Agamben aparece como um desdobramento das reflexões de Michel Foucault sobre os modos de coincidência entre a norma racional e o seu outro. Com isto, abre-se um amplo quadro de questões vinculadas à reorientação das expectativas da razão moderna e de seus modos de racionalização da vida.

           

A estética da existência como prolegômeno a todo materialismo futuro

 

Que o verdadeiro alvo de Agamben seja a crítica a tendência moderna em vincular razão e norma, isto ficou claro à ocasião de uma entrevista à Folha de São Paulo, no ano passado:

 

O que está realmente em questão”, disse Agamben à ocasião, “é, na verdade, a possibilidade de uma ação humana que se situe fora de toda relação com o direito, ação que não ponha, que não execute ou que não transgrida simplesmente o direito. Trata-se do que os franciscanos tinham em mente quando, em sua luta contra a hierarquia eclesiástica, reivindicavam a possibilidade de um uso de coisas que nunca advém direito, que nunca advém propriedade. E talvez ´política´ seja o nome desta dimensão que se abre a partir de tal perspectiva, o nome de livre uso do mundo. Mas tal uso não é algo como uma condição natural originária que se trata de restaurar. Ela está mais perto de algo de novo, algo que é resultado de um corpo-a-corpo com os dispositivos do poder que procuram subjetivar, no direito, as ações humanas. Por isto, tenho trabalhado recentemente sobre o conceito de "profanação" que, no direito romano, indicava o ato por meio do qual o que havia sido separado na esfera da religião e do sagrado voltava a ser restituído ao livre uso do homem[31].

 

            Uma afirmação desta natureza mostra como Agamben procura colocar em circulação uma estratégia peculiar que consiste em recorrer a esquemas fornecidos pela tradição da ação religiosa a fim de pensar novas categorias para o político. Novas categorias não mais dependentes, por exemplo, da noção de transgressão da norma  ou de posição de novas normas, mas simplesmente da anulação do potencial normativo da norma, anular a referência à norma. Um ato de anulação que Agamben chama de: desativar a norma e que nos abriria espaço para esta imanência materialista que ele parece procurar.

            Aqui, vale a pena lembrar quão perto e quão longe estamos de Michel Foucault: a referência maior de Agamben nesta relação entre biopolítica e exceção.

Quão longe porque Agamben não está disposto a continuar com as distinções foucauldianas estritas entre poder soberano e poder disciplinar. Foucault tende a pensar estes dois regimes de poder através de uma esquema de obsolescência gradativa do primeiro em relação ao segundo. Contra um poder centralizado, vertical, subjetivado em seu pólo central e impessoal em sua base, a modernidade teria desenvolvido a hegemonia de um poder desprovido de centro e disseminado, horizontal, impessoal por ser vinculado a dispositivos disciplinares capazes de produzir subjetividades, e não à vontade declarada do soberano. Este esquema visa, principalmente, reorientar a crítica do poder insistindo na centralidade de uma reflexão sobre a dinâmica dos processos de subjetivação e na denúncia de uma lógica de resistência ao poder que nada mais seria do que a perpetuação astuta de um limite externo do poder, limite que funcionaria internalizando sua própria negação.

Agamben, no entanto, quer mostrar a implicação orgânica entre poder soberano e modos de subjetivação e de gestão calculista da vida que nos levam diretamente às estruturas fundamentais do bio-poder moderno. Ele quer insistir no vínculo entre exceção, ou seja, entre modo de funcionamento do ordenamento jurídico na modernidade e uma vida que é, cada vez mais, vida nua submetida a uma estranha “lógica disciplinar da anomia”.  Lógica que produz sujeitos que não se referem a quadros estáveis de práticas e papeis sociais, mas que sáo sujeitos produzidos para agirem e julgarem em estruturas que náo podem mais estabelecer partilhas claras entre anomia e situação normatizada. 

Quão perto porque vem de Foucault esta procura pela “possibilidade de uma ação humana que se situe fora de toda relação com o direito”, ação capaz de nos abrir a um uso renovado do mundo. Uso que é “práxis social enfím transparente a si mesma” resultante de um corpo-a-corpo com os dispositivos do poder que procuram subjetivar, no direito, as ações humanas.

            A este respeito, basta lembrarmos do caráter maior de uma temática simétrica a esta no segundo volume da História da sexualidade, este intitulado, exatamente, “O uso dos prazeres”. Neste volume, ao recorrer à descrição das tecnologias que marcam os modos de relação a si na Grécia antiga, Foucault insiste, a todo momento, na possibilidade de pensar uma estilização da existência que não regula suas expectativas de legitimidade e seus modos de uso através da conformação da conduta a uma norma geral enquanto sistema de regras e proibições fundado na codificação exaustiva de práticas. Algo fundamental para a perspectiva materialista de Agamben. Daí esta noção de estética da existência como:

 

uma maneira de viver cujo valor moral não está vinculado a sua conformidade a um código de comportamento, nem a um trabalho de purificação, mas a certas formas, ou melhor, a certos princípios formais gerais no uso dos prazeres, na distribuição que deles fazemos, nos limites que observamos, na hierarquia que respeitamos[32].

