O que vem após a imagem de si?

os casos Cindy Sherman e Jeff Koons

 

 

Pode-se apostar que o homem desaparecerá,

como um rosto de areia no limite do mar

Michel Foucault

 

 

            A confrontação com o informe e com experiências de despersonalização é um motivo maior que organiza a produção artística contemporânea[1]. Tal formalização daquilo que aparece como limite às capacidades construtivas e individualizadoras da forma estética é um procedimento que deve ser inserido em uma longa tradição da arte do século XX vinculada à estetização da dissolução do Eu. Tema constante desde o modernismo, as múltiplas formas de crítica às capacidades sintéticas e ordenadoras do Eu funcionaram como peça maior de constituição da racionalidade de obras que procuravam não mais fazer apelo a centralidade de categorias como “expressão subjetiva” e “espontaneidade” da imaginação criadora. Por sua vez, a crítica à expressão foi, muitas vezes, o suporte da desqualificação de um regime de imagens vinculado à dinâmica da representação. Pois a expressão subjetiva seria, na verdade, manifestação de um caráter constituinte da subjetividade pensado como projeção narcísica de um mundo de objetos construídos a partir da imagem do Eu e da entificação de seu princípio de identidade. Assim, dissolver o Eu enquanto potência expressiva significaria reconstituir a possibilidade de algo parecido a uma experiência não-narcísica de objeto.

Esta expectativa utópica depositada na despersonalização foi sintetizada, entre outros, por Adorno ainda na aurora dos anos 70: “Os homens só são humanos”, dirá Adorno, “quando não agem e não se põem (setzen) mais como pessoas; esta parte difusa da natureza na qual os homens não são pessoas assemelha-se ao delineamento de uma essência (Wesen) inteligível, a um Si que seria desprovido de Eu (jenes Selbst, das vom Ich erlöst wäre). A arte contemporânea sugere algo disto”[2].

 

A era da fragilização das imagens do corpo

 

Poderíamos então nos perguntar sobre como a arte contemporânea parece sugerir este Si desprovido de Eu. Mas a enunciação de tal pergunta se confrontaria rapidamente com uma multiplicidade de regimes de despersonalização em operação na produção artística contemporânea. Viabilizar tal pergunta implica em escolher uma via regional de abordagem do trabalho.

Digamos pois que, dentre tais regimes de despersonalização, talvez mereça atenção especial aquele representado pela obra da fotógrafa norte-americana Cindy Sherman. De fato, poucos artistas contemporâneos problematizaram de maneira tão radical a articulação entre corporeidade, imagem e ipseidade, isto a ponto de elevar o informe a categoria de expressão do que não se constitui mais a partir dos princípios sintéticos de um Eu. Sua obra porta a aspiração silenciosa em formar um sistema no qual cada foto só ganha inteligibilidade no interior da cadeia significante produzida pelo conjunto. Isto na medida em que todos seus ensaios fotográficos tratam da mesma questão, a questão mais delicada da estrutura do narcisismo: a representação do corpo próprio e seus impasses. O nó da tensão do projeto de Sherman encontra-se na extensão do adjetivo “próprio”. O que é meu no corpo ? Ou seja, o que significa subjetivar o corpo ? Tais questões levarão Sherman a trilhar uma trajetória cujos momentos maiores são prenhes de significação[3].

O primeiro grande ensaio fotográfico de Sherman, Untitled Film Stills, (1977-1980), já colocava claramente o problema da relação entre identidade e imagem do corpo; lógica que guiará os ensaios subsequentes até 1982 (Rear Screen Pictures e Centerfolds). Untitled Film Stills consistia em vários auto-retratos nos quais Sherman apresentava-se em situações que reenviavam à repetição destas cenas cinematográficas que estruturam o imaginário produzido pela indústria cultural e que servem de padrão de socialização e identificação em nossas sociedades de consumo. A cada fotograma, ela absorvia uma gramática de aparências compostas por gestos, poses e estilos plenamente codificados, prêt-à-interpréter, colocando em cena alguns fantasmas fundamentais do feminino no ocidente.

