O amor
é mais frio que a morte:
Reconhecimento
e experiência de indeterminação na fenomenologia hegeliana[1]
Of course all life is a process of breaking down,
but the blows that do the dramatic side of the work (...)
don’t show their effect all the once.
Scott Fitzgerald
“Vivemos aliás numa época em que a
universalidade do espírito está fortemente consolidada, e a singularidade (Einzelnheit), como convém, tornou-se
tanto mais insignificante (gleichgültiger);
época em que a universalidade se aferra a toda a sua extensão e riqueza
acumulada e as reivindica para si. A parte que cabe à atividade do indivíduo na
obra total do espírito só pode ser mínima. Assim, ele deve esquecer-se, como já
o implica a natureza da ciência. Na verdade, o indivíduo deve vir-a-ser, e
também deve fazer o que lhe for possível; mas não se deve exigir muito dele, já
que tampouco pode esperar de si e reclamar para si mesmo”[2].
Estas
afirmações são importantes por sintetizarem tudo aquilo que várias linhas
hegemônicas do pensamento filosófico do século XX imputaram a Hegel. Filósofo
da totalidade do Saber Absoluto, incapaz de dar conta da irredutibilidade da
diferença e das aspirações de reconhecimento do individual às estratégias de
síntese do conceito. Expressão mais bem acabada da crença filosófica de que só
seria possível pensar através da articulação de sistemas fortemente
hierárquicos, com o conseqüente desprezo pela dignidade ontológica do
contingente, deste mesmo contingente que “tampouco pode esperar de si e
reclamar para si mesmo”. Defesa de uma história na qual o presente apresentaria
uma “universalidade do espírito fortemente consolidada”, história teleológica
esvaziada da capacidade em apreender um tempo no qual acontecimentos ainda
fossem possíveis[3].
Em
todas estas acusações transparece o que teria sido a impossibilidade hegeliana
em dar conta de um particular que não deveria nem poderia ser reduzido à
condição de mera particularidade. Como se, em Hegel, o particular fosse apenas
a ocasião para a realização concreta do universal, não tendo, com isto,
realidade alguma em si. Em todas estas acusações parece ressoar o diagnóstico
de Adorno: “Se Hegel tivesse levado a doutrina da identidade entre o universal
e o particular até uma dialética no interior do próprio particular, o particular
teria recebido tantos direitos quanto o universal. Que este direito – tal como
um pai repreendendo seu filho: “Você se
crê um ser particular” -, ele o abaixe ao nível de simples paixão e
psicologicize (psychologistisch) o
direito da humanidade como se fosse narcisismo, isto não é apenas um pecado
original individual do filósofo”[4].
Isto não seria um pecado individual do filósofo porque seria um pecado de todo
seu sistema.
Mas
podemos nos perguntar sobre a correção de tais interpretações. Hegel teria
simplesmente ignorado as exigências necessárias para o reconhecimento da
individualidade ou estaria, na verdade, procurando construir as condições para
uma recompreensão dos processos de individuação? Estaríamos diante de um traço
definidor dos limites da filosofia hegeliana ou este seria o ponto mais
importante de um amplo projeto que visa fornecer um conceito renovado de
individualidade em relação ao qual ainda não fomos capazes de nos medir?
Sabemos
que Hegel desenvolve seu conceito de individualidade através da noção de
consciência-de-si. No entanto, esquecemos com freqüência como a
consciência-de-si hegeliana não é um conceito mentalista próprio à
reflexividade de uma subjetividade auto-suficiente que se delimita em relação
ao que lhe é exterior. Na verdade, consciência-de-si é, para Hegel, um conceito
relacional que visa descrever certos modos de imbricação entre sujeito e outro
que têm valor constitutivo para a experiência do Si mesmo. Por ser a
consciência-de-si um conceito relacional, seus atributos maiores no campo
prático (como determinação, autonomia, liberdade e imputabilidade) só podem ser
pensados em seu verdadeiro sentido quando abandonamos a crença de que a
experiência da ipseidade está assentada na entificação de princípios formais de
identidade e unidade. Até porque, a consciência-de-si não se funda na apreensão
imediata da auto-identidade, mas naquilo que nega sua determinação imanente. Se
quisermos utilizar um vocabulário contemporâneo, diremos que a
consciência-de-si hegeliana é o locus de uma experiência fundamental de
não-identidade que se manifesta através das relações materiais do sujeito ao
outro. Relações estas que são pensadas a partir das figuras do trabalho, do
desejo e da linguagem.
Mas dizer que a consciência-de-si é
um conceito relacional é ainda dizer muito pouco. Pois isto pode simplesmente
significar que toda subjetividade é, desde o início, dependente de uma
estrutura intersubjetiva de relações que a constitui e a precede. No entanto,
parece que Hegel quer dizer algo a mais. Para tanto, precisaremos compreender
melhor quem é este outro com o qual
me relaciono em experiências constitutivas que se dão no campo do trabalho da
linguagem e do desejo. Trata-se apenas de uma outra consciência-de-si ou de uma
alteridade mais profunda que está para além do que determina uma
individualidade como objeto de representação mental, um para além que me coloca
em confrontação com algo que, do ponto de vista da consciência, é
indeterminado?
Se seguirmos esta segundo hipótese,
talvez compreendamos melhor porque, para Hegel, a individualidade livre (ou
seja, aquela individualidade que realizou seu processo de formação) é aquela que leva ao campo da determinação a
força disruptiva da confrontação com o indeterminado e que, por isto, tem a
capacidade de fragilizar toda aderência limitadora a uma determinidade finita.
Talvez seja assim que devamos entender afirmações maiores de Hegel como: “A
liberdade não se vincula pois nem ao indeterminado nem ao determinado, mas ela
é ambos”[5].
Ou ainda: “O Eu é a passagem (Ubergehen) da indiferenciação
indeterminada para a distinção determinada e põe uma determinação como um
conteúdo e objeto”[6].
Lembremos que, por ser passagem, o Eu nunca deixa de conservar os momentos que
ele coloca em relação através do movimento de passar no oposto. O que nos leva
a dizer que ele deve conservar algo do que ainda não é um Eu, algo que é
pré-individual.
Esta confrontação com o
indeterminado enquanto processo fundamental de constituição da individualidade
ficará mais clara se nos perguntarmos pela função de experiências limites como
aquelas desempenhadas pela morte e pela angústia no processo de formação da
consciência-de-si. Veremos que, longe de serem meros motivos de uma leitura
demasiado “existencialista” da fenomenologia hegeliana ou ainda de uma temática
moralizadora vinculada a um processo de formação ligado ao ressentimento e
resignação diante da finitude (como quer Deleuze e, de uma certa forma, Gerard
Lebrun[7]),
a morte e a angústia no caminho de formação da consciência-de-si têm funções
lógicas bastante precisas. Pois elas indicam o processo necessário de abertura
àquilo que, do ponto de vista da consciência imersa em um regime de pensar
marcado pela finitude da representação e dos modos de categorização do
entendimento, só pode aparecer como desprovido de determinação[8].
Neste sentido, não deixa de ser irônico lembrar que a intuição de Kojève a
respeito da centralidade da confrontação com a morte no processo de formação da
consciência-de-si não era exatamente incorreta. Restava apenas descrever de
maneira mais adequada sua função fenomenológica.
Por outro lado, insistir neste
aspecto nos permitirá mostrar como, a partir de uma perspectiva hegeliana, o
processo de reconhecimento da individualidade não pode estar restrito ao
simples reconhecimento da reivindicação de direitos individuais positivos que
não encontram posição em situações normativas determinadas, como o quer Honneth
ao afirmar não ser possível compreender porque a “antecipação da morte, seja a
do próprio sujeito seja a do Outro deveria conduzir a um reconhecimento da
reivindicação de direitos individuais”[9].
O mesmo Honneth para quem a experiência da indeterminação é vivenciada pela
consciência basicamente como fonte de sofrimento, como: “um estado torturante
de esvaziamento”[10].
De fato, a questão não pode ser
respondida se compreendermos o que exige reconhecimento como sendo direitos
individuais, expressões singulares da autonomia e da liberdade. Mas não é isto que Hegel tem realmente em vista.
Tanto é assim que ele não teme afirmar que o não arriscar a vida pode produzir
o reconhecimento enquanto pessoa, mas não enquanto consciência-de-si autônoma e
independente. Como se a verdadeira autonomia da consciência-de-si só pudesse
ser posta em um terreno para além (ou mesmo para aquém) da forma da pessoa
jurídica portadora de diretos positivos e determinações individualizadoras. Por
isto, tudo nos leva a crer que Hegel insiste que se trata de mostrar como a
constituição dos sujeitos é solidária da confrontação com algo que só se põe em
experiências de negatividade e des-enraizamento que se assemelham à
confrontação com o que fragiliza nossos contextos particulares e nossas visões
determinadas de mundo. A astúcia de Hegel consistirá em mostrar como o
demorar-se diante desta negatividade é condição para a constituição de um
pensamento do que pode ter validade universal para os sujeitos.
Sendo
assim, as tensões internas à teoria hegeliana do reconhecimento também não
podem ser pensadas a partir de dualidades como esta proposta por Habermas ao
afirmar: “Eu´ me compreendo como ‘pessoa em geral’ e como ‘indivíduo
inconfundível’ que não se deixa substituir por ninguém em sua biografia. Sou
pessoa em geral na medida em que tenho em comum com todas as outras pessoas as
propriedades pessoais essenciais de um sujeito que conhece, fala e age. Sou ao
mesmo tempo um indivíduo inconfundível, que responde, de maneira
insubstituível, por uma biografia tão formadora quanto singular”[11].
Interpretações desta natureza entificam uma noção personalista de
individualidade, noção ligada ao Eu como figura de uma determinação completa.