 

O que há de estético aqui é o tratar a vida como uma obra que se submete não apenas a valores estéticos, como “harmonia”, “equilíbrio” e  “simetria”, mas também e principalmente a critérios estéticos de produção, como a idéia de que a ação não é expressão imediata de si, mas relação agonística e singular com materiais (impulsos, inclinações) que devem ser dominados, devem ser conformados sem serem totalmente negados. Esta idéia da singularidade dos modos de relação a impulsos e inclinações é o que aproxima tais práticas de uma estilística individualizadora ligada ao cálculo do momento, da situação, do contexto e a afastam da normatividade do direito.

            Não deixa de ser irônico que Foucault nos remeta ao mesmo ensaio de Walter Benjamin sobre Baudelaire a fim de demonstrar um caso recente de estudo sobre esta estética da existência que constitui uma práxis reconciliada consigo mesma[33]. Pois, ao menos para Foucault, algo da estética da existência dos gregos não estaria distante das experiências disruptivas do modernismo. No fundo, podemos mesmo dizer que este retorno aos gregos é apenas uma astúcia.

Por um lado, o recurso à estética em contraposição ao jurídico fora uma constante da trajetória intelectual de Foucault. Pensemos, por exemplo, nesta proximidade entre “consciência trágica da loucura” e literatura moderna à época de História da loucura, isto em contraposição ao regime jurídico-psiquiátrico da loucura. Mas faltava a Foucault um paradigma capaz de expor como absorver as experiências disruptivas do modernismo em um quadro mais amplo de reorientação de processos de racionalização social. Por mais inusitado que isto possa parecer, tal paradigma será sintetizado através deste retorno aos gregos. Assim, quando Foucault recorre novamente a Baudelaire em O que é o esclarecimento? , isto a fim de demonstrar como a saída da minoridade própria ao projeto moderno era indissociável de uma reconstrução de si, crítica permanente de nosso ser histórico que nos permitiria afirmar: “Ser moderno  não é aceitar a si mesmo tal como se é no fluxo de momentos que passam, é tomar si mesmo como objeto de uma elaboração complexa e dura”[34], vemos o último laço de uma alta-constura entre estética da existência dos gregos e vanguarda modernista.

No entanto, devemos nos perguntar sobre o que vincula, ao menos para Foucault, duas experiências tão dissimétricas quanto algumas elaborações vanguardistas do modernismo e esta estética da existência própria às práticas sexuais dos gregos. Tal problema irá nos remeter, novamente, a certas críticas à noção de negatividade em sua matriz hegeliana. Pois desde o prefácio de História da loucura, Foucault parece ver, no caráter agonístico deste "logos desprovido de contrários" dos gregos, uma “raiz calcinada do sentido” própria a uma linguagem onde a contradição não é submetida a uma dialética, onde a multiplicidade não se deixa submeter ãs astúcias da contradição. Foucault fala, às vezes, de uma linguagem capaz de interrogar: “uma origem sem positividade e uma abertura que ignora as paciências do conceito”[35]. Este anti-hegelianismo de Foucault fica sintetizado em afirmações como: 

 

O que não demorará a morrer, o que já morre em nós (e cuja morte justamente leva nossa linguagem atual) é o homo dialecticus – o ser da partida, do retorno e do tempo, o animal que perde sua verdade e a reencontra iluminada, o estranho a si que advém familiar[36].

 

Ou seja, o que deve morrer é o ser que determina sua identidade através de oposições e contrariedades que podem ser internalizadas, mas à condição de se submeterem a uma razão que tudo positiva e que perpetua o que deveria ser ultrapassado, até porque a contrariedade já seria maneira de regular a diferença, já seria maneira de reduzir a diferença à simples oposição. Uma oposição que seria maneira astuta de conservar o primado da identidade, mesmo que pelas vias de um negativo “preparado” para sua reabsorção (um pouco como uma dissonância “preparada” serve, no fundo, apenas para reafirmar a tonalidade). Esta maneira “peculiar” de ler a dialética hegeliana fará escola no interior do pensamento francês contemporâneo e parece também alcançar Agamben.

Algo deste logos pretensamente anti-dialético dos gregos, Foucault encontra na literatura de vanguarda quando afirma, por exemplo, que uma de suas características maiores (Foucault pensa principalmente em Mallarmé) consiste em desenvolver uma linguagem capaz de desarticular as expectativas ordenadoras da razão moderna, de “suspender o reino da língua em um gesto atual de escritura” isto por ser linguagem que, ao mesmo tempo, submete e não submete a palavra ao código. Como se mesmo termo fizesse parte de um código partilhado publicamente e de uma espécie de código privado que faria com que a palavra trouxesse em si mesma sua própria medida. Uma palavra: “não coercitiva, que não comanda e não proíbe nada, mas diz apenas ela mesma”[37]. Trata-se de desativar a potência ordenadora do código no momento mesmo em que tal ordenação parece ser aplicada[38].