A ambiência visual e as vestimentas nos reenviavam principalmente aos anos cinquenta : momento de euforia que seguiu ao trauma da Guerra e no qual as grandes promessas de  modernização social do capitalismo foram enunciadas. Esta caraterística de promessa de gozo pode nos indicar a função da ambiência em Untitled Film Stills. Trata-se de fornecer um quadro de significações fixas que nos indica como estamos no interior de cenas fantasmáticas. Notemos que o tempo representado aqui não é o tempo da contingência e do efêmero próprio aos acontecimentos do Real. Ao contrário, trata-se do tempo estático do fantasma; tempo morto que não conhece fluxo nem diferença.

            Aqui, devemos sublinhar um deslocamento operado por Sherman. Nós sabemos que os auto-retratos foram sempre o espaço privilegiado para o desdobramento da vida interior e da profundidade psicológica. Mas os ensaios de Sherman invertem esta função expressiva do auto-retrato, na medida em que eles aparecem como a formalização do impossível da imagem de si como representação do singular. Pois o que vemos nas fotos é o sujeito aprisionado em imagens no limite do impessoal, já que elas sào produzidas por e para o Outro, representado aqui pelo sistema simbólico de valores disponbilizados pela indústria cultural. Tudo se passa como se Sherman nos mostrasse como ser corpo é estar atado ao olhar do Outro. Pois a imagem do corpo próprio é inicialmente o topos fantasmático no qual o Eu coloca-se para poder advir objeto do desejo do Outro[4]. O que nos lembra que não há nada de próprio na imagem do corpo, já que suas formas ideias são captadas do exterior. O corpo aparece assim como espaço por excelência de alienação.

Mas lembremos aqui que haveria uma estratégia pós-moderna de resolução deste impasse do corpo próprio como topos fantasmático. Bastaria ver nesta multiplicação de máscaras e de personas a afirmação de uma subjetividade enfím liberada do Eu unificador e capaz de gozar da plasticidade de seus mascaramentos. Interpretação que poderia ser reforçada se víssemos no procedimento de Sherman a revelação da essência do feminino como mascarada.

 Esta leitura pós-moderna parte do diagnóstico da radicalização contemporânea da dissolução dos horizontes estáveis de determinação de identidades e da aceleração da ruptura dos modos tradicionais de vida para afirmar a dissolução do Eu enquanto imagem unificada do corpo próprio e princípio de auto-identidade. Dissolução socialmente potencializada pelo fato de que : “no interior da cultura de consumo, o corpo sempre foi apresentado como um objeto pronto para transformações”[5]. Ou seja, ao invés de locus da identidade estável, o corpo fornecido pelos setores mais avançados da industria cultural e pela retórica do consumo aparece cada vez mais como matéria plástica, espaço de afirmação da multiplicidade.

À primeira vista, poderia parecer que a hegemonia de representações desta natureza estaria, por exemplo, marcando com o selo da obsolescência a idéia frankfurtiana da indústria cultural como negação absoluta da individualidade. Pois, ao invés das operações de socialização através da exigência de identificação com um conjunto determinado de imagens ideais, estaríamos agora diante de uma indústria cultural que incita a reconfiguração contínua e a construção performativa de identidades. Neste sentido, a obra de Sherman seria apenas a estetização mais bem acabada deste tempo histórico de reconfiguraçào plástica de si, Tempo capaz de assumir a lógica da fragilização das imagens do corpo como princípio de disseminação, como setor de crítica das ilusões da identidade.

