Lenin com Lacan

 

 

“A primeira reação pública à idéia de retomar Lenin é, obviamente, uma risada sarcástica. Marx, tudo bem – hoje em dia, até mesmo em Wall Street há quem ainda o admire: o Marx poeta das mercadorias, que fez descrições perfeitas da dinâmica capitalista; o Marx dos estudos culturais, que retratou a alienação e a reificação das nossas vidas cotidianas. Mas Lenin – não, você não pode estar falando sério! Lenin não é aquele que representa justamente o fracasso na colocação em prática do marxismo?”. Assim começa “Às portas da revolução”: uma coletânea de textos escritos por Vladimir Lenin em 1917 seguidos de um longo posfácio de autoria de Slavoj Zizek, responsável pela organização do livro.

Um dos nomes mais significativos da atual geração de teóricos da esquerda, Zizek está disposto a nos mostrar como a reavaliação do legado da experiência de Lenin é condição maior para a renovação de uma agenda política de esquerda nas condições atuais do capitalismo pós-industrial. Proposição surpreendente e arriscada, mas que parece como apenas o início de um longo processo de reorientação da esquerda mundial.

No entanto, esta não é a primeira vez que Zizek nos surpreende. Sua trajetória intelectual já é, por si só, a descrição de um périplo improvável. Vindo da Eslovênia no final dos anos oitenta, Zizek foi aos poucos se firmando como um interlocutor maior nos debates sobre o destino do pensamento político de esquerda, isto ao mesmo tempo em que se transformava em figura de proa dos cultural studies norte-americanos ao fornecer uma via de abordagem da cultura contemporânea que passava ao largo da doxa pós-moderna própria ao relavitismo reinante. Via fundada em um duplo recurso no qual um certo resgate da tradição dialética hegeliana se encontrava com uma até então inédita “clínica da cultura” de orientação lacaniana. O subtítulo de seu primeiro livro editado fora da Iugoslávia e traduzido no Brasil já no início dos anos noventa não deixava dúvidas: Hegel com Lacan. Uma maneira de articular psicanálise e tradição dialética que não deixava de remeter à estratégia, inaugurada pela Escola de Frankfurt, de reintroduzir as descobertas psicanalíticas no interior da história das idéias e de fundar uma análise dos vínculos sociais e das produções da cultura de massa a partir da teoria das pulsões. Uma coletânea recém-lançada de artigos sobre Zizek fornece o quadro geral deste processo de maturação intelectual (Zizek crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo, org. Christian Dunker e José Luiz Aidar, Hacker editores).

Mas nada disto permitia deduzir o que estava por vir pelas mãos de Zizek. Já começávamos a nos acostumar com seu estilo de curtos-circuitos fundado em cortes sucessivos de planos conceituais que permitem passar, sem escalas, da discussão dos impasses do imperativo categórico kantiano à filmografia de David Lynch quando o filósofo esloveno resolveu mostrar que Lênin era absolutamente compatível com as mais herméticas elaborações clínicas de Jacques Lacan. Certamente, a história das relações entre psicanálise e marxismo é longa, turbulenta e fundamental para compreendermos as promessas utópicas que animaram o século XX. Entretanto, ela parecia definitivamente esgotada enquanto base para um programa político renovado de esquerda. Isto ao menos até aparecer o Lênin de Slavoj Zizek.

 

Lênin e Lacan?

 

            Em Lenin, Zizek encontrou primeiramente uma noção de política que não se resume à submissão ao quadro atual do ordenamento jurídico que sustenta a democracia parlamentar. Não se trata aqui simplesmente de retomar a antiga crítica esquerdista do “formalismo vazio” da democracia no interior do capitalismo. Trata-se de compreender a necessidade da esquerda politizar situações nas quais o poder instituinte não encontra lugar adequado no interior das estruturas normativas do poder instituído. Daí porque, para Zizek, o verdadeiro ensinamento de Lenin, ao insistir na diferença entre “liberdade formal” e “liberdade atual” consistiria em mostrar que: “a verdadeira escolha livre é aquela na qual eu não escolho apenas entre duas ou mais opções no interior de um conjunto prévio de coordenadas, mas escolho mudar o próprio conjunto de coordenadas”.

            Esta noção da ação política como ação soberana que instaura a partir de si mesma sua própria legalidade ao “suspender a Lei” tem forte ressonância psicanalítica. Ela é derivada da idéia lacaniana de que, no final de análise, os sujeitos não devem ser levados a se adaptarem a estruturas normativas e a representações sociais individualizadoras (voltando, por exemplo, a ser um bom pai, marido, profissional entusiasmado etc.). Na verdade, eles devem ser levados a assumirem um “ato” que encarne a violência criadora que permite ao sujeito reconfigurar quadros de socialização e mostrar como a verdade do seu desejo é ser uma força negativa que, inicialmente, não se adequa a nenhum processo de instrumentalização social do gozo. Zizek apenas percebeu nesta noção de ato um conceito que poderia desempenhar um papel importante na releitura do problema da violência revolucionária no interior da tradição do pensamento de esquerda.