Aqui, fica claro um ponto importante que talvez nos sirva para compreendermos algumas estratégias de Agamben. Foucault parece também às voltas com a possibilidade de uma praxis imanente e tornada transparente a si mesma. Mas, neste contexto, “transparência” não pode ser simplesmente tomada como identidade imediata entre intencionalidade e ato, ou entre ação e consciência de contextos sócio-históricos. Ao invés de algum recurso à espontaneidade da expressão imediata de si como critério de identidade reinstaurada, Foucault compreenderia tal transparência como aquilo que se abre a partir do momento em que somos capazes de produzir uma desativação da potência ordenadora do código e da norma. Como se o gesto de violência pura que produz tal desativação já fosse condição suficiente (e não apenas condição necessária) para nos instaurarmos no solo de uma praxis renovada capaz de recuperar para si o nome “política”. Um solo no qual poderíamos dizer, por exemplo: “Ética é a vida que não se contenta de submeter-se a lei moral, mas que aceita encenar-se em seus gestos de maneira irrevogável e sem a mínima reserva”[39].

           

Paródia: dispositivo biopolítico ou crítica da soberania?

 

Mas, se voltarmos a Agamben e nos atentarmos aos dispositivos que ele nos oferece a fim de pensar os regimes de desativação da norma, não deixa de ser interessante como ele parece trazer, à sua maneira, estratégias muito semelhantes a estas que encontramos em Foucault. Pois Agamben recorre, entre outras coisas, a um regime de crítica em operação, de maneira cada vez mais hegemônica, na estética contemporânea. Regime que guarda semelhanças "táticas" com aquilo que Foucault encontra na literatura de vanguarda. Ele consiste em não tentar mais transgredir ou fornecer novas normas,  mas em simplesmente mimetizar a norma de maneira tal, agir “normalmente” de forma tal que ela perca sua capacidade organizadora. Neste sentido, um pequeno ensaio de Profanações intitulado “Paródia” é extremamente significativo.

            Agamben lembra que há dois traços canônicos na paródia: a dependência em relação a um modelo existente e a conservação de elementos formais de tal modelo em meio a conteúdos ou contextos incongruentes. Ou seja, trata-se de uma maneira de seguir um modelo, assumir uma norma, mas de forma tal que a força ordenadora do modelo e da norma são “desativados” devido ao fato deles serem repetidos de maneira irônica. Agamben lembra como o termo paródia era usado inicialmente para designar uma separação entre canto e palavra, entre melos e logos, que produzia situações nas quais se cantava para ten oden, a contra-canto ou fora do canto. Maneira de desativar o logos devido à inadequação do melos que o acompanhava. Daí esta definição da paródia como:

 

separação entre canto e palavra, entre melos e logos. Originalmente, na música grega, a melodia devia corresponder ao ritmo e à palavra. Quando, na recitação do poema homérico, este nó tradicional era rompido e os rapsodos introduziam melodias percebidas como discordantes, dizia-se que eles cantavam para ten oden, a contra-canto ou ao lado do canto[40].

 

Ou seja, a paródia como estetização da inadequação.

            Este esquema da paródia é o que Agamben procura implementar através da sua noção de profanação. Através da paródia, o filósofo procura construir um conceito de profanação capaz de nos colocar diante de uma ação que não executa ou transgride a norma, mas que a desativa. Usando a idéia de que profanar é restituir as coisas (outrora separadas na dimensão do sagrado) ao livre uso dos homens, trata-se de pensar uma ação que instaure este livre uso através da ironização do que antes estava separado, sacralizado, perdido em sua identidade imediata. Um uso irônico que, ao mimetizar o sacralizado, anula o vínculo seguro entre coisas, regras e sentido que toda noção de sagrado visa garantir. Como dirá Agamben:

 

O comportamento assim liberado reproduz e mimetiza as formas da atividade da qual ele se emancipou mas, ao esvaziar seu sentido e sua relação necessária a um fim, ele permite que elas se disponham a um novo uso[41].

 

Um uso próprio àquilo que Agamben, seguindo as pegadas de Benjamin, chama de “meios sem fim”. Uso mais próximo da gratuidade do jogo que da instrumentalidade daquilo que só é devido ao seu vínculo a uma função. No fundo, com este conceito de profanação, Agamben não parece muito distante de Deleuze com sua noção de humor enquanto repetição mimética que impede a indexação segura entre norma e caso, como o que inverte o uso da norma ao fazê-la adequar-se a casos e contextos nos quais ela, normalmente, não poderia ser aplicada[42].