No entanto, e este ponto é de suma importância para nossa discussão, o diagnóstico contemporâneo da dissolução do Eu é forte se pensarmos no Eu como unidade sintética, mas é fraco se pensarmos no Eu como objeto do fantasma, como lugar no qual o sujeito se coloca para tornar-se objeto do desejo do Outro. A flexibilidade advinda da possibilidade de reconstrução contínua da imagem do corpo apenas demonstra que, no nosso momento histórico, o desejo do Outro, este desejo com o qual me identifico a fim de saber como orientar minha conduta e escolhas, afirma-se sem precisar disponibilizar conteúdos privilegiados de identificação ao Eu, o que Lacan já havia claramente percebido ao lembrar que a experiência determinante de confrontação subjetiva com o desejo do Outro estava presente no angustiante “O que faz de mim objeto do gozo do olhar do Outro?”.Questão necessariamente angustiante porque o desejo do Outro não disponibiliza um objeto adequado ao qual o Eu deva conformar-se. O que pode significar que ele disponibiliza, principalmente, a forma vazia da reconfiguração de si. Isto implica, entre outras coisas, na afirmação de que o sistema de mercadorias deve disponibilizar determinações de maneira cada vez mais descartável e de maneira cada vez mais rápida, importando-se cada vez menos com o pretenso conteúdo de tais determinações. Em última instância, isto nos faz passar de uma sociedade da satisfação administrada para uma sociedade da insatisfação administrada, na qual ninguém realmente acredita nas promessas de gozo veiculadas pelo sistema de mercadorias (já que elas são postas para serem descartadas), a começar pelo próprio sistema, que as apresenta de maneira cada vez mais auto-irônica e “crítica”[6]. Ou seja, estamos diante de uma sociedade na qual os vínculos com os objetos (incluindo aqui os vínculos com a imagem do corpo próprio) são frágeis, mas que, ao mesmo tempo, é capaz de se alimentar desta fragilidade. Até porque não se trata de disponibilizar exatamente conteúdos determinados de representações sociais através do mercado. Trata-se, volto a insistir, de disponibilizar a forma vazia da reconfiguração incessante que passa por e anula todo conteúdo determinado. Podemos assim dizer que a transformação da imagem do corpo em mercadoria implica em reconfiguração incessante do corpo.

            Neste sentido, o desenvolvimento do trabalho de Sherman ganha ainda mais relevância. Pois ele nos mostra que, em um contexto histórico de flexibilização da imagem do corpo próprio e das representações de si, as aspirações de sngularidade tendem a migrar para a posição da inadequação do corpo à imagem. O que pode transformar, de maneira inesperada, a recuperação do informe e da despersonalização em estratégia de defesa da irredutibilidade do sujeito.

 

Sherman e Koons no interior de um jogo de aparências

 

            E desta resistência do corpo à imagem que são feitos os ensaios subsequentes de Sherman, principalmente Fashion (1983-1984) e History portraits.(1989-1990) O primeiro é um ensaio no qual Sherman aparece em roupas de grandes estilistas, já o segundo mostra a artista representando cenas que remetem a grandes quadros da pintura ocidental.

Ao invés de simples ironização do universo da moda e de representações do feminino na história oficial da arte, devemos ler tais séries como a posição da inadequação entre, de um lado, o fetichismo da textura publicitária das fotos, das cores hiper-realistas e do figurino de grandes estilistas e, de outro, o estranhamento do corpo; como se o corpo não conseguisse mais se adequar ao fetichismo da ambiência.  Através do desconforto da modelo e da maquiagem carregada, a aparência mostra as feridas que denunciam sua condição de aparência. Esta temática da inadequação voltará em trabalhos mais recentes como estes em que Sherman aparece representando estereótipos de mulheres californianas (a divorciada, a atriz fracassada etc.), mas agora sem o glamour cinematográfico de Untitled Film Stills. Da mesma forma, ela é a chave compreensiva para outro trabalho recente, Clowns (2004): uma série de fotografias onde Sherman aparece, com a ajuda de interferência digital, em fantasias de palhaço. Fotografias que trazem sempre um riso aterrador, uma alegria pronta a se transformar em decepção.

            O fato é que, neste contexto, a escolha do palhaço como princípio de representação não poderia ser mais sintomática. Afinal, a aparência que expõe sua própria inadequação não seria a melhor definição de paródia? E a paródia não seria o destino “natural” da imagem de si, ao mesmo tempo fragilizada e disseminada? Uma paródia que nos envia à sua acepção antiga de: “separação entre canto e palavra, entre melos e logos. Originalmente, na música grega, a melodia devia corresponder ao ritmo e à palavra. Quando, na recitação do poema homérico, este nó tradicional era rompido e os rapsodos introduziam melodias percebidas como discordantes, dizia-se que eles cantavam para ten oden, a contra-canto ou ao lado do canto”[7]. Ou seja, a paródia como estetização da inadequação. É neste ponto que uma comparação entre os trabalhos de Cindy Sherman e Jeff Koons pode ser instrutiva. De fato, a comparação entre as duas obras demonstra a existência de problemáticas em comum e estratégias discursivas distintas.

            Tal comparação é relevante por diversas razões. Com um senso de oportunidade de apropriação talvez só comparável ao de Andy Warhol, Jeff Koons e Cindy Sherman souberam levar às últimas conseqüências as ambigüidades da relação entre arte e mercadoria na contemporaneidade. Poucos foram tão longe neste arriscado jogo de indiferenciação entre publicidade, pornografia, estereótipos da cultura pop e artesanato de beira de estrada.