De fato, Zizek há tempos insiste, com propriedade, em certas características peculiares da experiência intelectual lacaniana. A função central da estrutura sócio-linguística na determinação de modos de individuação que equivalem necessariamente a processos de alienação levou o pensamento lacaniano a valorizar os movimentos de ruptura e de reconfiguração da ordem social, isto a ponto de ver, em certas circunstâncias, Antígona como paradigma de posição subjetiva no final de análise. Pois, para Lacan, toda individuação passa necessariamente pela lógica da socialização. No entanto, a socialização não é simples formação da subjetividade, mas submissão a estruturas prévias de organização da vida social e de usos da linguagem. Ou seja, toda individuação seria uma alienação.

Por outro lado, sua crítica precoce à redução, em solo norte-americano, da psicanálise a um processo adaptativo o levou, necessariamente, a partilhar algumas temáticas anteriormente abordadas pela primeira geração dos freudo-marxista. Por fim, não poderíamos esquecer que o problema da reconfiguração dos vínculos sociais é tão central para Lacan que ele se viu obrigado (e neste ponto seu caso é único na história do movimento analítico) a articular, de maneira estreita, final de análise e institucionalização da posição dos sujeitos a partir da construção de novos vínculos sociais  em comunidades de analistas.

           

A nossa ambiguidade

 

No entanto, não há como negar que esta “clínica social da suspensão soberana da Lei” tem dois lados. Por um lado, ela fornece uma posição crítica importante a certas políticas de afirmação multicultural que definem o problema político fundamental como sendo um problema “cultural” de reconhecimento das diferenças no interior das estruturas normativas postas. Sem esvaziar a importância de tais lutas (direitos dos homossexuais, afirmação comunitária, etc.) e sem discutir o valor do projeto de constituição de sociedades multi-raciais, trata-se, na verdade, de insistir que a tolerância multicultural é falsa por ser intolerante àquilo que se coloca contra a administração prévia da diferença e da plasticidade dos modos de gozo. Exemplo clássico disto é como a tolerante e laica França foi intolerante em relação aqueles que se aferraram a uma crença muçulmana que entre diretamente em choque com nossa concepção de modernidade.

No interior desta crítica, Zizek também não deixa de lembrar como o multiculturalismo foi capaz de esvaziar o problema da redistribuição através da hegemonia das temáticas do reconhecimento. Recuperar a centralidade das questões vinculadas à redistribuição é insistir na linha de força que organiza antagonismos sociais que, até hoje, não foram absorvidos pelas lutas por reconhecimento sócio-cultural. Desta forma, Zizek procura dar atualidade a um tema que parecia absolutamente anacrônico: a irredutibilidade dos conflitos de classe enquanto motor da ação política; isto sem ser obrigado a resgatar noções confusas como “consciência de classe”.

            Mas, por outro lado, Zizek às vezes sucumbe àquilo que Habermas um dia chamou de política da “estetização da violência”. Pois, já que a verdadeira ação política é esta ação soberana que instaura a partir de si mesma sua própria legalidade ao suspender o ordenamento jurídico, então “a dureza da violência [contra a democracia parlamentar e o liberalismo social] pode ser vista e apoiada como um sinal de autenticidade”. Algumas das páginas mais problemáticas do livro de Zizek vão para sua descrição da “grandeza intrínseca do stalinismo”, grandeza pretensamente advinda da sua violência da instauração soberana. Infelizmente, Zizek parece, nestes momentos, deixar-se seduzir também por um certo “hegelianismo” que coloca em circulação o esquema da necessidade da tirania  como modo de concretização de um universal que se realiza quebrando o interesse dos particulares. Violência que, posteriormente, justifica tudo com uma teoria do fato consumado.

            No entanto, a ambigüidade de um grande teórico é sempre um sintoma precioso. Neste caso, a ambigüidade de Zizek é a própria ambigüidade da esquerda, presa entre exigências mais forte de ruptura e compromissos gerais de “jogar o jogo democrático”. No entanto, em certos momentos, a esquerda soube transformar tal ambigüidade na sua força  Transformação que consistia em mostrar como seu compromisso não era com as imperfeições da democracia parlamentar, mas com o aprofundamento das práticas de participação popular. Zizek nos mostra claramente como talvez seja isto que um certo momento da trajetória de Lenin, este momento do “todo poder aos sovietes”, ainda nos lembre. De qualquer forma, hoje a esquerda parece mais conservadora que nunca e é a direita que prega revoluções mundiais e mudanças profundas no ordenamento jurídico. Neste verdadeiro “mundo invertido”  talvez valesse a pena a esquerda lembrar de onde ela veio.

 

Vladimir Safatle, Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e organizador de “Um limite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise”.