Como exemplo privilegiado aqui, o filósofo italiano nos fala de uma atriz pornô francesa, Chloé des Lysses, uma espécie de Cindy Sherman hardcore, famosa por seus livros de porn art nos quais ela se deixa fotografar nas cenas pornográficas mais tórridas com um rosto que nos remete a uma gramática hiper-estilizadas de gestos e feições que podemos encontrar em toda top-model de revista feminina[43]. Agamben vê nesta gramática o rosto mesmo da inexpressividade e da indiferença estóica lá onde deveríamos encontrar a representação codificada do gozo. Esta seria uma forma de desativar o dispositivo fascinante da pornografia através de uma ação que mimetiza as formas próprias à linguagem pornográfica, mas de uma maneira tal que um certo “distanciamento irônico”, uma certa auto-derrisão é encenada, provocando com isto o estranhamento lá onde esperávamos apenas a repetição fantasmática. Ela age como se estivesse totalmente presa aos códigos da pornografia barata, isto ao encenar fantasmas “clássicos” de filmes pornográficos como a secretária, a executiva, a empregada, a garota mignon currada por um negro, a garota rica e devassa. Mas, ao fazer com que seus olhares, suas feições, suas roupas fashion nos remetam a um outro código, este das revistas internacionais de moda com seu “glamour” feminino desafectado, Chloé des Lysses produz uma duplicidade de códigos que nos lembra como ela não está totalmente absorta no que faz. Daí a noção de profanação como agir paródico, agir daqueles que fazem aquilo que, no fundo, procuram destruir. Agir que desativa a potência ordenadora e identitária do código no momento mesmo em que tal ordenação parece ser aplicada. Contrariamente, por exemplo, aos trabalhos de Jeff Koons e Cicciolina (como Made in Heaven)  onde os mesmos códigos da pornografia eram encenados de maneira absolutamente “imanente” e sem distâncias produzindo assim uma subjetivação que literaliza os sujeitos em uma cena fetichizada, o trabalho de Chloé des Lysses seria a apresentação de uma potência profanadora capaz de desativar o fetichismo social ao levar o impessoal ao seu extremo auto-reflexivo, este impessoal que ela traz no seu rosto ao fazê-lo portar as marcas da indiferença em relação àquilo que o resto de seu corpo faz[44].

Que tal estrutura da ação tenha uma força política explosiva, como parece indicar Agamben, eis algo que, infelizmente, não é totalmente certo. É fato que Agamben compreende este e outros exemplos a partir de um regime de recuperação do impessoal enquanto estratégia de desarticulação de dispositivos de subjetivação e, estratégia de crítica a um poder vinculado exatamente à potência de subjetivação. Anteriormente, em outro artigo do livro, ele havia citado um pequeno texto de Foucault a fim de falar sobre um certo modo de encenação da vida que seria capaz de romper a força identitária das imagens de si no ato mesmo em que assume tais imagens. Até porque: “a subjetividade  se mostra e resiste com mais força no ponto em que os dispositivos a apreendem e a colocam em cena”[45]. Mas há alguns problemas que decorrem daí.

Primeiro, poderíamos partir do exemplo fornecido pelo próprio Agamben e compreender as experiências de Chloé des Lysses de uma maneira distinta. O caráter de estranhamento de suas fotos vem do fato dela estar absorta em dois códigos que apenas em aparência são contrários e excludentes. Mas este estranhamento é a revelação de uma verdade própria aos modos atuais de reprodução social. No fundo, ela acaba por revelar a solidariedade profunda entre dois pólos hiperfetichizados da economia libidinal contemporânea (a indústria da moda e a indústria da pornografia) que, conjuntamente, funcionam como duas peças  de um dispositivo disciplinar fundamental da bio-política contemporânea. No desvelamento desta solidariedade, a fascinação fetichista, longe de ser desativada, perpetua-se. Tal perpetuação da fascinação pode ser explicada.

Há muito nossos dispositivos disciplinares não procuram mais produzir subjetividades através da internalização de sistemas unificados de condutas e regras de práticas corporais. Não vivemos mais na época em que a ideologia procurava naturalizar modelos normativos de conduta e tipos sociais ideais, até porque isto exigiria identificações com tipos sociais pautadas pela ética da convicção; o que é impossível em situações de crise de legitimidade como a nossa. Mas notemos esta disposição atual da indústria cultural em ironizar a todo momento aquilo que ela própria apresenta. Esta auto-derrisão é uma maneira astuta de perenizar estruturas narrativas e quadros de socialização, mesmo reconhecendo que eles já estão completamente arruinados. Lembremos, por exemplo, como a publicidade contemporânea e a cultura de massa estão repletas de padrões de condutas construído através de tipos ideais para as quais convergem disposições aparentemente contrárias. Mulheres, ao mesmo tempo, lascivas e puras, crianças, ao mesmo tempo, adultas e infantis. Ou seja, um modo de ser próprio a uma era da flexibilização de padrões de identificação e de suave anulação de contrários. Modo de desarticular contrários que é parte constitutiva de um processo de subjetivação organicamente vinculado ao regime de funcionamento “desterritorializado” do Capital.

Levando tal situação em conta, podemos afirmar que uma época como esta desenvolveu dispositivos disciplinares que são subjetivados “de maneira paródica” por procurarem levar sujeitos a constituirem sexualidades e economias libidinais que absorvem, ao mesmo tempo, o código e sua negação. Neste sentido, a paródia, longe de ter uma força profanadora, parece ser, na verdade, a lógica mesma de funcionamento dos dispositivos disciplinares da bio-política contemporânea. Pois a “administração dos corpos” só é possível não através do vínculo a mandatos simbólicos coesos, mas através da internalização de tipos ideais e práticas que transgridem suas próprias disposições de conduta, tipos ideais próprios a situações de anomia. Neste sentido, a vida nua enquanto vida jogada em zonas de anomia não é condição apenas dos prisioneiros de Guantanamo, mas condição atualizada em todo processo de socialização e individuação na contemporaneidade.

Com isto em mente, vale a pena notar que as expectativas políticas depositadas por Agamben em práticas profanadoras só podem se colocar como dotadas de forte potencial renovador por pressuporem uma Lei normativa que talvez não exista mais. A paródia orienta a crítica ao operar através da corrosão da legitimidade do sistema de justificação de crenças da instância hegemônica de poder. Ela pressupõe assim uma Lei que precisa garantir a legitimidade de seus enunciados ao esconder suas contradições e seus interesses. Uma Lei que precisa organizar e naturalizar processos de separação entre sagrado e profano, Lei que, por sua vez, teria como correlato a posição de falsa consciências marcadas pelo desconhecimento ideológico. Como se estivéssemos ainda às voltas como figuras da ideologia dependentes das temáticas da reificação, da falsa consciência e da alienação na dimensão da aparência. 

No entanto, nada disto é certo atualmente. E bem provável que a contemporaneidade esteja diante de uma situação histórica na qual a própria Lei normativa tende a funcionar de maneira paródica e auto-derrisória[46]. Este fato está vinculado a uma modificação maior nos modos de operação da ideologia já diagnosticado desde Adorno: a ironização absoluta dos modos de vida e condutas. Ironização que nos coloca diante daquilo que Peter Sloterdijk um dia chamou de ideologia reflexiva, posição ideológica que porta em si mesma a  negação dos conteúdos que ela apresenta. Maneira astuta de perpetuá-los mesmo em situações históricas nas quais eles não podem mais esperar enraizamento substancial algum.

Se este for realmente o caso, o que dizer então de práticas políticas que procuram tirar sua força subversiva da paródia em contextos sócio-culturais nos quais o poder já ri das suas próprias injunções? Não seria o próprio Agamben quem melhor nos mostrou esta auto-derrisão do poder através da compreensão da centralidade da lógica da exceção enquanto suspensão legal da Lei, como se a Lei já trouxesse em si mesma o embaralhamento de seus modos de aplicação? E não seria seus exemplos profanadores a melhor exposição da estrutura disciplinar de uma lógica da soberania que ele mesmo nos ensinou a ver? O próprio Agamben parece compreender o caráter arriscado de sua aposta ao reconhecer que:

 

os dispositivos de poder sempre são duplos: eles resultam, de um lado, de um comportamento individual de subjetivação, de outro, da captura deste comportamento no interior de uma esfera separada[47].

 

No entanto, o que fazer quando os dispositivos de poder parecem mimetizar nossas próprias ações profanadoras? Agamben é o primeiro a reconhecer que, em sua fase terminal, o capitalismo não é outra coisa que um dispositivo gigantesco para capturar comportamentos profanadores. O que lhe deixa ao menos com a tarefa de fornecer critérios seguros de distinção entre uma profanação de real conteúdo disruptivo e seu simulacro, esta secularização operada pela lógica contemporânea do capitalismo. Agamben chega a indicar modos de realizar tal tarefa ao defender distinções entre uso profanador e consumo pensado como submissão dos objetos ao gozo advindo do direito de propriedade, objetos sunmetidos à lógica utilitária do serviço dos bens. Mas não é certo que os exemplos por ele escolhidos desempenhem bem esta função de partilha. Pois talvez tais exemplos apenas demonstrem como: “a anomia mais desenfreada mostra sua paródica conexão com o nomos”, evidenciando “sob a forma da paródia, a anomia interna ao direito, o estado de emergência como pulsão anômica no próprio coração do nomos” [48]. Fica aqui, no entanto, a certeza de que, através destas articulações entre ontologia, política e direito, Agamben nos fornece um quadro norteador de reflexões sobre a estrutura da práxis social contemporânea e seus desafios.

 

Materialismo e experiência metafísica

 

            Por outro lado, não deixa de ser irônico que um pensamento que procura um certo materalismo capaz de permitir a recuperação da imanência encontre em seu caminho a noção de paródia enquanto dispositivo de configuração da ação. Como se só pudéssemos alcançar a imanência sub specie ironiae. Como se a identidade imediata fosse uma questão de reconhecimento de uma potência que só passa ao ato quando desativa a solidariedade entre norma e transgressão. No entanto, é possível que haja várias formas de desativar tal solidariedade, o que complexifica a tarefa de Agamben ou, na pior das hipóteses, coloca tal tarefa no limite da aporia.

De qualquer forma, podemos tentar organizar este movimento próprio à experiência intelectual de Agamben dizendo que ela parte da procura em expor as conseqüências  políticas de uma ontologia da negatividade que aproximariam Hegel e Heidegger. Conseqüências claramente expostas através dos problemas próprios à noção de poder soberano como uma espécie de fundamento negativo e “ex-timo” do ordenamento jurídico. No entanto, contra tal ontologia, Agamben procura recorrer a um materialismo fundado em uma noção de imanência que parece, sintomaticamente, precisar fazer apelo àquilo que o próprio Agamben nega. Basta lembrarmos como, à sua maneira, a paródia também é dependente de um pensamento da negação. Para ser mais preciso, ela é  dependente de uma estética da inadequação e de posição da aparência como mera aparência desprovida de finalidade. O que talvez nos demonstre a impossibilidade de defender alguma forma de materialismo desprovido de motivos de transcendência e de negatividade.

            Por outro lado, talvez possamos defender uma outra maneira de compor a “metafísica da negatividade” proposta por Agamben em A linguagem e a morte, principalmente no que concerne a Hegel. Isto talvez nos levaria a pensar um outro regime de articulação entre ontologia e práxis política, assim como uma outra definição do que pode vir a ser uma perspectiva materialista.

Nós vimos como Agamben procurava afirmar uma simetria fundamental a respeito dos modos de reflexão do problema da relação entre linguagem e ser em Hegel e Heidegger. A peça maior desta simetria seria a proximidade entre o Dasein hedeiggeriano e o Diese hegeliano. Nos dois casos teríamos uma certa inversão da impossibilidade de designação em manifestação da negatividade de um ser marcado por operações de transcendência. Mas há uma certa parcialidade nesta leitura. É claro que podemos hipostasiar afirmações hegelianas como:

 

(...) o mais verdadeiro é a linguagem: nela refutamos imediatamente nosso visar, e porque o universal é o verdadeiro da certeza sensível, e a linguagem só exprime esse verdadeiro, está pois totalmente excluído que possamos dizer o ser sensível que visamos[49].

 

Um pouco como se a dialética anulasse tudo o que é da ordem do vínculo entre sensível e sentido. No entanto, para Hegel, o fracasso da apresentação imediata do acontecimento singular (ou da referência enquanto ser sensível), não significa anulação simples de sua dignidade ontológica. Notemos um ponto fundamental que diz respeito ao destino da referência. Ao afirmar que está excluído que possamos dizer o ser sensível, pode parecer que Hegel nos levaria a afirmar que a linguagem não pode dar conta de maneira satisfatória do problema da referência, a não ser que admitamos que a referência é sem sentido, salvo em relação a um sistema diferencial de coordenadas. Poderíamos deduzir assim que há uma arbitrariedade fundamental da linguagem, vinculada à abstração necessária da linguagem em relação ao sensível, que nos impediria de estabelecermos relações com a Coisa.

No entanto, a tentativa de recuperar o que inicialmente aparece como exterioridade do sensível em relação ao sistema lingüístico de diferenças e oposições será o motor mesmo da dialética. O problema levantado pela tentativa de designação da singularidade ancorada no sensível não se esgota na compreensão da impossibilidade da realização das expectativas que guiavam a certeza sensível. Na verdade, esta é apenas a figura inicial de um problema que aparecerá de maneira reiterada no interior da filosofia hegeliana e que diz respeito aos modos de encaminhamento da dialética entre, de um lado, regras, sistemas e modos de estruturação de relações que aspiravam validade universal e, de outro, casos empíricos particulares capazes de determinar conteúdos. Dialética relativa à determinação de modos fundamentados de indexação entre regra e caso que será constantemente mobilizada por Hegel na problematização das condições de possibilidade de realização das aspirações práticas da razão. Daí porque Robert Brandom está correto em salientar que, com Hegel:

 

O problema do entendimento da natureza e das condições de possibilidade (no sentido de inteligibilidade) de normatividade conceitual [ou seja, do conceito como norma que traz, em si, o modo de determinação dos casos que caem sob sua extensão] move-se para o centro[50].

 

No entanto, não podemos esquecer que, no caso de Hegel, esta dialética não implica em anulação simples da particularidade do caso pela linguagem. Ao contrário, ela implica em reconstituição da estrutura de produção de sentido própria à linguagem, reconstituição que implica na passagem de um regime representativo a um regime especulativo da linguagem, através do reconhecimento da resistência da experiência sensível à conceitualização. Um reconhecimento que obriga a reconstrução do que significa, para Hegel, conceitualizar. Ou seja, há uma dimensão fundamental do movimento do conceito no qual a resistência do sensível nega a universalidade da linguagem, já que tal resistência é realização material de uma negatividade provida de dignidade ontológica.

O reconhecimento de tal resistência traz também consequências políticas precisas que talvez fiquem mais claras quando passamos de Hegel a Adorno[51]. Pois algo desta problemática pode servir para iluminar um certo aspecto da querela entre Adorno e Benjamin a propósito de  A Paris no segundo império. Se levarmos em conta qual é o modo e as categorias de confrontação com as obras de arte desenvolvidos por Adorno, podemos vislumbrar uma dimensão importante do seu desconforto em relação à maneira com que Benjamin articula os processos de negociação entre produção estética e situação sócio-econômica.

O que realmente incomoda Adorno é uma certa interpretação que parece guiar-se a partir da crença da visibilidade integral dos mecanismos de produção de sentido através da sobreposição entre traços da produção estética de Baudelaire e dinâmicas sociais dos capitalismo. Agamben insiste que Adorno critica em Benjamin esta "representação estupefata da realidade", este "materialismo vulgar"  resultante da falta de mediação entre processo social global e características da obra. Como se Adorno não pudesse suportar um leitura que não atualizasse a relação de causa e efeito, relação ainda viva na noção de mediação, entre o todo e as partes. E, neste momento, Agamben não deixa de aproximar a posição de Adorno do "todo como verdadeiro" de Hegel. É interessante notar que este tipo de crítica fora feita por Lyotard em Adorno como diavolo.

No entanto, esta leitura desconsidera que o verdadeiro foco da análise adorniana e é exatamente aquilo que ele tentará apreender de maneira mais clara ao falar de “resistência dos materiais” em todo produção estética. Resistência que também pode ser compreendida como uma certa opacidade do sensível que impede toda verdadeira obra de arte ser uma construção integral funcionalmente articulada. É tal resistência que a leitura benjaminiana de Baudelaire parece perder. Pois, quando Adorno fala em mediação pela universalidade do processo social global, não devemos esquecer que tal mediação só é possível quando o próprio processo tiver sua inteligibilidade reconfigurada a partir da sua mediação pelo material, por aquilo que, como dirá a Dialética Negativa, é irredutivelmente ôntico. Ou seja, a relação entre os dois pólos não é uma negação abstrata do primeiro pelo segundo, mas processo no qual a opacidade do sensível nega, de maneira dialética, as aspirações totalizantes do processo social global. O que não poderia ser diferente para alguém que nunca deixou de insistir que "o todo é o não-verdadeiro".

Muito haveria a se dizer a este respeito. Mas fica aqui apenas a indicação de como tais considerações abrem um campo profícuo para reflexões políticas. Adorno também compartilha com Agamben esta crítica ao vínculo estrito entre político e jurídico (mesmo que este jurídico inclua a norma e sua transgressão). Ele também acredita que: “Ética é a vida que não se contenta de submeter-se a lei moral, mas que aceita encenar-se em seus gestos de maneira irrevogável e sem a mínima reserva”. No entanto, este para além da Lei não traz uma práxis social tornada transparente a si mesma. Antes, ela nos leva à conclusão de que: “todo ato moral [e todo verdadeiro ato em geral] é falível (Fehlbarkeit)”[52], pois ele é aquilo que se coloca na ausência de garantias da Lei, sem contudo sustentar-se no decisionismo da imanência da vontade como fonte de sentido. Sua falibilidade é traço essencial: o ato moral é aquele que deve ser assumido  enquanto falível, como se racional fosse saber agir sem garantias de orientação na conduta. Mas saber agir sem garantias implica em reconhecer a opacidade de todo ato, seu caráter irredutivelmente patológico no sentido kantiano. Desta forma, nos confrontamos com uma ação que, por saber-se falível e patológica, deve-se reorientar-se continuamente a partir do seu desdobramento em contextos que nunca serão completamente legíveis. É desta forma que, tal como Agamben, Adorno procura fundar a praxis social em uma perspectiva materialista, mas trata-se de um materialismo que procura indicar as situações materiais que se relacionam a uma experiência metafísica vinculada a uma certa noção dialética de negatividade que não se deixa ler simplesmente como transgressão. Maneira inusitada de reconstruir um “materialismo dialético”. O que apenas nos demonstra como esta articulação, revelada pela experiência intelectual de Agamben, entre ontologia, política e recuperação do materialismo, é uma via que  está longe de ser esgotada.

 

 

Vladimir Safatle

 



[1] AGAMBEN, Infância e história, p. 146

[2] idem, p. 140

[3] idem, p. 145

[4] HEIDEGGER, Que é a metafísica? In Os pensadores, p. 234

[5] HEIDEGGER, Die frage nach der Technik, p. 35

[6] idem, p. 236

[7] KANT, Crítica da razão pura, B 132

[8] KANT, Crítica da razão pura, B 137

[9] HEGEL, Fenomenologia, par. 240

[10] HEGEL, Fenomenologia, par. 241

[11] idem, p. 235

[12] SARTRE, L´être et le  néant, p. 41

[13] HEGEL, WL p. 18

[14] ADORNO, Negative Dialektik, Frankfurt, Surhkamp, 1973, p. 125

[15] idem, p. 239

[16] idem, p. 246

[17] HEIDEGGER, idem, p. 237

[18] idem, p. 239

[19] HEGEL, Phänomenologie, p. 71

[20] HEGEl, 2000, par 448

[21] AGAMBEN, A linguagem e a morte, p. 56. Basta lembrarmos das considerações de Jakobson sobre os dëiicos (ou shifters) enquanto unidades linguísticas que enviam sua significação ao ato mesmo de indicação e de atualização de contextos de enunciação. Tais considerações já foram usadas para dar conta do problema da linguagem em Hegel por LYOTARD, Discours, figure, Paris. Klincksieck, 2000 e ARANTES, Ressentimento da dialética, São Paulo, Paz e Terra, 1996..

[22] idem, p. 116

[23] idem, p. 74

[24] AGAMBEN, idem, p. 143

[25] Isto o leva, ao falar sobre soberania e exceção, a assumir paralelismos prenhes de consequência como: “O direito parece não poder existir senão através de uma captura da anomia, assim como a linguagem só pode existir através do aprisionamento do não linguístico [o ser] (...) A relação entre norma e realidade implica a suspensão da norma, assim como, na ontologia a relação entre linguagem e mundo implica a suspensão da denotação sob a forma de uma langue” (AGAMBEN, Estado de Exceção, p. 91).

[26] AGAMBEN, Estado de exceção, pp. 27-28

[27] AGAMBEN, Homo sacer, p. 65

[28] HABERMAS, The horror of autonomy in The New conservatism, p. 137

[29] BATAILLE, L´érotisme, p. 71

[30] idem, p. 42

[31] Folha de São Paulo, 18/10/2005

[32] FOUCAULT, Histoire de la séxualité II, Paris, Gallimard,  p. 120

[33] Cf. FOUCAULT, idem, p. 19

[34] FOUCAULT, Dits et écrits II, p. 1389

[35] FOUCAULT, Dits et écrits I, p. 267.

[36] FOUCAULT, Dits et écrits I, p. 442

[37] AGAMBEN, Estado de exceção, p. 133

[38] “Antes de Mallarmé, escrever consistia em estabelecer sua palavra no interior de uma língua dada, de maneira que a obra de linguagem seria da mesma natureza que qualquer outra linguagem, aos signos aproximados da Retórica, do Sujeito ou das Imagens. No final do século XIX (na época do descobrimento da psicanálise ou quase) a literatura se transformou em uma palavra que inscrevia nela seu próprio princípio de decifração ou, em todo caso, ela supunha, sob cada uma de suas frases, sob cada uma de suas palavras, o poder de modificar soberanamente os valores e as significações da língua à qual, apesar de tudo, ela pertencia; ela suspendia o reino da língua em um gesto atual de escritura” (FOUCAULT, Dits et écrits I, p. 447)

[39] AGAMBEN, Profanations, p. 86

[40] AGAMBEN, Profanations, Paris, Rivages, 2005, p. 42

[41] idem, p. 108

[42] Ver os capítulo de Lógica do sentido dedicados à distinção entre ironia, humor e sarcasmo. No entanto, o tournant realmente irônico consistiria em mostrar que esta noção de “meios sem fim” não está muito distante da posição kojèveana do sábio na pós-história. Segundo Kojève, como o Discurso pós-histórico pode enunciar a última palavra e revelar o Ser não há mais necessidade da ação negadora do homem.  O Sábio poderia, então, dedicar-se ao cultivo do snobismo através da arte, do jogo, do amor etc. Aqui, para além dos enganos da satisfação animal do desejo ilustrada na destruição infinita ruim do consumo dos objetos, a verdadeira ação encontraria satisfação nas representações formalizadas e teatralizadas do sujeito. Ela deleita-se na artificialidade leve das ações gratuitas e sem finalidade. Se a História não fala mais, então o Sábio fabrica, ele mesmo, a negatividade gratuita. Se esta aproximação entre Agamben e Kojève realmente tiver relevância, então teremos um movimento peculiar de afastamento de Hegel para recuperar um “outro Hegel”, um “Hegel errado, mas vivo”, para usar a expressão feliz de Paulo Eduardo Arantes.

[43] Ver, principalmente, DES LYSSES, Porn art e idem, Le Marquis de Sade revue et corrigée par les filles.

[44] Talvez seja pensando nela que Agamben escreve : “A pornografia, que mantém seu próprio fantasma na intangibilidade através do gesto mesmo com o qual ela o aproxima deixando-o insuportável a olhar, é a forma escatológica da paródia” (AGAMBEN, Profanations, p. 53). Ou seja, a literalidade “intangível” da pornografia seria uma espécie de estranha contraprova da impossibilidade da linguagem alcançar as coisas e da impossibilidade da coisa encontrar seu nome próprio. Impossibilidade que seria a essëncia mesma da paródia.

[45] AGAMBEN, idem, p. 90

[46] A este respeito, tomo a liberdade de remeter a SAFATLE, Sobre um riso que não reconcilia: ironia e certos modos de funcionamento da ideologia, Revista Margem Esquerda, n.5, 2005

[47] AGAMBEN, Profanations, Paris: Payot et Rivages, 2005, p. 114

[48] AGAMBEN, Estado de Exceção, p. 110

[49] HEGEL, Fenomenologia, p. 72

[50] BRANDOM, Tales of the mighty death, p. 212

[51] Já que há similitudes entre Adorno e Hegel neste ponto, isto a despeito de colocações do próprio Adorno. A este respeito, remeto a SAFATLE, Linguagem e negação em Hegel, Revista DoisPontos, 2006

[52] ADORNO, ND, p. 241 [tradução modificada]