Isto nos impede de pensar a fluidez de um conceito de individualidade onde toda
determinação seria corroída por um fundo de indeterminação que fragiliza sua
identidade e sua fixidez. Por outro lado, tais interpretações tendem a
constituir a universalidade como conceito normativo e essencialista ao
demarcá-la a partir de um conjunto determinado de “propriedades pessoais
essenciais” que não são objetos de questionamento ou conflito, mas motor de
toda demanda presente em conflitos sociais. Esta é uma via que nos leva,
necessariamente, á substancialização do conceito de sujeito. Como veremos, é
exatamente para impedir derivas desta natureza que Hegel insiste tanto na necessidade
do trajeto em direção à universalidade passar pelo “trabalho do negativo” e
pelo “caminho do desespero”.
Ontogêneses
e conflitos
Se
reconstruirmos o dispositivo fundamental de desenvolvimento da teoria hegeliana
da formação da consciência-de-si veremos que se trata de partir de
considerações sobre a ontogênese das capacidades prático-cognitivas dos
sujeitos, uma ontogênese que se desenvolve através de processos de socialização
e de individuação. Trata-se de se perguntar sobre a gênese empírica de nossas
habilidades cognitivas e de nossos esquemas de determinação racional da ação.
No entanto, ao invés de partir da análise das práticas de socialização através
de identificações que ocorrem em núcleos elementares de interação social
(família, sociedade civil, instituições, Estado), Hegel prefere, inicialmente,
fornecer algo como uma matriz fenomenológica geral para a inteligibilidade de
tais processos. Trata-se da dialética do Senhor e do Escravo (DSE).
Conhecemos
tentativas contemporâneas de invalidar o papel central da DSE na reflexão sobre
os processos de formação e reconhecimento da consciência-de-si. Robert Williams
dirá, por exemplo: “Não é o processo completo de reconhecimento recíproco, mas
o fracasso em realizar tal reconhecimento que será enfatizado. Por esta razão,
a figura do Senhor/Escravo tende a dominar o relato sobre a intersubjetividade
na Fenomenologia”[12].
Apenas no seu sistema de maturidade, Hegel teria enfim fornecido todo este
“processo completo”. Mas leituras desta natureza tendem a esquecer como a Fenomenologia já é a versão completa do
sistema a partir do ponto de vista da
consciência, assim como a Ciência da
Lógica é a versão completa do sistema a
partir do ponto de vista do saber objetivo. Neste sentido, nunca é prudente
relativizar o que a Fenomenologia nos
traz, como se tratasse de processos incompletos.
Na verdade, o desconforto de vários
comentadores hegelianos com a DSE vem principalmente do fato dela nos mostrar
como os processos de reconhecimento social são mediados por um desejo que
instaura o conflito enquanto solo ontológico, por se apresentar desde o início
como aquilo que constitui relações apenas a partir de dinâmicas de dominação e
servidão. Através do desejo, procuro submeter o outro à condição de objeto
desprovido de autonomia, outro cuja essência consiste apenas em ser suporte do
meu desejo. Mas como o desejo é o primeiro modo de relação ao outro, então o
conflito que ele instaura tem o peso de um dado ontológico para o modo de ser
da consciência-de-si.
No entanto, se assim for, parece
haver um equívoco neste esquema hegeliano. Pois: “De acordo com Hegel, o
processo de reconhecimento começa com o fato do Eu estar fora de si, dele estar
cancelado como ser-para-si e intuir si-mesmo apenas no outro. No entanto, esta
não é uma estrutura de luta, mas do amor”[13].
Um conflito com o outro só faz sentido por pressupor que o outro deve e
é capaz de me reconhecer. Se acreditasse que o outro não é capaz (por ser,
por exemplo, louco) ou não deve me reconhecer (por ser alguém que desprezo),
então não haveria demanda de reconhecimento, não haveria tentativa de submeter
o sistema de interesses do outro ao meu desejo. Mas se creio que o outro deve e
é capaz de me reconhecer, é porque há um tipo prévio de vínculo que poderíamos
chamar de “amor” e que serve aqui como base intersubjetiva inicial e não
problemática de relações. Assim, Hegel deveria ter começado a descrição dos
processos conflituais de reconhecimento entre sujeitos a partir da apresentação
do amor como fundamento e base normativa das demandas sociais de reconhecimento
presentes em processos de interação. Algo que, por sinal, ele faz em seus
textos de juventude, como na Filosofia do Espírito, de 1805.
Retomar a DSE, entretanto, pode nos
explicar porque Hegel não tem como concordar com tentativas contemporâneas de
recuperar o amor como “estrutura geral de reconhecimento recíproco”[14]
que deveria ser pressuposta como solo intersubjetivo primário para o
desenvolvimento seguro e normatizado de todo e qualquer processo de
determinação social da individualidade. Isto ao menos se pensarmos o amor a
partir do paradigma comunicacional de relações de mútua dependência e
complementaridade. Pois, ao contrário, talvez Hegel queira mostrar que os
processos de interação e socialização são mediados por um desejo cuja opacidade
e negatividade problematiza de maneira decisiva a intersubjetividade primária
do amor[15].
Desejo que só poderá ser satisfeito ao reconhecer-se em uma individualidade
onde o Eu sempre vai estar, de uma certa forma, irredutivelmente fora de si;
desejo cuja satisfação nos leva, inclusive, ao abandono do Eu como forma
altamente individuada. Isto obriga, no limite, à constituição de um conceito de
amor não ligado mais ao paradigma comunicacional[16].
Se
voltarmos ao texto da Fenomenologia, veremos que o desejo aparece pela primeira
vez em um contexto esclarecedor. Trata-se de uma discussão a respeito das
condições para a realização da unidade entre consciência-de-si e consciência de
objeto. Ao lembrar que a noção de “fenômeno”, enquanto “diferença que não tem
em si nenhum ser” (já que é apenas o aparecer para-um-Outro) não era figura da
unidade da consciência-de-si consigo mesma mas, ao contrário, era a própria
clivagem (já que a essencialidade está sempre em um Outro inacessível ao saber:
a coisa-em-si), Hegel afirma: “Essa unidade [da consciência-de-si] deve
vir-a-ser essencial a ela, o que significa: a consciência-de-si é desejo em
geral (Begierde überhaupt)”[17].
O
que significa esta introdução do que Hegel chama aqui de “desejo em geral”, ou
seja, não desejo deste ou daquele objeto, mas desejo tomado em seu sentido
geral, como modo de relação entre sujeito e objeto? A partir do contexto,
podemos compreender que a unidade da consciência-de-si com o que havia se
alojado no “interior das Coisas” como essência para além dos fenômenos, unidade
entre o saber e a determinação essencial dos objetos, só será possível a partir
do momento em que compreendermos as relações entre sujeito e objeto não apenas
como relações de conhecimento, mas primeiramente como relações de desejo e
satisfação.
A
princípio, uma afirmação desta natureza parece algo totalmente temerário.
Estaria Hegel colocando em marcha alguma forma de psicologicismo selvagem que
submete as expectativas cognitivas a interesses prático-finalistas? Ou estaria
ele insistindo, e aí na melhor tradição que encontramos também em Nietzsche e
Freud, que a razão configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que é
racional e legítimo) através dos interesses postos na realização de fins práticos,
interesses que nos levam a recuperar a dignidade filosófica da categoria de
“desejo”?
De fato, esta segunda alternativa
parece ser o caso. Neste sentido, podemos seguir um comentador que viu isto
claramente, Robert Pippin: “Hegel parece estar dizendo que o problema da
objetividade, do que estamos dispostos a contar como uma reivindicação objetiva
é o problema de satisfação do desejo, que a ‘verdade’ é totalmente relativizada
por fins pragmáticos (...) Tudo se passa como se Hegel estivesse reivindicando,
como muitos fizeram nos séculos XIX e XX, que o que conta como explicações
bem-sucedidas dependem de quais problemas práticos queremos resolver (...) que
o conhecimento é uma função de interesses humanos”[18].
No entanto, parece que Hegel estaria
assim entrando com os dois pés em alguma forma de relativismo que submete
expectativas universalizantes de verdade a contingência de contextos marcados
por interesses e desejos particulares. A não ser que Hegel seja capaz de
mostrar que os interesses práticos não são guiados pelo particularismo de
apetites e inclinações mas que, ao se engajar na dimensão prática tendo em
vista a satisfação de seus desejos, os sujeitos realizam necessariamente as
aspirações universalizantes da razão. Lembremos ainda que, por não admitir
distinções estritas entre empírico e transcendental, Hegel não está disposto a
operar rupturas entre desejo patológico e vontade livre cujo reconhecimento
seria o fundamento para a constituição do universo dos direitos. Há algo da universalidade da vontade livre
que já se manifesta no interior do desejo.
Colocações
desta natureza parecem ir na contramão de tendências hegemônicas do pensamento
crítico do século XX. Basta lembrar, por exemplo, desta questão sempre posta
por teóricos da Escola de Frankfurt, questão animada pela psicanálise freudiana
com sua descrição da natureza conflitual dos processos de socialização no
interior da família e de internalização da Lei social: o que é necessário
perder para se conformar às exigências de racionalidade e universalidade
presentes em processos hegemônicos de socialização do desejo? Ou ainda: qual é
o preço a pagar a fim de viabilizar tais exigências? Quanto devemos pagar para
sustentar afirmações como: “A verdadeira liberdade é, enquanto eticidade, o
fato da vontade não ter finalidades subjetivas, ou seja, egoístas, mas um
conteúdo universal”[19]?
Como disse Adorno, não estaríamos aí diante da tentativa de “psicologicizar o
direito da humanidade como se fosse narcissismo”?
Tais
questões têm consequências maiores. Tomemos, por exemplo, o caso de Adorno,
para quem os modos de organização da realidade no capitalismo avançado, assim
como os regimes de funcionamento de suas dinâmicas de interação social, de seus
núcleos de socialização, eram dependentes da implementação de uma metafísica da
identidade. Uma metafísica que guiaria a ontogênese das capacidades
prático-cognitivas dos sujeitos através da internalização de exigências de
unidade que orientam a formação do Eu e reprimem o que é da ordem do corpo, das
pulsões e da sexualidade (em suma, do desejo). Assim, se Adorno pode dizer que:
“identidade de si e alienação de si estão juntas desde o início”[20]
é principalmente porque a socialização que visa constituir individualidades
segue a lógica da internalização de uma Lei repressiva da identidade. Daí
afirmações como: “A consciência nascente da liberdade alimenta-se da memória (Erinnerung)
do impulso (Impuls) arcaico, não ainda guiado por um Eu sólido. Quanto
mais o Eu restringe (zügeln) tal
impulso, mais a liberdade primitiva (vorzeitlich)
lhe parece suspeita pois caótica”[21].
Afirmações que demonstram como análise da realidade social, crítica da
metafísica da identidade e crítica da ontogênese das capacidades
prático-cognitivas estariam absolutamente vinculadas. Um vínculo que
legitimaria Adorno a voltar-se contra Hegel, o mesmo Hegel que não teria
compreendido que a violência do Universal realizando-se não é idêntica à
essência dos indivíduos, mas contrária.
No
entanto, devemos insistir que Hegel é sensível àquilo que não se determina
integralmente de maneira positiva através de processos de socialização e
individuação. Ele sabe que há um caminho complexo até a realização da
possibilidade de tais processos preencherem exigências universalizantes. Por
isto, em Hegel, a ontogênese do sujeito é o reconhecimento de uma anterioridade
ontológica do conflito que se manifesta nesta ligação necessária entre
subjetividade e negatividade.
Sobre tal
anterioridade ontológica, lembremos como Hegel chega a “naturalizar a noção de
conflito” através de sua filosofia da natureza, isto ao instaurá-lo no interior
de seu conceito de “vida”. Vida cujo movimento será recuperado de maneira
reflexiva no interior da determinação da consciência-de-si. Ou seja, vida que
fornecerá o modelo do processo reflexivo de auto-posição próprio à
consciência-de-si. Insistir nesta complementaridade é inclusive maneira de
lembrar que aquilo que se manifesta inicialmente como exterioridade em relação
à consciência-de-si (a natureza, a mesma natureza que Adorno verá o signo da
emancipação do sujeito através da suspensão de sua dominação pela razão)
fornecerá o modelo de constituição do conceito de individualidade.
A fluidez absoluta da vida
Sabemos como, para a geração de Hegel, a
filosofia moderna deveria ultrapassar um sistema de dicotomias que encontrara
sua figura mais bem acabada na maneira kantiana de definir o primado da
faculdade do entendimento na orientação da capacidade cognitiva da consciência.
Hegel partilha o diagnóstico de pós-kantianos como Fichte e Schelling para
quem, na filosofia kantiana, o primado da reflexão e do entendimento produziu
cisões irreparáveis. Daí porque “o único interesse da razão é o de suspender
antíteses rígidas”[22],
como aquelas que orientam as distinções entre sujeito e objeto, forma e
matéria, receptividade e espontaneidade, natureza e subjetividade.
Em Hegel,
uma das primeiras maneiras de definir o modo de anulação de tais dicotomias foi
a tematização de uma espécie de solo comum, de fundamento primeiro, a partir do
qual sujeito e objeto se extrairiam, isto na mais clara tradição
schellinguiana. Este fundamento primeiro era a vida. Daí porque Hegel poderá
afirmar, na juventude: “Pensar a pura vida, eis a tarefa”, já que “A
consciência desta pura vida seria a consciência do que o homem é”[23].
Neste sentido, ter a vida por objeto do desejo é reconhecer, no próprio objeto,
a substância que forma consciências-de-si. Não é por outra razão que Hegel
apresenta a vida logo na entrada da seção dedicada à consciência-de-si, na Fenomenologia do Espírito. Enquanto
consciência que reconhece as dicotomias nas quais uma razão compreendida a
partir da confrontação entre sujeito e objeto se enredara, a consciência-de-si
procura um background normativo intersubjetivamente partilhado a partir do qual
todos os modos de interação entre sujeito e objeto se extraem. A vida aparece
inicialmente como este background.
No entanto, a vida é ainda uma figura
incompleta porque seu movimento não é para-si, ou seja, não é reflexivamente
posto e apreendido. Não se trata aqui de simplesmente negar, através de uma
negação simples, o que a reflexão sobre a vida traz. De fato, há uma certa
continuidade entre a vida e a consciência-de-si claramente posta por Hegel nos
seguintes termos: “A consciência-de-si é a unidade para a qual é a infinita
unidade das diferenças, mas a vida é apenas essa unidade mesma, de tal forma
que não é ao mesmo tempo para si mesma”[24].
Ou seja, a diferença entre consciência-de-si e vida é afirmada sobre um fundo
de semelhanças.
Mas como
Hegel compreende a vida e seu movimento, seu ciclo? De maneira esquemática,
podemos dizer que a vida é fundamentalmente compreendida a partir da tensão
entre a universalidade da substância que define o vivente e a particularidade
do indivíduo ou da multiplicidade diferenciadora das formas viventes
(espécies). Esta tensão entre unidade e indivíduo produz uma forma de oposição
que Hegel havia chamado, em Diferença
sobre os sistemas de Fichte e Schelling, de “o fator da vida” (Faktor des Lebens), para descrever o motor
de um movimento no interior da vida que visa a superação de tal oposição. Por
tender em direção a esta superação, a vida pode aparece como primeira figura da
infinitude. Isto nos explica porque Hegel havia dito, ao apresentar o conceito
de infinitude no capítulo sobre o entendimento, na Fenomenologia do Espírito: “Essa infinitude simples – ou o conceito
absoluto – deve-se chamar a essência simples da vida, a lama do mundo, o sangue
universal”[25].
Hegel descreve assim o ciclo da vida:
Seu ciclo se encerra nos momentos seguintes. A
essência é a infinitude, como ser-superado de todas as diferenças [a vida é
o que retorna sempre a si na multiplicidade de diferenças do vivente], o
puro movimento de rotação, a quietude de si mesma como infinitude absolutamente
inquieta, a independência mesma em que se dissolvem as diferenças do movimento;
a essência simples do tempo que tem, nessa igualdade-consigo-mesma, a figura
sólida do espaço. Porém, nesse meio simples e universal, as diferenças também
estão como diferenças, pois essa fluidez universal (allgemeine Flüssigkeit) [da
vida como unidade] só possui sua natureza negativa enquanto é um superar
das mesmas, mas não pode superar as diferenças se essas não têm um subsistir[26].
Este ciclo
demonstra como há uma dicotomia (Entzwieung)
no interior da vida. Hegel chega a falar que a vida conhece apenas uma unidade
negativa absoluta (absolut negative
Einheit) consigo mesma. Isto significa que, por um lado, ela é substância
universal que passa por todos os viventes. Daí o uso importante de uma metáfora
como fluidez que indica o que não pode se estabilizar em uma determinidade
fixa, o que tendenciamente se manifesta como princípio de indeterminação. Mas,
por outro, ela é tendência a diferenciações cada vez mais visíveis que recebem formas independentes (selbstständigen Gestalten) cada vez mais
determinadas. Como vemos há um conflito interno à vida entre indeterminação e
determinação. Conflito que faz com que a posição da individualidade seja a
divisão de uma fluidez indiferenciada (unterschiedslosen
Flüssigkeit) que, por sua vez, só pode ser posta através da dissolução da
própria individualidade. É pensando a tal conflito que Hegel dirá:
A inadequação (Unangemessenheit) do animal à universalidade [da vida] é sua doença
original e o germe interno de sua morte. A superação desta inadequação é ela
mesma a execução deste destino (...) [já que] na natureza, a universalidade só
acede ao fenômeno desta maneira negativa que consiste em superar a
subjetividade[27].
Hegel quer
insistir que, na natureza, a vida só pode alcançar a universalidade, esta
fluidez fundamental, através da dissolução da individualidade, daí porque o
organismo morre de uma causa interna, ele não pode se reconciliar com a
universalidade. É por não ser capaz de reconciliar a individualidade com o
universal que a natureza é uma figura imperfeita do Espírito. Ela chega a
desenvolver uma certa reconciliação, ela também imperfeita: o gênero (Gattung). Mas, do ponto de vista do
gênero, todos os indivíduos já estão mortos. Ou seja, a assunção de si como
gênero apenas é uma reconciliação que, mais uma vez, opera uma negação simples
da individualidade. Daí porque: “O objetivo da natureza é matar-se a si mesma e
quebrar sua casca, esta do imediato, do sensível, queimar-se como fênix para
emergir desta exterioridade rejuvenescida como espírito”[28].
O que leva Hegel a afirmar, ao final, que a vida: “é o todo que se desenvolve,
que dissolve seu desenvolvimento e que
se conserva simples nesse movimento”[29].
Podemos
mesmo dizer que a consciência-de-si será capaz de experimentar este conflito
presente no interior da vida, mas sem se dissolver como individualidade. Ela
terá a experiência da universalidade negativa, da fluidez absoluta, mas tal
experiência será um tremor diante da morte que terá função formadora. No
entanto, está é uma maneira mais nebulosa de dizer que o movimento próprio à
consciência-de-si já está, de uma certa forma, presente na natureza. Um pouco
como se o movimento que anima o meio no qual a consciência-de-si age (a história)
já estivesse em germe na natureza. O que não poderia ser diferente para alguém
que afirmou: “O espírito proveio (hervorgegangen)
da natureza”[30].
Um provir que não o impede de dizer que o espírito estava, de uma certa forma,
antes da natureza (já que ele se confunde com seu movimento).
De maneira
peculiar, Hegel está dizendo que entre natureza e história não há uma completa
ruptura, há apenas o aprofundamento reflexivo de um movimento partilhado, o que
complexifica as dicotomias modernas entre natureza e liberdade[31].
Movimento marcado principalmente pelas noções de conflito e de luta; não uma
luta darwiniana entre espécies, mas uma luta no interior de cada
individualidade biológica, no interior de cada singularidade natural, entre
determinação e indeterminação[32].
Todo o esforço de Hegel consiste em mostrar como a singularidade natural já é,
desde sempre, campo de trabalho do negativo, e não realidade que se determina
de maneira imanente. Por isto, a superação da singularidade natural é, no
fundo, a realização “natural” de seu destino.
Isto pode nos ajudar a compreender porque o
movimento do Espírito parece seguir de perto esta dissolução das determinidades
e manifestação da fluidez que anima a natureza, já que o Espírito é tanto sua
inscrição em uma figura finita quanto o desaparecimento incessante de tal
figuração[33].
Gerard Lebrun percebeu claramente esta natureza do Espírito ao afirmar: “Se
somos assegurados de que o progresso não é repetitivo, mas explicitador, é
porque o Espírito não se produz produzindo suas formações finitas mas, ao
contrário, em recusando-as uma após outra. Não é a potência dos impérios, mas
sua morte que dá a História ‘razão’”. Ou ainda: “O único tipo de devir que o
movimento do Conceito esposa nada tem em comum com a transição indiferente de
uma forma à outra. Ele só pode ser um devir que sanciona a instabilidade da
figura que vem de ser transgredida, um devir expressamente nadificador”[34]. Por sinal, não é por outra razão que
tanto a vida quanto o espírito serão animados pela mesma “fluidez universal”,
pela mesma “inquietude” (unruhe).
Por
fim, devemos dizer que esta tensão no interior das individualidades biológicos
aparecerá de maneira reflexiva no movimento de reconhecimento que orienta
processos de socialização e individuação. O que nos explica porque, no texto da
Fenomenologia, as considerações sobre a estrutura das dinâmicas sociais de
reconhecimento são antecedidas pela descrição do ciclo da vida. Se a vida é o
primeiro objeto do desejo da consicência-de-si é porque a verdade do desejo,
sua satisfação, só pode se dar lá onde ele se confrontar com um objeto marcado
pela fluidez universal. Ou seja, se a verdade do desejo é realizar as
aspirações universalizantes da razão, é porque converge para a noção hegeliana
de universal experiências de indeterminação. Neste sentido, voltemos os olhos
para o desejo hegeliano.
Para
Hegel, o desejo (Begierde) é a maneira através da qual a
consciência-de-si aparece em seu primeiro grau de desenvolvimento. Neste sentido,
ele é, ao mesmo tempo, modo de interação social e modo de relação ao objeto.
Além do desejo, Hegel apresenta, ao menos, outros dois operadores reflexivos de
determinação da consciência-de-si: o
trabalho e a linguagem. Estes três operadores tecem entre si articulações
profundas, já que o trabalho é “desejo
refreado” e a linguagem obedece à mesma dinâmica de relação à expressão que o
trabalho.
Lembremos
inicialmente como Hegel parece vincular-se a uma longa tradição que remonta a
Platão e compreende o desejo como manifestação da falta. Vejamos, por exemplo,
um trecho maior da Enciclopédia. Lá, ao falar sobre o desejo, Hegel afirma:
O sujeito intui no objeto sua
própria falta (Mangel), sua própria unilateralidade – ele vê no objeto
algo que pertence à sua própria essência e que, no entanto, lhe falta. A
consciência-de-si pode suprimir esta contradição por não ser um ser, mas uma
atividade absoluta[35].
A colocação não poderia ser mais
clara. O que move o desejo é a falta que aparece intuída no objeto. Um objeto
que, por isto, pode se pôr como aquilo que determina a essencialidade do
sujeito. Ter a sua essência em um outro (o objeto) é uma contradição que a
consciência pode suprimir por não ser exatamente um ser, mas uma atividade,
isto no sentido de ser uma reflexão que, por ser posicional, toma a si mesma
por objeto e, neste mesmo movimento, assimila o objeto a si. Esta experiência
da falta é tão central para Hegel que ele chegar a definir a especificidade do
vivente (Lebendiges) através da sua
capacidade em sentir falta, em sentir esta excitação (Erregung) que o leva à
necessidade do movimento; assim como ele definirá o sujeito como aquele que tem
a capacidade de suportar (ertragen) a
contradição de si mesmo (Widerspruch
seiner selbst) produzida por um desejo que coloca a essência do sujeito no
objeto. Hegel acredita que a falta é tão definidora da condição de sujeito que
ele chega a afirmar:
A falta da cadeira, quando ela tem
três pés, está em nós [pois é falta em
relação ao conceito de cadeira]; mas a própria falta está na vida, já que a
vida a conhece como limitação, ainda que ela também esteja superada. É pois um
privilégio das naturezas superiores sentir dor; quando mais elevada a natureza,
mais infeliz ela se sente. Os grandes homens têm uma grande necessidade e o
impulso (Trieb) a superá-la. Grandes
ações vêm apenas de profunda dor da alma (Gemütes);
a origem do mal etc. tem aqui sua dissolução[36].
Mas, dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois
se o desejo é falta e o objeto aparece como a determinação essencial desta
falta, então deveríamos dizer que, na consumação do objeto, a consciência
encontra sua satisfação. No entanto, não é isto o que ocorre:
O desejo e a certeza de si mesma alcançada na
satisfação do desejo [notemos esta articulação fundamental: a certeza de si
mesmo é estritamente vinculada aos modos de satisfação do desejo] são
condicionados pelo objeto, pois a satisfação ocorre através do suprimir desse
Outro, para que haja suprimir, esse Outro deve ser. A consciência-de-si não
pode assim suprimir o objeto através de sua relação negativa para com ele, pois
essa relação antes reproduz o objeto,
assim como o desejo[37].
A
contradição encontra-se aqui na seguinte operação: o desejo não é apenas uma
função intencional ligada à satisfação da necessidade animal, como se a falta
fosse vinculada à positividade de um objeto natural. Ele é operação de
auto-posição da consciência: através do desejo a consciência procura se intuir
no objeto, tomar a si mesma como objeto e este é o verdadeiro motor da
satisfação. Através do desejo, na verdade, a consciência procura a si mesma.
Até porque, devemos ter clareza a este respeito, a falta é um modo de ser da
consciência, modo de ser de uma consciência que insiste que as determinações
estão sempre em falta em relação ao ser.
Como
sabemos, esta proposição do desejo como falta foi, nas últimas décadas, objeto
de críticas virulentas vindas principalmente de autores como Gilles Deleuze e
Félix Guattari. Seu alvo não era apenas a apropriação do conceito hegeliano feita
pela psicanálise lacaniana, mas também a metafísica da negatividade presente no
conceito hegeliano de desejo. Pois a maneira com que a psicanálise procura
socializar o desejo produziria um
desejo marcado pela negatividade, pela perda, pelo conflito, desejo como falta
que nos remete, afinal de contas, a Hegel. No entanto, “Nada falta ao desejo”,
dirão os dois, “ele não está em falta em relação ao seu objeto. Na verdade, é o
sujeito que está em falta com o desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só
há sujeito fixo graças à repressão”[38].
Neste caso, tratava-se de insistir que a afirmação do desejo como falta não
poderia ser outra coisa que fruto de uma ilusão metafísica a respeito da
realidade do negativo. Ilusão animada por uma teologia negativa que sequer tem
medo de dizer seu nome.
A
este respeito, lembremos que há três maneiras de compreender a proposição de
que a essência do desejo é falta. Primeiro, a falta pode ser simples
manifestação da carência, da privação de um objeto determinado da necessidade.
Esta claramente não é a posição hegeliana, já que implicaria em uma
naturalização de sistemas de necessidades estranha a uma filosofia que não
compreende a natureza como sistema fechado de leis. Segundo, podemos dizer que a falta é um modo de ser da
consciência porque ela indica a transcendência do desejo em relação aos objetos
empíricos, seguindo aqui uma via aberta por Platão.
Sabemos
como Platão faz Sócrates afirmar, em O
banquete: "Desejamos aquilo do qual somos desprovidos"[39]
ou aquilo que não está presente ou aquilo que pessoalmente não sou. Daí porque
Eros é o intermediário entre dois contrários: ele manifesta a falta de coisas
belas e boas que impelem o desejo (epithumia),
coisas a respeito das quais tenho um certo saber. Ou seja, o objeto do desejo é
aquilo que, ao mesmo tempo, não tenho e está em mim. Este caráter intermediário
entre presença e ausência fica visível a partir do momento que Eros é
compreendido a partir da perspectiva do amante (erastes), e não do amado (eromenos).
No
entanto, esta falta que mobiliza o desejo não está exatamente ligada à dimensão
dos objetos sensíveis. Pois: "a beleza que existe em tal ou tal corpo é
irmã da beleza que reside em outro e, se devemos perseguir o belo em sua forma
sensível, seria uma insígnia desrazão não julgar una e idêntica a beleza que
reside em todos os corpos"[40].
Esta desqualificação do sensível permite a abertura a uma série de asceses que
nos levará à "essência mesma do belo" para além do que é mortal e
corruptível. Uma essência cuja visão implicaria liberar o belo em sua pureza,
abrir espaço para sua manifestação sem misturas na unicidade de sua natureza
formal. Poderíamos mesmo afirmar que, nesta ascese: "a pessoa deixa sua
particularidade para trás"[41],
como se fosse questão de negar a essencialidade do que é da ordem da natureza
mortal, isto em prol da essencialidade de algo que: "de alguma forma lhe
pertence, mas que não lhe é imediatamente disponível"[42].
Assim, a negatividade do desejo seria, no fundo, manifestação intencional da
transcendência inesgotável do ser em relação à empiricidade.
É
pensando nesta vertente que Deleuze e Guattari desenvolvem sua crítica ao
desejo como falta. Tudo se passaria como se Hegel se apropriasse deste esquema
de transcendência para colocá-lo em operação no interior de uma certa teologia
negativa onde não é mais a transcendência da Idéia que produz a desqualificação
de todo sensível, mas a "pura negatividade" que só aparece através da
reiteração infinita da ultrapassagem da determinação finita sensível, do
sacrifício infinito de uma determinação finita que precisa continuar a
desaparecer, permanecer desaparecendo, isto a fim de que a negatividade tenha
realidade.
No entanto, podemos dizer que não é esta a
questão que está em jogo na definição hegeliana do desejo em sua negatividade.
Pois a negatividade do desejo não vem exatamente da pressão negadora da
transcendência, como queria alguém como Kojève (no fundo, a referência maior de
Deleuze em sua leitura de Hegel[43]). Por sinal, este apelo irrestrito à transcendência
seria estranho para um autor, como Hegel, que compreende o saber absoluto como
reconciliação com uma dimensão renovada do empírico. A este respeito, basta
lembrar como, ao falar sobre a reconciliação produzida pelo saber absoluto,
Hegel apresenta um julgamento infinito (unendlichen
Urteil) capaz de produzir a síntese da cisão entre sujeito e objeto.
Trata-se da afirmação: “ o ser do eu é uma coisa (das Sein des Ich ein Ding
ist); e precisamente uma coisa sensível e imediata (ein sinnliches unmittelbares Ding)”. Desta afirmação, segue-se um
comentário: “Este julgamento, tomado assim como imediatamente soa, é
carente-de-espírito, ou melhor, é a própria carência-de-espírito”, pois se
compreendemos a coisa sensível como uma predicação simples do eu, então o eu
desaparece na empiricidade da coisa – o predicado põe o sujeito: “mas quanto ao
seu conceito, é de fato o mais rico-de-espírito”[44].
Pois seu conceito nos leva a uma recompreensão da dimensão do sensível para
além da sua domesticação pelas estruturas identitárias e finitas da estética
transcendental.
Na
verdade, para entender o que Hegel tem em vista na sua noção de desejo como
falta, não devemos compreender a falta como privação, como carência ou
simplesmente como transcendência, mas como manifestação
da infinitude. Esta infinitude
pode ser ruim, se a satisfação do desejo for vista como
consumo reiterado de objetos que produzem um gozo (Genuss) que
é apenas submissão narcísica (ou “egoísta”, se quisermos usar um termo
hegeliano) do outro ao Eu. Mas ela será infinitude verdadeira quando
confrontar-se com objetos liberados de determinações finitas.
Lembremos inicialmente que, para
Hegel, a falta aparece como modo de ser da consciência em um contexto histórico
preciso. Contexto marcado pela problematização do que serve de fundamento às
formas de vida da modernidade. Hegel compreende a modernidade como o momento
histórico no qual o espírito "perdeu" a imediatez da sua vida
substancial, ou seja, nada lhe aparece mais como substancialmente fundamentado
em um poder capaz de unificar as várias esferas sociais de valores[45].
Daí diagnósticos clássicos de época como: “[Nos tempos modernos] Não
somente está perdida para ele [o espírito] sua vida essencial; está
também consciente dessa perda e da finitude que é seu conteúdo. [Como o
filho pródigo], rejeitando os restos da comida, confessando sua abjeção e
maldizendo-a, o espírito agora exige da filosofia não tanto o saber do que ele
é, quanto resgatar por meio dela, aquela substancialidade e densidade do ser [que
tinha perdido]”[46].
Décadas depois de Hegel, a
sociologia de Durkheim e Max Weber constituirão quadros convergentes de
caracterização da modernidade como era própria a um certo sentimento subjetivo
de indeterminação resultante da perda de horizontes estáveis de socialização. A
autonomização das esferas sociais de valores na vida moderna, assim como a
erosão da autoridade tradicional sedimentada em costumes e hábitos
ritualizados, teria produzido uma perda de referências nos modos de
estruturação das relações a si, uma problematização sem volta da espontaneidade
de sujeitos agentes[47]. A partir de então, o sujeito só pode aparecer
como: “esta noite, este nada vazio que contém tudo na simplicidade desta noite,
uma riqueza de representações, de imagens infinitamente múltiplas, nenhuma das
quais lhe vem precisamente ao espírito, ou que não existem como efetivamente
presentes (...) É esta noite que descobrimos quando olhamos um homem nos olhos,
uma noite que se torna terrível, é a noite do mundo que se avança diante de
nós”[48].
No entanto, Hegel não está disposto
a se contentar com diagnósticos sócio-históricos. Ele quer fornecer o
fundamento ontológico da situação histórica própria à modernidade, como se tal
perda de horizontes estáveis não fosse apenas o resultado da contingência de
processos históricos, mas fosse a realização de um destino marcado com a
necessidade do que tem dignidade ontológica. Para tanto, Hegel precisa de uma
noção de individualidade como aquilo que é habitado por uma potência de
indeterminação, como aquilo que não se submete integralmente à determinação
identitária da unidade sintética de um Eu. A teoria do desejo como falta, ou
ainda, como negatividade que impulsiona o agir, forneceria a Hegel este
fundamento ontológico procurado. Ou seja, a falta aqui é, na verdade, o modo de
descrição de uma potência de indeterminação e de despersonalização que habita
todo sujeito.
Por
sua vez, esta potência de indeterminação é um outro nome possível para aquilo
que Hegel compreende por infinitude, já que o infinito é o que demonstra a
instabilidade e a inadequação de toda determinação finita. O que não poderia
ser diferente pois, para Hegel, infinito é aquilo que porta em si mesmo sua
própria negação e que, ao invés de se auto-destruir, conserva-se em uma determinidade
que nada mais é qu a figura da instabilidade de toda determinidade. Daí
porque ele podia afirmar, em uma frase chave: “A infinitude, ou essa
inquietação absoluta do puro mover-se-a-si-mesmo, faz com que tudo o que é
determinado de qualquer modo – por exemplo, como ser – seja antes o contrário
dessa determinidade”[49].
Percebe-se
claramente aqui que o conceito de infinitude é construído a partir da noção de
contradição. Lembremos da definição de contradição fornecida por Kant: “O
objeto de um conceito que se contradiz a si mesmo é nada, porque o conceito
nada é o impossível, como, por exemplo, a figura retilínea de dois lados (nihil negativum)”[50].
Ou seja, a contradição é um objeto vazio sem conceito, já que não há
representação possível quando tenho duas proposições contrárias aplicadas ao
mesmo objeto, como no caso de uma figura que, ao mesmo tempo, é retilínea e tem
dois lados. Hegel não quer pensar uma figura retilínea de dois lados, mas quer
insistir que há objetos que só podem ser apreendidos através da aplicação de
duas proposições contrárias, de duas séries divergentes. Isto talvez nos
demonstre como a infinitude não é simplesmente uma estratégia astuta de
desqualificação do sensível, mas é o fundamento que permite a crítica da
submissão do sensível à gramática da finitude.
No entanto, como o sujeito é
essencialmente locus de manifestação
da infinitude, podemos dizer que o vocabulário da negatividade do desejo serve
para salientar a natureza de inadequação entre as expectativas de
reconhecimento de sujeitos e as possibilidades disponíveis de determinação
social de si[51].
Pois se trata de afirmar que a positividade da realidade reificada com suas
representações finitas estabeleceu-se de maneira tão forte como “representação
natural do pensar” que apenas um esforço de negação pode romper tal círculo de
alienação. Ou seja, o vocabulário da negatividade nada tem a ver com formas de
julgamento resignado da vida, como se a vida precisasse ser desvalorizada
enquanto espaço da finitude, como quer Lebrun[52].
Ao contrário, ele é fruto da consciência do descompasso entre modos de
determinação da vida social e as potencialidades da vida que realizou
seu destino como Espírito.
De qualquer forma, Hegel acharia
simplesmente incorreta esta maneira tão própria a nós, contemporâneos do
pós-estruturalismo, de contrapor a negatividade do desejo à positividade de uma
potência que se expressa de maneira imanente, tal como a relação entre a
substância spinozista e seus modos. Pois, de uma certa perspectiva, o desejo é
sempre destrutivo (ele sempre afirma sua inadequação em relação às
determinações finitas) e, de outra, ele sempre é produtivo (sua verdade é
afirmar-se como vontade livre que constitui quadros institucionais para seu
reconhecimento através da relações de trabalho e linguagem). Hegel era tão
cônscio desta imbricação entre negatividade e produtividade que, ao falar da
necessidade do terror revolucionário enquanto experiência histórica de
internalização da negatividade que devasta toda determinação fenomenal, escreverá:
Mas, por isso mesmo, a vontade
universal forma imediatamente uma unidade com a consciência-de-si, ou seja, é o
puramente positivo porque é o puramente negativo; e a morte sem sentido, a
negatividade do Si não-preenchido, transforma-se no conceito interior, em
absoluta positividade[53].
Este é o pano de fundo adequado para
a reflexão sobre a confrontação com a morte no trajeto de formação da
consciência-de-si. Notemos, inicialmente, uma conseqüência maior. Se é verdade
que Hegel é animado por uma teoria do desejo desta natureza, então o conflito
produzido pelo desejo, conflito que aparece enquanto motor da DSE, não pode ser
a mera colisão entre sistemas particulares de interesses de duas consciências
distintas, como quer comentadores como Terry Pinkard e Jurgen Habermas[54].
Conflito através do qual Eu procuro dominar o outro através da submissão do seu
sistema de valoração e interesse à perspectiva própria ao meu sistema, onde Eu
procuro submeter o desejo do outro ao meu desejo. Ao contrário, se Hegel pode
afirmar que a formação para a vontade livre e universal passa pela submissão a
um senhor, é porque este senhor não pode simplesmente representar uma outra
determinação particular de interesse.
Se voltarmos os olhos à DSE, veremos Hegel
insistindo que, após a luta por reconhecimento, a essencialidade do escravo
parece estar depositada no senhor. É ele quem
domina o seu fazer consumindo o objeto de seu trabalho. O escravo vê
assim seu fazer como algo estranho. No entanto, Hegel insiste que este
estranhamento pode significar elevação para além da particularidade, já que:
“Enquanto o escravo trabalha para o senhor, ou seja, não no interesse exclusivo
da sua própria singularidade, seu desejo recebe esta amplitude que consiste em
não ser apenas o desejo de um este, mas de conter em si o desejo de um outro”[55].
Ter seu desejo vinculado ao desejo de um outro, entretanto, não nos fornece a
universalidade do reconhecimento almejado pela consciência. Para que este
vínculo não seja simples submissão, faz-se necessário que este outro tenha algo
da universalidade incondicional do que é essencial, que ele seja um “senhor
absoluto”, cuja internalização me leva a ser reconhecido para além de todo e
qualquer contexto. É tendo este problema em vista que devemos interpretar a
afirmação central:
Só mediante o pôr a vida em risco, a
liberdade se conquista e se prova que a essência da consciência-de-si não é o
ser, nem o modo imediato como ela surge, nem o seu submergir-se na expansão da
vida, mas que nada há para a consciência que não seja para ela momento
evanescente (verschwindendes Moment); que ela é somente puro ser-para-si. O indivíduo que não
arriscou a vida pode ser bem reconhecido como pessoa (Person), mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma
consciência-de-si independente[56].
Se a confrontação com a
morte é condição para a conquista da liberdade, é porque a morte é figura
privilegiada desta universalidade incondicional e absoluta que, por ser
incondicional e absoluta, manifesta-se como negação de tudo o que é
condicionado e finito. Devemos levar isto em conta quando encontramos Hegel
dizendo:
A submissão (Unterwerfung)
do egoísmo do escravo forma o início da verdadeira liberdade dos homens. A
dissolução da singularidade da vontade, o sentimento do nulidade do egoísmo, o
hábito da obediência (Gehorsams) é um
momento necessário da formação de todo homem. Sem ter a experiência deste
cultivo (Zucht) que quebra a vontade
própria (Eigenwillen), ninguém advém
livre, racional e apto a comandar. E para advir livre, para adquirir a aptidão
de se auto-governar, todos os povos tiveram que passar pelo cultivo severo da
submissão a um senhor[57].
Afirmações desta
natureza servem a vários mal entendidos. Hegel não está dizendo que a liberdade
é apenas o nome que damos para um vontade construída a partir da internalização
de “dispositivos disciplinares” travestidos de práticas de auto-controle. Não é
qualquer submissão a um senhor que produz a liberdade, mas apenas a um senhor
que seja capaz de realizar exigências incondicionais de universalidade. Isto
nos explica porque, para Hegel, as grandes individualidades capazes de submeter
um povo produzem, necessariamente, o sentimento de que o trabalho do Espírito é
sem medida comum com toda e qualquer política finita, com todo cálculo
utilitarista baseado em “meu” sistema de interesses egoístas. Por sinal, a
maior de todas as ilusões consiste exatamente em ver na crítica hegeliana do
egoísmo uma estratégia astuta de esvaziamento do particular. Hegel pode
criticar o egoísmo porque não há nenhuma individualidade neste “ego”, já que
não há nada de individual no interior de um sistema de interesses construído,
na verdade, a partir de identificações e internalização de princípios de
conduta vindos de uma outra consciência determinada[58].
Por isto, a “dissolução da singularidade da vontade” pode aparecer como
“liberação”.
Lebrun serve-se destas características da filosofia
hegeliana para afirmar que a formação da consciência-de-si é apenas a dissolução
de um indivíduo definido como o que se anula, renúncia incessante de si, ascese
permanente. Pois: “ganhar uma determinação acaba sempre por ser renúncia a uma
diferença que me individualizava, advir um pouco mais meu ser verdade na medida
em que sou um pouco menos meu ego”[59].
Neste sentido, tremer diante do mestre absoluto seria tomar consciência da
impotência de princípio que representa a singularidade natural. Como se a
liberação hegeliana fosse um passe de mágica no qual o sentimento de fraqueza
se transforma em legitimação da incapacidade de resistir. Assim: “em troca de
seus sofrimentos, é o gozo do universal que se oferece à consciência – belo
presente ...”[60].
Não estamos muito longe de Deleuze vendo a dialética hegeliana como “idéia do
valor do sofrimento e da tristeza, valorização das ‘paixões tristes’ como
princípio prático que se manifesta na cisão, no dilasceramento”[61].
No entanto, podemos fornecer uma interpretação diferente.
Basta estarmos mais atentos para o sentido que Hegel dá a esta despossessão de
si produzida pela internalização da morte como senhor absoluto. Neste contexto,
a morte não é destruição simples da consciência, não é um simples despedaçar-se
(zugrunde gehen), mas é modo de ir ao fundamento (zu Grund gehen).
Pois a confrontação com a morte é experiëncia fenomenológica que visa exprimir
o acesso ao caráter inicialmente indeterminado do fundamento, que visa exprimir
como: “A essência, enquanto se determina como fundamento, determina-se como o
não-determinado (Nichtbestimmte) e é apenas a superação (Aufheben)
de seu ser determinado (Bestimmtseins) que é seu determinar”[62].
O que pode ser entendido da seguinte maneira: a indeterminação do fundamento
vem do fato dele servir de substrato comum entre determinações opostas, daí
porque Hegel poderá afirmar que o fundamento implica a identidade entre a
identidade e a diferença (die Einheit der Identität und des Unterschiedes).
Mas sendo o Eu o princípio sintético que fornece o fundamento da experiência,
assim como o princípio de ligação e unidade que determina o modo de articulação
entre o fundamento e aquilo que ele funda, então pensar a verdadeira essência
do fundamento como o que tem seu ser em um outro (sein Sein in einen Anderen
hat) exige a confrontação com um estado de diferenças não submetidas à
forma do Eu[63].
Demoremos
um pouco mais neste ponto. Sabemos que fundar é determinar o existente através
da sua relação a um padrão que me permite orientar no pensamento. Por exemplo,
ao mobilizar estruturas categoriais como a causalidade, a modalidade para
assegurar a inteligibilidade dos fenömenos, determino a forma do existente. A
partir deste recurso à forma como fundamento posso garantir o critério do
verdadeiro e do falso, do correto e do incorreto, do adequado e do inadequado.
Mas a aplicação de todas estas estruturas aos fenômenos depende de uma decisão
prévia e tácita sobre princípios lógicos gerais de ligação e unidade capazes de
constituir objetos da experiência e fundar proposições de identidade e
diferença. Estes princípios de ligação (Verbindung) e unidade são derivados do Eu como
unidade sintética de apercepções, que aparece assim como o verdadeiro
fundamento das determinações. No entanto, a problematização de tais princípios
é o verdadeiro objeto da dialética. Por exemplo, quando Hegel constrói um witz
ao dizer que, para a consciência, “o ser tem a significação do seu” (das
Sein die Bedeutung das Seinen hat)[64],
ele tem em vista o fato de que ser objeto para a consciência significa
estruturar-se a partir de um princípio interno de ligação e unidade que é modo
da consciência apropriar-se do mundo, constituir o mundo a partir de sua
imagem, o que permite a Hegel ignorar a relevância das distinções kantianas
entre receptividade e espontaneidade.
A dialética precisa pois aceder a um fundamento não mais
dependente da forma auto-idêntica do Eu, o que é possível através da superação
dos modos naturalizados de determinação, através a fragilização das imagens de
mundo que orientam e constituem nosso campo estruturado de experiências. Tal
fragilização é descrita fenomenologicamente por Hegel através da angústia e da
confrontação com a morte.
Vemos
assim como a confrontação com a morte permite à consciência-de-si compreender o
Espírito como aquilo que se expressa na multiplicidade de suas determinações
fragilizando-as todas, levando-as a confrontar-se com uma potencia do
pré-pessoal e do indeterminado que nos permite, inclusive, recompreender o que
vem a ser a diferença. A diferença não será aquilo que determina a distinção
entre entidades conceitualmente articuladas, como Deleuze imputa a Hegel. A
diferença em Hegel é esta potência interna da in-diferença que corrói toda
determinação. Ela será esta expressão do ser que nos leva a afirmar, com Scott
Fitzgerald, que: “toda vida é um processo de demolição”. Demolição que ocorre
quando desvelamos esta “franja de indeterminação da qual goza todo indivíduo”[65].
Não se trata exatamente de um ganho de determinação e positividade, mas da
assunção de um risco vinculado à confrontação com aquilo que se coloca enquanto
puramente indeterminado. Nestas condições, submeter-se a um Senhor absoluto que
dissolve tudo aquilo que parecia fixo e determinado nada tem a ver com uma a
dinâmica psicológica da resignação, do ressentimento ou da necessidade da
repressão.
A determinação pelo
trabalho
Para
finalizar, devemos comentar o ponto essencial que irá estabilizar esta
dialética. Pois a angústia sentida pela consciência escrava não fica apenas em
uma:
universal dissolução em geral, mas ela se
implementa efetivamente no servir (Dienen). Servindo, suprime (hebt)
em todos os momentos tal aderência ao Dasein
natural e trabalhando-o, o elimina. Mas o sentimento da potência absoluta em
geral, e em particular o do serviço, é apenas a dissolução em si e embora o
temor do senhor seja , sem dúvida, o início da sabedoria, a consciência aí é
para ela mesma, mas não é ainda o ser para-si; ela porém encontra-se a si mesma
por meio do trabalho[66].
Hegel fará
então uma gradação extremamente significativa que diz respeito ao agir da consciência
nas suas potencialidades expressivas. Hegel fala do serviço (Dienen), do
trabalho (Arbeiten) e do formar (Formieren). Esta tríade marca
uma realização progressiva das possibilidades de auto-posição da consciência no
objeto do seu agir. O serviço é apenas a dissolução em si (Auflösung an sich) no sentido da completa alienação de si no
interior do agir, que aparece como puro agir-para-um-outro e como-um-outro. O
trabalho implica em uma auto-posição reflexiva de si. No entanto, sabemos que
Hegel não opera com uma noção expressivista de trabalho que veria sua
realização mais perfeita em uma certa compreensão do fazer estético como
manifestação das capacidades expressivas dos sujeitos. A consciência que
trabalha não expressa a positividade de seus afetos em um objeto que circulará
no tecido social. O trabalho não é a simples tradução da interioridade na
exterioridade. De uma certa forma, a categoria hegeliana de trabalho é
inicialmente uma defesa contra a angústia diante da negatividade da morte ou,
ainda, uma superação dialética da angústia, já que ele é auto-posição de uma
subjetividade que sentiu o desaparecer de todo vínculo imediato ao Dasein natural,
que sentiu o tremor da dissolução de si. Lembremos desta afirmação central de
Hegel:
O trabalho é desejo refreado (gehemmte Begierde), um desvanecer
contido, ou seja, o trabalho forma. A relação negativa para com o objeto toma a
forma do objeto e permanence, porque justamente o objeto tem independência para
o trabalhador. Esse meio-termo negativo ou agir formativo é, ao mesmo tempo, a
singularidade, ou o puro-ser-para-si da consciência que agora no trabalho se
transfere para fora de si no elemento do permanecer; a consciência trabalhadora
chega assim à intuição do ser independente como intuição de si mesma (...) no
formar da coisa, torna-se objeto para o escravo sua própria negatividade[67].
Por refrear o impulso destrutivo do desejo em
seu consumo do objeto, o trabalho forma, isto no sentido de permitir a
auto-objetivação da estrutura da consciência-de-si em um objeto que é sua
duplicação. Sua função será pois realizar, ainda que de maneira imperfeita, o
que o desejo não era capaz de fazer, ou seja, permitir a auto-posição da
consciência-de-si em suas exigências de universalidade, já que o trabalho está
organicamente vinculado a modos de interação social e de reconhecimento.
O giro dialético consiste em que
dizer que a alienação no trabalho, a confrontação tanto com o agir enquanto uma
essência estranha, enquanto agir para-um-Outro absoluto, quanto com o objeto
enquanto aquilo que resiste ao meu projeto (experiência de resistência que será
fundamental para alguém como Adorno desenvolver a idéia de dialética como primado
do objeto) tem caráter formador por abrir a consciência à experiência de
uma alteridade interna como momento fundamental para a posição da identidade.
Daí porque Hegel afirma que tanto o medo quanto o formar são dois momentos
necessários para este modo de reflexão que é o trabalho. Hegel não teme em
afirmar que o formar sem o medo absoluto fornece apenas um sentido vazio, pois
sua forma ou negatividade não é “a negatividade em si” (Negativität an sich). Através do trabalho, o lugar do sujeito como
fundamento pode ser compreendido como negação em si: conseqüência necessária de
uma filosofia do sujeito onde “sujeito” não é mais do que o nome do caráter negativo do fundamento.
Afirmar que há um caráter negativo do fundamento
significa, entre outras coisas, que a relação ao existente não é a repetição do
que está potencialmente posto no fundamento, mas que a própria determinação do
existente não pode mais ser pensada a partir do paradigma da subsunção simples
do caso à norma. Ela exige compreender que não
há determinação completa no sentido de identidade completa entre a determinação
e o fundamento. É isto que a consciência-de-si descobrirá pelas vias do
trabalho.
Notemos, por fim, que temos uma explicação para
o fato de, na Fenomenologia do Espírito, o trabalho não nos colocar no
caminho da “institucionalização da identidade do Eu”[68].
Ou seja, contrariando o que poderíamos esperar, o trabalho não abre uma
dinâmica de reconhecimento que se realizará na regulação jurídica das minhas
relações com o outro através assunção de meus direitos como sujeito que
colabora com a riqueza (Vermögen)
social. Ou ainda, ele faz isto, mas à condição de recomprendermos completamente
o que entendíamos por “identidade”, “direitos”, “sujeito”. Isto porque Hegel
está mais interessado no fato do trabalho aparecer como modo de posição de uma
negatividade com a qual o sujeito se confrontou ao ir em direção à uma potência
de indeterminação cuja assunção é condição para a consciência-de-si “viver no
universal”. Daí podemos derivar o problema maior da modernidade, ao menos
segundo Hegel; problema este que está na base da sua filosofia do direito, a
saber, como viabilizar o reconhecimento institucional de sujeitos pensados
enquanto modos singulares de confrontação com o que se oferece como
indeterminado? Pois não é a indeterminação que produz sofrimento social, mas a
incapacidade das estruturas institucionais e dos processos de interação social
reconhecerem sua realidade fundadora da condição existencial de todo e qualquer
sujeito.
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[1] Este artigo é o desenvolvimento complementar de outro artigo do autor: “A teoria das pulsões como ontologia negativa” In. Revista Discurso, n. 36. Lá, foi questão de mostrar como a teoria psicanalítica das pulsões (em especial em sua versão lacaniana) era solidária de uma reflexão ontológica próxima àquilo que podemos encontrar ao analisarmos os usos hegelianos do conceito de negatividade. Aqui, trata-se de explorar tal via mostrando a relações profundas entre negatividade, universalidade e indeterminação em Hegel.
[2] HEGEL, Fenomenologia do Espírito, Petrópolis: Vozes, 1992, p. 62. Todas as traduções dos textos hegelianos foram corrigidas quando julgado por mim necessário.
[3] A este respeito, por exemplo, Habermas, falará: “de um espírito que arrasta para dentro do sorvo da sua absoluta auto-referência as diversas contradições atuais apenas para fazê-las perder o seu caráter de realidade, para transformá-las no modus da transparência fantasmagórica de um passado recordado – e para lhes tirar toda a seriedade” (HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade¸Lisboa: Dom Quixote, 1988, p. 60)
[4] ADORNO, Negative Dialektik, Frankfurt: Suhrkamp, 1973, p. 323 {tradução modificada]
[5] HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Recht, Frankfurt: Suhrkamp, 1996, par.
7..
[6] idem, par. 6
[7] Ver DELEUZE, Nietzsche et la philosophie,Paris: PUF, 1962, assim como LEBRUN, L’ envers de la dialectique, Paris: Seuil, 2004; ambas leituras que visam, cada um a sua maneira, confrontar Hegel com temáticas da crítica nietzscheana da moral. Agradeço a Ernani Chaves que me revelou a profunda semelhança estrutural entre a crítica de ambos a Hegel.
[8] Não deixa de ser desprovido de interesse lembrar como Deleuze está próximo de Hegel nesta maneira de compreender a morte como potência da indeterminação, o mesmo Deleuze para quem a morte é: “um estado de diferenças livres que não são mais submetidas à forma que lhes era dada por um Eu, que se desenvolve em uma figura que exclui minha própria coerência ao mesmo tempo que a coerência de uma identidade qualquer. Há sempre um ‘morre-se’ mais profundo do que um ‘eu morro’” (DELEUZE, Différence et répétition, 5 ed., Paris: PUF, 2000, p.148).
[9] HONNETH, Lutte pour reconnaissance, Paris: Cerf, 2000, p. 30.
[10] HONNETH, Sofrimento da indeterminação, São Paulo: Esfera Pública, 2007, p. 102
[11] HABERMAS, Verdade e Justificação, Belo Horizonte: Loyola, 2004, p. 195
[12] WILLIAMS; Hegel´s ethics of recognition, University of
California Press, 1998, p. 47
[13] SIEP, Der Kampf um Anerkennung. Zur Auseinandersetzung
Hegels mit Hobbes in den Jenaer Schriften. In:
Hegel-Studien, Bd.9, Bonn 1974, p. 194
[14] HABERMAS, Verdade e justificação, op. cit., p. 200. Sendo que a mais justamente conhecida e sistemática destas tentativas é aquela empreendida por Axel Honneth em seu Luta por reconhecimento (op. cit.).
[15] Lembremos que a Fenomenologia do Espírito apresenta uma crítica explícita ao amor como princípio de relações intersubjetivas através da figura do “Prazer e da necessidade”. Aqui, encontramos também a exigëncia de: “sich als diese Eiselne in einem andern oder ein anderes Selbstbewustssein als sich auzuschauen“. No entanto, tal intuição só pode se realizar através da submissão do outro à essência negativa de um gozo que em nada se aquieta.
[16] Isto pode nos explicar porque alguém como Jacques Lacan, leitor precoce da DSE, desenvolverá um conceito de amor que não pode mais ser compreendido como figura de uma intersubjetividade primária fundada no paradigma comunicacional entre sujeitos, mas que exige a mobilização de conceitos como "destituição subjetiva". A este respeito, remeto ao meu SAFATLE, A paixão do negativo, Sâo Paulo: Unesp, 2006, pp. 209-220. Talvez este seria o único caminho para recuperar o amor em chave hegeliana.
[17] HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., par. 167
[18] PIPPIN, Hegel´s
idealism: The satisfaction of self-consciousness, Cambridge University Press, 1989, p.
148
[19] HEGEL, Enciclopédia das ciências filosóficas. vol III, Belo Horizonte : Loyola, 1995, par. 469
[20] ADORNO, Negative Dialektik, op. cit., p. 216
[21] idem, p. 221
[22] HEGEL, Diferença dos sistemas filosóficos de Fichte e Schelling, Lisboa: Imprensa Nacional da Casa da Moeda, 2003, p. 38
[23] Como bem viu Hyppolite: “a pura vida supera essa separação [produzida pelo primado do entendimento] ou tal aparência de separação; é a unidade concreta que o Hegel dos trabalhos de juventude ainda não consegue exprimir sob forma dialética” (HYPPOLITE, Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito, São Paulo: Discurso Editorial, 1999, p. 162). Ou ainda: “Contra a encarnação autoritária da razão centrada no sujeito, Hegel apresenta o poder unificador de uma intersubjetividade que se manifesta sob o título de amor e vida” (HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, op. cit., p. 39)
[24] HEGEL, Fenomenologia de Espírito, op. cit. par. 168
[25] idem, par. 162
[26] idem, par. 169
[27] HEGEL, Enciclopédia - vil I, op. cit., par. 375
[28] idem, par. 376.
[29] HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., par. 171
[30] HEGEL, Enciclopédia – vol I, op. cit., par. 376
[31] Neste sentido, não é possível aceitar de maneira completa
afirmações como: “a realização da liberdade ocorre quando a natureza (aqui, a
sociedade que teve início numa forma tosca e primitiva) é remodelada segundo as
demandas da razão” (TAYLOR, Hegel e a
sociedade moderna, São Paulo: Loyola, 2005, p. 108). De uma certa forma,
poderíamos mesmo dizer o inverso: a fluidez absoluta da natureza oferece a base
para a remodelação da razão e de sua inquietude. Insistir em “remodelagem” é
apenas uma maneira mais cuidadosa de continuar pensado a relação entre natureza
e história a partir de uma certa ruptura que retira toda dignidade ontológica
da primeira. Melhor seria dizer, como Malabou, que: “ a passagem da natureza ao
espírito não se produz como uma ultrapassagem, mas como duplicação (redoublement),
processo através do qual o espírito se constitui como segunda natureza. Esta duplicação reflexiva é, de uma certa forma,
o ‘estádio do espelho’ do espírito, no qual se constitui a primeira forma de
sua identidade” (MALABOU, L´avenir de
Hegel, Paris: Vrin, 1996, p . 43)
[32] A sua maneira, encontraremos o mesmo tipo de conflito entre determinação e indeterminação nas individualidades biológicas em Freud através de sua teoria das pulsões de vida e de morte, teoria que, por dar conta de processos que se situam no limite entre o somático e o psíquico, também refere-se tanto à natureza quanto à história.
[33] O que não poderia ser diferente se aceitarmos que : « O processo dialético é plástico na medida em que articula no seu curso a imobilidade plena (a fixidez), a vacuidade (a dissolução) e a vitalidade do todo como reconciliação destes dois extremos, conjugação da resistência (Widerstand) e da fluidez (Flüssigkeit)” (MALABOU, L´avenir de Hegel, op. cit., p. 26)
[34] LEBRUN, L´envers de la dialectique, op. cit., pp. 28-29
[35] HEGEL, Enciclopédia - vol III, op. cit., par. 427
[36] idem, par. 359
[37] HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., par. 175
[38] DELEUZE e GUATTARI, L´anti-OEdipe, Paris: Minuit, 1969, p. 34
[39] PLATÃO, Le banquet, Paris: Gallimard, 1950, 200a
[40] idem, 210b
[41] LEAR, Eros and Unknowing: the psychoanalytic significance of Plato's Symposium In: Open minded, Harvard University Press, 1998, p. 163. Esta desqualificação do sensível e da particularidade leva Lebrun a afirmar que: "o adestramento socrático submete o indivíduo a uma autoridade que é apenas a negação simples de todas as pulsões" (LEBRUN, L´envers de la dialectique, op. cit., p. 128)
[42] MORTLEY, Désir et différence dans la tradition platonicienne, Paris: Vrin,
1988, p. 81
[43] Como lembrou muito bem Paulo Arantes em ARANTES, Um Hegel errado mas vivo In: Revista Ide, São Paulo, n. 21, 1991
[44] HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit, p. 209.
[45] De fato, esta perda deve ser posta entre parênteses porque, de uma certa maneira, a consciência perdeu aquilo que ela nunca teve. Por isto, Hegel pode afirmar, a respeito da eticidade: "Mas a consciência-de-si que de início só era espírito imediatamente e segundo o conceito saiu (herausgetreten) dessa felicidade que consiste em ter alcançado seu destino e em viver nele, ou então: ainda não alcançou sua felicidade. Pode-se dizer igualmente uma coisa ou outra. A razão precisa (muss) sair dessa felicidade, pois somente em si, ou imediatamente a vida de um povo livre é a eticidade real" (HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., par. 353). Ou seja, o que Hegel diz é: a consciência perdeu sua felicidade e nunca a alcançou, até porque, perder e nunca ter tido é a mesma coisa. Além do mais, ela precisa perder aquilo que nunca teve. Isto tudo apenas indica o estatuto ilusório da imediaticidade própria à eticidade em sua primeira manifestação. Pois a consciência ainda não sabe que é “pura singularidade para si”, ou seja, ela ainda não é reconhecida enquanto consciência-de-si.
[46] HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 24
[47] E não é por acaso que todos os dois pensem tais fenômenos através
da modificação do sentido sociológico da confrontação com a morte. A este respeito
basta lembrar de Max Weber, para quem: “a vida individual do homem civilizado,
colocada dentro de um progresso infinito, segundo seu próprio sentido imanente,
jamais deveria chegar ao fim; pois há sempre um passo à frente do lugar onde
estamos, na marcha do progresso. E nenhum homem que morre alcança o cume que
está no infinito. Abraão, ou algum camponês do passado, morreu ‘velho e saciado
de vida’, por que estava no ciclo orgânico da vida (...) O homem civilizado,
colocado no meio do enriquecimento continuado da cultura pelas idéias,
conhecimento e problemas, pode ‘cansar-se da vida’, mas não ‘saciar-se dela’”
(WEBER, Ensaios de sociologia, 5 ed.,
São Paulo: LTC, 2002, p. 166)
[48] HEGEL, JenaerPhilosophie, p. 13
[49] HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., par. 163
[50] KANT, Crítica da razão pura, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, B348
[51] Monique David-Ménard, em um texto maior sobre a crítica à noção de desejo como falta, lembra como a psicanálise é tributária da idéia de que: “há uma verdade na experiência de uma inadequação do objeto pulsional à satisfação pulsional que um sujeito persegue”. Isto obrigaria a filosofia a repensar: “a idéia medieval de que a verdade é a adequação do conceito e do objeto, assim como a idéia spinozista de que um pensamento verdadeiro desdobra suas determinações de maneira imanente e na univocidade e que não há verdade possível da inadequação” (DAVID-MÈNARD, Deleuze et la psychanalyse, Paris: PUF, 2005. p. 22). No entanto, esta inadequação não poderia ser pensada a partir de uma “lógica da negação” aplicada ao desejo. Pois esta lógica seria dependente do quadro de oposição entre o universal e o particular, onde o particular aparece como negativo que excede o universal. Mas poderíamos dizer que, ao menos no caso de Hegel, como se trata de pensar um conceito de infinitude ou de determinação infinita, a lógica da negação não é uma lógica da oposição ou da contrariedade, mas da negação determinada (para uma diferença entre oposição e negação determinada, remeto ao meu SAFATLE, Linguagem e negação: sobre as relações entre ontologia e pragmática em Hegel.Revista Dois Pontos São Carlos- Curitiba, v. 3, n. 1, p. 124-167, 2006)
[52] Ver, LEBRUN, L’envers de la
dialectique, op. cit., p. 222
[53] HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., par.595
[54] Ver PINKARD, Hegel´s
phenomenology: The sociality of
reason, op. cit. e
HABERMAS, Caminhos da destranscendentalização In: Verdade e Justificação, op. cit.
[55] HEGEL, Enciclopédia das ciências filosóficas - vol III, op. cit., par. 433
[56] HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., par. 187
[57] HEGEL, Enciclopédia das ciências filosóficas, op. cit., par. 435
[58] Esta intuição hegeliana recebeu uma confirmação material através da psicanálise lacaniana e sua descrição da gênese do Eu através a internalização da imagem de um outro que tem a função de tipo ideal de conduta e de orientação do desejo. A este respeito, remeto ao capítulo “Desejo sem imagens” In: SAFATLE, Lacan, São Paulo, Publifolha, 2007.
[59] LEBRUN, L’envers de la dialectique, op. cit., p. 100
[60] idem, p. 211
[61] DELEUZE, Nietzsche et la philosophie, op. cit., p. 224
[62] HEGEL, Wissenschaft der Logik II, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 81
[63] Longuenesse compreendeu isto bem ao afirmar que, para Hegel : “O
fundamento é o herdeiro da unidade de apercepção da Crítica da razáo pura”
(LONGUENESSE, Hegelet la critique de la métaphysique, Paris: Vrin, 1981, p. 111).
[64] HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., par. 240
[65] DELEUZE, Différence et répétition, 5 ed., Paris: PUF, 2000, p. 331
[66] HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., par. 194
[67] idem, par. 195
[68] HABERMAS, Trabalho e interação In: Técnica e ciência como ideologia, Lisboa: Edições 70, 2007, p. 196