Em uma de suas frases célebres, Koons afirmou querer mostrar o “sex-appel do inorgânico”. A expressão benjaminiana é, de fato, uma boa definição do programa estético que anima parte da experiência estética depois da pop art. Lembremos como Andy Warhol dizia ser sua arte animada por um “amor às coisas, pois fazemos sempre a mesma coisa sem parar”. Nos dois casos, a arte aparece como meio de exposição daquilo que, no interior do inorgânico, do coisificado, do reificado e do que é aparentemente desprovido de vida (já que submetido à repetição mecânica), é capaz de provocar o olhar fascinado. Sherman não faz outra coisa ao repetir de maneira mimética os estereótipos fundamentais do feminino na indústria cultural.

No entanto, notemos que, nesses dois casos, o inorgânico não é o nome próprio do objeto reduzido a sua coisidade indiferente, a sua condição de material que resiste a toda exposição de espiritualidade projetada pela subjetividade. O que une Koons e Sherman é uma consciência histórica extremamente precisa que define claramente a figura deste inorgânico com o qual a arte deve deparar-se e fazer seu.

Eles sabem que, na modernidade capitalista, a integralidade das esferas de valores que compõem a vida (cultura, arte, trabalho, tradição etc.) é colonizada pela abstração morta do fetichismo próprio à forma-mercadoria. Mas esta abstração fetichista tem o estranho estatuto de um inorgânico que transpira sex-appeal, de um objeto mortificado que ganha vida por ser investido libidinalmente pelo nosso “amor pelas coisas”. Um morto que age como se estivesse vivo e que, talvez, seja o que há de mais vivo na nossa sociedade.

Repetindo uma certa paixão pelo real que parece ter sido a marca registrada da arte no século XX, Koons afirma: “Creio que minha arte funciona no domínio do objetivo”. No que ele tem razão. Mas não podemos esquecer do paradoxo que significa falar de objetivo em uma sociedade na qual uma certa fantasia social é o estofo dos processos elementares de trocas sociais e de identificação societária. Vale a pena lembrar como Marx falava de “objetividade fantasmática” para referir-se ao sistema de determinação social de valores. No fundo, Koons tem consciência clara de tudo isso. Não é por outra razão que sua arte “objetiva”, arte que procura um certo retorno ao objeto contra a “ditadura” da expressão subjetiva e da "espontaneidade" da imaginação criadora vai encontrar seus materiais nas formas e domínios mais fetichizados da cultura (pornografia, publicidade e consumo infantil). Não é por outra razão que este é o mesmo protocolo de constituição das figuras do Si mesmo na obra de Sherman.

Se a arte quer retornar ao objeto, ela deve lembrar que o que há de mais “real” na nossa experiência contemporânea de objeto são os fantasmas que moldam nossas relações com as coisas. Aproveitando as considerações de Craig Owens sobre o retorno da noção de alegoria nos anos 80[8], podemos dizer que, nestes casos, o retorno ao real ganha a forma de retorno ao fantasma. O primeiro passo do realismo consiste, pois, em reconhecer a submissão dos objetos à potência do fantasma. Resultado de uma época na qual aparentemente não haveria mais sentido algum em articular o impulso artístico a alguma forma de exigência ontológica de verdade.

É tendo tal esquema em mente que devemos compreender Made in Heaven: o principal trabalho da trajetória de Jeff Koons, composto por uma série de fotos e esculturas nas quais ele aparecia em cenas de sexo explícito hiper-fetichizado com sua mulher de então, a porno-star Cicciolina. Estes “auto-retratos” não poderiam ser mais explícitos na sua lógica de mostrar o Eu como objeto do fantasma. Um objeto despersonalizado por só poder se apresentado no ponto em que os gestos e modos de gozo se configuram integralmente aos esquemas mais abstratos da gramática do sexo. Como era de se esperar, as fotografias não apresentam nada da instabilidade e alteridade do que é da ordem do sexual. Ao contrário, elas são a conformação perfeita aos gestos codificados da pornografia: daí o caráter “pedagógico” das obras, já que inspiradas em posições do Kamasutra (como as fotografias Posição três, Chupeta – Kamasutra) ou em descrições objetivas do tipo: Jeff por cima, Ejaculação, Jeff chupando Ilona. Por outro lado, a própria presença, nestes auto-retratos, do sujeito vinculado à atriz pornográfica, mulher reduzida à condição de suporte imaginário de fetiches, sempre disponível em qualquer locadora e prêt-à-jouir, já indica a afirmação da alienação do Eu em imagens codificadas e despersonalizadas de gozo. Um eu que afirma que seu verdadeiro espaço de sobrevivência é o espaço encenado do fantasma.

Aqui, vale uma digressão. Depois de uma certa crítica das ilusões da identidade, o Eu com suas expectativas de autonomia sempre foi visto como uma “ideologia privada”, como um sistema de desconhecimentos e denegações que visava mascarar o caráter eminentemente alienante dos processos de individuação e socialização. Neste sentido, há algo de profundamente estranho com Koons e sua imagens fetichizadas que se afirmam enquanto tal. Pois não podemos mais dizer aqui que estamos diante de alguma forma de desconhecimento ou de reificação narcísica. Ao contrário, a alienação ao sistema de imagens mais aparente e espetacular (a pornografia) é integralmente assumida. Ou seja, a identificação à imagem fornecida pelo Outro é tão integral e regressiva que esta “saturação da conformação” só pode ser vista como sinal de ironização e paródia.

Adorno afirmava que “a identidade era a forma originária da ideologia”[9], isto a fim de insistir que a conformação da experiência a um conceito não-problematizado e naturalizado de identidade era a verdadeira mola do poder. No entanto, vemos com Koons uma maneira paródica de tentar desativar toda possibilidade de crítica da ideologia. Pois a submissão à identificação é tão grande e estilizada que ela implica em assumir a identidade tendo consciência da sua falsidade. A ideologia é assumida de maneira “reflexiva”. Como se a maior distância e inadequação em relação ao universo fetichizado da vida social consistisse em anular toda distância, toda inadequação. Maneira de assumir a lógica da crítica do fetichismo no interior da reprodução das próprias formas fetichizadas. Ou seja, maneira de conservar imagens de Si que não tem mais força para se naturalizar, conservar imagens narcísicas sem a ilusão narcisista. O que, diga-se de passagem, é a essência mesma do fetiche: uma imagem narcísica sem denegação narcisista. Desta forma, Koons forneceu a estetização da lógica cultural do capitalismo contemporâneo e de seus processos de socialização. Processos baseados em identificações irônicas com tipos e imagens ideais de conduta[10].

 

Carne, auto-destruição da imagem de si e forma-mercadoria

 

Este não será o caminho trilhado por Sherman. Pois ela parece mais interessada na estetização deste momento em que tal inadequação pode crescer até levar simplesmente à auto-destruição da imagem do corpo próprio e o flerte com o informe.

Há dois movimentos da auto-destruição da imagem do corpo em Cindy Sherman. O primeiro está bem representado no ensaio Sex pictures, de 1992 e nas séries com bonecos reconstruídos com atributos sexuais desproporcionais. A ironia do título não podia ser maior, ainda mais se lembrarmos que se trata de um ensaio pensado como ‘resposta’ a Made in Heaven. Pois, ao contrário de Koons, é da queda do corpo fetichizado que se trata aqui.

Tudo se passa como se Sherman mostrasse como o corpo presente na dimensão do semblante é, na verdade, uma vestimenta (habillage) do corpo pulsional, ou seja, deste corpo composto pela montagem de objetos parciais que delimitam uma geografia corporal de zonas erógenas. A idéia de montagem é reforçada pela presença de bonecas no lugar de Sherman como modelo, pela conexão entre carne e artefatos de sex-shop e pela trucagem manifesta que desvela os processos de manipulação na fabricação da imagem. O desnudamento em Sex Pictures é assim obsceno no seu sentido mais forte. Ele é posição de objetos sem cena[11]. Objetos que estão fora da cena do fantasma e ilustram de uma maneira precisa o que ocorre ao corpo a partir do momento em que nos deparamos com uma “materialidade sem imagem”, para falar com Adorno, que permite ao objeto, outrora submetido à engenharia do Imaginário, portar o estranhamento do Real.

