Quando a doença é melhor do que a cura

 

 

Um dos fenômenos mais pitorescos na vida cultural nacional dos últimos anos é o crescente interesse pela filosofia (ou por algo que se aproxime dela). Cursos de difusão cultural, revistas de grande circulação, spots de televisão com pérolas filosóficas: tudo isto parece que veio para ficar. È possível que se trate de um fenômeno heteróclito para o qual convergem práticas e expectativas diversas. Mas há uma dimensão deste interesse pela filosofia visível para qualquer um que se aventure a deslizar os olhos por livros como: “Mais Platão e menos Prozac” (um clássico do gênero), “Nietzsche em 90 minutos” ou o mais recente “Vitaminas filosóficas: a arte de bem viver”.

            Todos eles são animados pelas mais belas intenções. Tais livros querem retirar a linguagem “empolada” da filosofia universitária, criticar a divisão entre alta e baixa cultura, entre o pensar e o corpo, entre sofrimentos cotidianos e grandes questões existenciais. Em suma, trata-se de reconciliar o pensar e a alegria de viver. Até porque, eles trazem sempre a mesma mensagem edificante: a filosofia é uma arte do bem viver, um pouco como se a “Fenomenologia do Espírito” fosse apenas uma versão mais complicada de “Como descobrir a si mesmo sem precisar gastar dinheiro com um novo guarda-roupa”.

            Neste sentido, “Vitaminas filosóficas”, do amante do rock e filósofo Theo Roos, é o que os profissionais de marketing chamariam de: “um case de sucesso”. Durante dois anos, uma rede de televisão alemã apresentou tais vitaminas na forma de programa seriado. Agora, elas estão disponíveis em um livro onde Schopenhauer, Nietzsche, Sócrates são comentados com a ajuda de Bob Dylan, Janes Joplin e Van Morrison. O resultado é descobrir que Schopenhauer nos ensina que devemos: “desfrutar o presente, cuidar da saúde, ser nós mesmos e [esta é a melhor] imaginar-se no espaço, olhando para a Terra lá embaixo”. Da mesma forma, o “âmago” da filosofia de Nietzsche não seria outro que o inaudito: “É preciso aprender a amar. E também aprender a amar o outro, o estranho em nós”. Mas, se assim for, por que comprar um livro caro como “O mundo com vontade e representação” se tudo o que você vai encontrar nele está em qualquer pocket de auto-ajuda de R$10,00?

            É claro que sempre terá alguém a dizer que livros como este, por mais rasos que sejam, são importantes por despertar o interesse pela filosofia e demonstrar que clássicos do pensamento “podem falar conosco, na nossa linguagem”. A este respeito, vale a pena lembrar que quem trai na forma, trai no conteúdo. O estilo da escrita não é exterior ao objeto do qual se fala, e isto vale principalmente para a escrita filosófica. O verdadeiro aprendizado consiste no trabalho paciente de confrontação com textos cuja escrita impõe um tempo para compreender, tempo que não se submete à ânsia terapêutica de quem está atrás de conhecimento em pílulas para curar desconfortos do cotidiano ou de quem tenta submeter toda experiência intelectual à transparência plena de uma linguagem instrumental de administrador de empresas. O mínimo que se pode dizer de quem começa imaginando que a filosofia supre tais demandas é que começou mal.

            Por outro lado, esta maneira de reduzir a filosofia a uma arte do bem viver feita de promessas de transgressão publicitária e de descobertas de novas reconciliações é, no fundo, um sintoma típico da nossa época. Uma época que não se reproduz mais através da apresentação de normatividades e padrões estritos, mas que, ao contrário, se alimenta através da transgressão de seus próprios padrões e normas. Que transforma a transgressão em mercadoria. Neste sentido, produtos como estes livros de auto-ajuda filosófica estão organicamente vinculados à ideologia do estágio contemporâneo da indústria cultural. Contra eles, devemos lembrar os momentos em que a filosofia não foi associada à cura, mas à doença. “O homem que pensa é um animal doente” é uma frase que faltou ao livro. Ela serve para lembrar que, em certas situações, a melhor coisa a fazer é recusar a cura; até porque, a doença é o que muitas pessoas têm de mais real.

 

Vladimir Safatle, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e autor de “A paixão do negativo: Lacan e a dialética” (Unesp, 2006)