Revolta e forma-mercadoria
Punk forneceu a direção para a indústria cultural dos últimos trinta anos
Atualmente, só é possível falar sobre o movimento punk através de sua inserção em uma ampla análise das modificações da indústria cultural nos últimos trinta anos. Pois, mais do que um estilo musical influente para a cultura pop e um padrão de conduta para jovens nos anos setenta e oitenta, o punk aparece claramente hoje como um ensaio bem-sucedido de reconfiguração das dinâmicas hegemônicas da indústria cultural e das lógicas que orientam seus produtos.
É certo que o uso de um termo como “indústria cultural” pode parecer um anacronismo, ainda mais em uma época, como a nossa, que insiste na existência de uma disseminação absoluta de estratégias múltiplas de recepção que orientariam nossa relação à cultura. No reino do fluxo contínuo e plástico de “informações” que circulam em sistemas “desprovidos de centro”, que sentido faria em insistir em realidades “monolíticas” como as pressupostas pelo uso do termo “indústria cultural”?
Contra os arautos da cultura contemporânea como o espaço por excelência das multiplicidades puras, poderíamos lembrar da lógica inexorável da realidade econômica que demonstra, ao contrário, a centralização, cada vez maior, dos pólos de produção e distribuição de “bens culturais”. Grupos de mídia/entretenimento/tecnologia como Sony, Universal e Newscom, que controlam a produção, difusão e o aparelhamento tecnológico da cultura são realidades recentes que demonstram o caráter sistêmico e centralizado da cultura contemporânea.
No entanto, é verdade que isto não significou uma limitação das possibilidades de escolha oferecida para targets cada vez mais específicos (mesmo que tentar comprar um CD de Brian Ferneyhough, por exemplo, continue sendo uma aventura sem fim). A velha visão da indústria cultural como processo de disponibilização de conteúdos ideológicos positivamente enunciados, como campo no qual estereótipos ideologicamente interessados eram criados e conteúdos normativos fornecidos através de padrões de identificação, não dá mais conta da integralidade do que está em jogo na indústria cultural; embora dizer que tais padrões se esvaíram é, simplesmente, desonesto.
Tal situação significa, na verdade, a obsolescência de colocações, como as que vemos em Michel Foucault, quando este afirma que: : “Como resposta à revolta do corpo, encontramos um novo investimento que não tem mais a forma de controle-repressão mas de controle-estimulação: “Fique nu ... mas seja magro, bonito, bronzeado!”[1]. Ou seja, apresente sua sexualidade ... mas no interior limitado de formas socialmente fornecidas e codificadas pela indústria cultural. É verdade que podemos encontrar atualmente, nos produtos da indústria cultural, tanto imperativos como: “seja magro, bonito, bronzeado” quanto “seja doente, anoréxico, desajustado”, o que demonstra a ausência de vínculos entre conteúdos normativos privilegiados e produção midiática. Isto poderia ser água no moinho dos que defendem a realidade da cultura de consumo como campo das multiplicidades puras. No entanto, tal “ecletismo hedonista” talvez apenas indique, como disse Guy Debord, que : “À aceitação dócil do que existe pode juntar-se a revolta puramente espetacular : isso mostra que a própria insatisfação tornou-se mercadoria, a partir do momento em que a abundância econômica foi capaz de estender sua produção até o tratamento desta matéria-prima”[2].
Se esse realmente for o caso, se a mercantilização da insatisfação contra padrões da indústria cultural virou o próprio motor de funcionamento da indústria cultural, então podemos dizer que o punk foi um dos processos que deu força à esta guinada.