            Mas Sherman nos mostra ainda um outro procedimento de auto-destruição da imagem de si. Ela está presente em ensaios como Disasters (1986-1989) e Horror and surrealist pictures (1994-1996). De Disasters, retenhamos principalmente estas fotos nas quais o corpo desaparece pela primeira vez para dar lugar à representação de acumulações de restos (pedaços de bonecos, plásticos, vömito, dejetos orânicos em decomposição etc.). Por mais improvável que isto possa parecer, tais fotos devem ser compreendidas ainda no registro do auto-retrato pois o “desastre” que dá nome ao ensaio diz respeito à desarticulação da imagem unificadora do corpo próprio, Desarticulação que leva o sujeito a se reconhecer lá onde o orgânico e o inorgância se misturam, onde a forma não consegue mais organizar a matéria.

            Este informe mostrará seu nome próprio em algumas fotos centrais de Disasters e Horror : trata-se da inconsistência da carne. A desintegração da imagem do corpo abre assim as portas para o desvelamanto deste “anonimato inato de mim mesmo”[12] que nos lembra como : "há sempre no corpo, e devido ao fato de seu engajamento na dialética significante, algo de separado, algo de inerte : há a libra de carne"[13].

A carne como figura do real do corpo; carne que nos mostra como : “a espessura do corpo, longe de rivalizar com a espessura do mundo é, ao contrário, o único modo que tenho de ir ao coração das coisas fazendo-me mundo e transformando as coisas em carne”[14]. Através da carne descobrimos que o corpo pode nos unir diretamente às coisas através de seu ontogênese. Pois a espessura a própósito da qual Merleau-Ponty nos fala pode ser compreendida como esta experiência que nos permite perceber como o corpo pertence também à ordem da irreflexividade própria às coisas. Através do advento da carne, o sujeito encontra, na sua relação a si, algo da ordem da opacidade do que se determina como obs-tante (Gegenstande)[15], como não saturado no universo simbólico. Objeto opaco que não é outra coisa que o : “resto que, como determinante da divisão do sujeito, o faz decair de seu fantasma e o destitui como sujeito”[16], ou seja, aquilo que Lacan procura dar conta através da temática do objeto a em sua função de objeto real.

Foi posto inicialmente que toda a obra de Cindy Sherman inscrevia-se sob o signo do problema da relação entre ipseidade e corporeidade. Aqui, vemos como tal relação resolve-se no advento da carne, na medida em que ela indica o que, do corpo, não passou pelo regime alienante do corpo do Outro. A carne nos lembra que: “nem todo o corpo foi pego pelo processo de alienação”[17], Experiência de retorno ao Real do corpo que se desvela em seu aspecto mais traumático. Um trauma que vem da descoberta do corpo como coisa dentre outras coisas: despersonalização que desestrutura o sistema de identidades próprio ao eu fundando na negação de afinidades miméticas entre sujeito e a materialidade opaca  do que é coisa da natureza.

Assim, a recuperação da informidade da carne na obra de Sherman nos lembra que processos de travessia do fantasma implicam, necessariamente, novos regimes de subjetivação do corpo. A travessia da fascinação pela imagem fetichizada do corpo nos abre as portas para o reconhecimento do corpo em sua dupla inscrição ontológica : objeto opaco do mundo e subjetividade encarnada. Em suma, um objeto entre carne e imagem.

Voltando a nossa comparação anterior, podemos dizer que a peculiaridade da estratégia discursiva de Sherman consiste em indicar como tal experiência pode se dar quando nos deparamos com o estranhamento de imagens que pareciam nos ser totalmente familiares. Jogo entre estranhamento e familiaridade que provoca um colapso nas articulações costumeiras entre identidade e diferença, entre proximidade e distância. Ou ainda, quando a experiência da confrontação com o informe nos permite suspender as capacidades sintéticas do Eu. Uma confrontação que, se hipostasiada, não consegue responder aos problemas fundamentais de subjetivação. Pois ela pode se transformar em negação simples das imagens fetichizadas de corpo, instaurando uma passagem incessante nos opostos. De qualquer forma, lembramos como o setor mais avançado do consumo já é capaz de assumir, de maneira publicitária, impulsos de auto-destruição do corpo próprio. O que complexifica ainda mais a reflexão sobre o recurso à informidade como setor da forma crítica e como momento constitutivo de um processo de reorientação das relações ao corpo para além do narcisismo. 

Por outro lado, Koons nunca foi capaz de dobrar a ambigüidade na relação ao fetiche através da ambivalência e injetar destruição da fascinação pelas formas do imaginário social. Como ele mesmo diz: “Eu procuro sempre a familiaridade para que o público não seja ameaçado pelas minhas imagens”. Mas o excesso de familiaridade transforma o impulso artístico em publicidade. Assim, a ironia de Koons em relação às expectativas de resistência da arte, ironia que indicaria como nosso tempo é uma época pós-histórica na qual a própria noção de crítica à ideologia teria perdido o sentido, esconde um problema maior. Pois, quando abandonamos toda possibilidade de pensar a dialética entre arte e mercadoria de uma forma crítica, nada impede que a arte seja submetida a uma racionalidade cínica. Cinismo que indica o nome próprio do gozo advindo da transformação da arte no puro gesto de reprodução mimética do fetichismo social.

 

 

Vladimir Safatle, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, autor de “A paixão do negativo: Lacan e a dialética” (Unesp, 2006), organizador de “Um limite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise” (Unesp, 2003) e co-organizador de “Sobre arte e psicanálise” (Escuta, 2006) e “O tempo, o objeto e o avesso: ensaios de filosofia e psicanálise” (Autêntica, 2004).



[1] Ver, por exemplo, BOIS e KRAUS, Formless: a user´s guide, New York, Zone Books, 1999

[2] ADORNO, Negative Dialektik, Frankfurt, Suhrkamp, 1975, p. 274

[3] O autor deste artigo analisou em outra ocasião um regime de dissolução do Eu presente na obra de John Cage e feito em nome do retorno a uma origem anterior aos processos de individuação (ver SAFATLE, Destituição subjetiva e dissolução do eu na obra de John Cage in RIVERA e SAFATLE, Sobre arte e psicanálise, São Paulo, Escuta, 2006). Neste sentido, tal artigo articula-se com o artigo presente.

[4] De onde se segue a afirmação de Lacan: “a relação à imagem do corpo enquanto tal está ligada por algo de estrutural  a esta relação ao objeto que é a do fantasma fundamental” (LACAN, Séminaire IX, sessão do 13/.06/62)

[5] FEATHERSTONE, Body modifications, Sage, 2000; p. 2

[6] Sobre este ponto, ver SAFATLE, Depois da culpabilidade: figuras do supereu na sociedade de consumo in AIDAR e DUNKER, Zizek crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo, São Paulo, Hacker, 2004.

[7] AGAMBEN, Profanations, Paris, Rivages, 2005, p. 42

[8] Cf. OWENS, C; "The Allegorical Impulse: Toward a Theory of Postmodernism” in October, 12/13, New York, 1980.

[9] ADORNO, idem, p. 151

[10] Ver SAFATLE, Sobre um riso que não reconcilia: ironia e certos modos de funcionamento da ideologia in Margem esquerda, São Paulo, Boitempo, 2005, pp. 131-145

[11] Idéia desenvolvida por Hal Foster ao comentar tais fotos de Sherman  “onde o objeto-olhar é apresentado como se não houvesse cena para sustentá-lo, quadro de repesentação para contê-lo, sem tela” (FOSTER, Return to the real, MIT, 1996, p. 149) :

[12] MERLEAU-PONTY, Le visible et l’invisible, Gallimard, 1964; p. 163

[13] LACAN, Séminaire X, sessão do 08/05/63

[14] MERLEAU-PONTY, idem; p. 178

[15] O objeto como obs-tante (e não apenas como polo de projeção narcísica ligado à lógica do Imginário) é um tema que pode nos auxiliar no compreensão do destino do objeto no pensamento ulterior de Lacan. Lembremos, por exemlo, desta afirmação tardia : "o objeto é ob, obstáculo à expansão do Imaginário concêntrico, ou seja, englobante" (LACAN, Séminaire XXIII,.sessão do 10/03/76). Sobre est problema do objeto, tomo aqui a liberdade de remeter ao meu SAFATLE, Uma clínica do sensível: sobre a relação entre destituição subjetiva e primado do objeto.  

[16] LACAN, Autres écrits, Seuil, 2001, p. 272

[17] LACAN, Séminaire XIV,  sessão do 31/05/67