Todos
conhecem a história. No verão de 1975, jovens ingleses suburbanos e ex-estudantes
de faculdades de artes recuperaram o som primário de bandas de garagem dos anos
60 contra o caráter sinfônico (sic) e
grandioso do rock progressivo. Este processo já era visível em bandas que se
apresentavam em clubes nova-yorkinos, como CBGB (New York Dolls, Stooges, Suzi 4 etc.). No entanto, coube aos ingleses (em
especial à dupla Vivienne Westwood
e Malcom McLaren) juntar, a este impulso de retorno
ao primarismo musical, uma lógica da bricolagem
(posteriormente atualizada pelos samplers da música eletrônica) e da apropriação de restos e ruínas da cultura
pós-industrial de consumo. Tudo isto temperado com leves laivos anarquistas e
palavras de ordem de maio de 68 (que aparecem, por exemplo, na letra de “Anarchy in UK”, dos Sex Pistols). Como
resultado, Westwood foi catapultada
para o centro da alta-costura internacional, McLaren transformado em guru dos
publicitários da Saatchi&Saatchi
e a cultura pop entrou um caminho aberto para a reconfiguração sem precendentes
de estilos e referências.
No
entanto, Westwood e McLaren tinham feito mais. Eles
haviam revelado os modos de estetização de um profundo processo de esgotamento
e desilusão juvenil com as promessas de modernização do capitalismo (lembremos
que estávamos em 1977, epicentro da decadência econômica inglesa). Estetização
esta baseada na posição bruta e desencantada da revolta, (desencantamento
claramente expresso na atopia do no future) e no jogo, cada vez mais
vertiginoso, de bricolagens com restos da cultura reduzidos a imagens. Vários anos se passaram para que a
indústria cultural percebesse que ali estava o cerne de sua sobrevivência nas
próximas décadas. Tal compreensão implicou em um amplo movimento de mutação no
qual as representações sócio-culturais midiáticas
começaram, digamos, a flertar com o negativo. Ou seja, depois do dia em que The Clash
virou fundo
musical para filme publicitário da Levi´s, a indústria cultural aprendera a
oferecer “tipos ideais de identificação” marcados pelo desencantamento em
relação às promessas de modernização sócio-cultural e pela encenação da
revolta. Um pouco como se o desencantamento com o capitalismo se tornasse a
mola de sustentação do próprio capitalismo. A lista de exemplos advindos da
música pop é interminável e desnecessária.
Por outro lado, a indústria
cultural pautou suas produções, de uma forma cada vez mais forte, pela
bricolagem que marca todo material apropriado com o selo da equivalência-geral
e da descartabilidade que não tem medo de dizer seu
nome. Como se nenhum material devesse realmente ser levado a sério. Assim, com
a entificação da lógica da descartabilidade
e da posição bruta da revolta estava pronto o mecanismo geral de mercantilização da insatisfação. Mecanismo que não tardou a
migrar rapidamente da música pop, para a moda, o design, a publicidade e outros
pólos industriais de produção de glamour (como
a arte “espetacular” britânica estilo Sensation). Há uma linha reta que vai do punk às campanhas heroína-chic da Calvin
Klein, a auto-derrisão da Diesel e à auto-crítica da linguagem publicitária da Benneton. No entanto, a linha termina exatamente aí.
De fato, não seria totalmente
correto resumir tudo o que estava em jogo no punk a um ensaio-geral para a implementação do processo de reconfiguração contemporânea da indústria cultural. A partir
dele, houve também uma tentativa de constituir margens da cultura midiática através de pólos
alternativos de divulgação e produção (a Factory Records, de Tony
Wilson, gravadora de Joy Division,
Durutti Column, é o melhor
exemplo aqui). Alguns dos trabalhos mais criativos da cultura pop vieram à tona
a partir das vias abertas pelo punk. Ao menos um bom poeta sobre o desencanto
juvenil saiu da linha de montagem do punk: Ian Curtis. Um ensaio de vinculação
política entre a linha de frente da cultura pop e certas aspirações esquerdistas foi tentado (The
Clash, Gang of four). No entanto, o mínimo que
podemos dizer é: sem muito sucesso.
De qualquer forma, a história fez
questão de mostrar a impossibilidade de uma noção como margens da cultura midiática,
basta ver o destino de revistas e selos anteriormente vinculados aos
desdobramentos do que veio depois da cena punk. Os que não tiveram vida curta
passaram por um processo festivo de absorção. Como resultado final do punk, ficou a questão sobre a
estetização adequada do nosso desencanto.
Vladimir Safatle,
professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo