Identidades flexíveis como dispositivo disciplinar:

Algumas hipóteses sobre publicidade e ideologia em sociedades “pós-ideológicas”

 

 

Resumo: Trata-se de expor os resultados de uma pesquisa realizada em 2006 a respeito do que podemos chamar de imaginário de consumidores globais veiculado pela publicidade de circulação mundial. Tal imaginário foi analisado em duas de suas representações centrais, a saber, as representações vinculadas à imagem do corpo e à sexualidade. As conseqüências de tal análise apontam para uma descrição do modo contemporâneo de funcionamento da ideologia no interior da retórica de consumo.

 

Palavras chaves: publicidade, corpo, sexualidade, ideologia, ironia

 

 

Abstract: This article aims to show the results of a research made in 2006 about the imaginary of global consumers in global advertising. Such imaginary was analysed upon two  major representations: one that concerns the body image and other that concerns sexuality. The consequences of such analyse open to a description of the way that ideolgy works in the contemporary rethoric of consuptiom.

                                                                                                                            

Keywords: advertising, body, sexuality, ideology, irony

 

 

Durante o ano de 2006, foi realizada uma pesquisa no intuito de analisar o processo de formação do imaginário de consumidores globais, ou seja, consumidores de marcas de produtos distribuídos mundialmente que se comunicam de maneira relativamente uniforme em todos os locais onde atua[1]. Partiu-se da hipótese de que a eficácia da comunicação de tais marcas pressupõe a existência de consumidores capazes de codificar mensagens de maneira idêntica a partir de conjuntos de referências culturais simétricos. Tal comunicação publicitária de marcas globais pressupõe a existência de um conjunto de representações sociais partilhadas por consumidores em várias partes do mundo. Podemos mesmo falar, neste caso, da existência de um imaginário global de consumo e de socialização. Ele nos coloca diante de um setor privilegiado dos processos de reprodução simbólica das estruturas sociais.

Tal imaginário seria composto por várias representações sociais que podem ser individualizadas e analisadas de maneira relativamente independente. Algumas destas representações mais importantes dizem respeito ao corpo e à sexualidade, já que são representações determinantes na constituição da noção de auto-identidade socialmente reconhecida. O objeto desta pesquisa consistiu exatamente na análise do processo de reconstrução de tais representações sociais na publicidade dos anos 90 e 2000 veiculada na mídia globalizada. Para tanto, a metodologia utilizada serviu-se de dois procedimentos.

Por um lado, tratou-se de construir "constelações semânticas" visando definir os tipos ideais de corpo e sexualidade nos anos 90 e 2000. Isto implicou na determinação de redes de importação entre as diversas esferas da cultura de consumo: cinema, games, moda, publicidade. Tal rede foi o resultado mais visível da aplicação de uma abordagem histórico-social visando estabelecer uma cartografia capaz de identificar as mutações mais substanciais das representações hegemônicas do corpo e da sexualidade na publicidade de veiculação mundial. Uma cartografia que não procurou, nem julgou necessário, ser exaustiva. Pois ela devia ser sobretudo axial e expor os eixos maiores de desenvolvimento de tais representações para que a interação entre publicidade e forças sócio-culturais se deixe apreender.

Desta maneira, procurou-se organizar uma abordagem sistêmica dos fatos culturais capaz de identificar a origem e os processos de migração destas representações sociais que, a partir dos anos 90, comportar-se-ão como hegemônicas. Se partirmos da hipótese adorniana de que a cultura de massa articula-se como um sistema, poderemos estar mais atentos a maneira com que certos conteúdos sociais utilizados pela publicidade são sintetizados primeiramente em outras esferas da cultura (cinema, música pop, moda, artes visuais etc.). O que nos permitirá colocar uma questão central: o que acontece a certos conteúdos quando eles migram de outras áreas da cultura em direção à publicidade?

Lembremos como Adorno, ao refletir sobre a estrutura monopolista da industria cultural, afirma: “Tudo está tão estreitamente justaposto que a concentração do espírito atinge um volume tal que lhe permite passar por cima da linha de demarcação entre as diferentes firmas e setores técnicos. A unidade implacável da indústria cultural atesta a unidade em formação da política” (ADORNO, 1991, p. 116). Podemos encontrar uma confirmação suplementar deste caráter sistêmico da cultura de massa através dos cool hunters, ou seja, profissionais pagos por grandes multinacionais que procuram ver, na produção cultural, os traços para as novas tendências do consumo de massa (FONTENNELLE, 2005) . Sua função é identificar "novas tendências culturais  que possam ser empacotadas, transformadas em commodities, e vendidas no mercado comercial" (RIFKIN, 2001, p. 149) mostrando assim a articulação sistêmica entre cultura, mídia e mercados.

            Por outro lado, a metodologia também consistiu em pesquisas qualitativas baseadas em entrevistas diretas com consumidores brasileiros e europeus das marcas em questão. Tais entrevistas procuraram não apenas constituir tais constelações semânticas do ponto de vistas das individualidades, mas também identificar a maneira com que a comunicação de tais marcas insere-se em reflexões mais amplas, fornecendo referenciais para as experiências subjetivas relacionadas ao corpo e à sexualidade.

 

A mercantilização da recusa à publicidade

 

Há uma década atrás, o fotógrafo italiano Oliviero Toscani acusava a publicidade global de sustentar um ideal ariano de beleza capaz de sintetizar apenas corpos harmônicos, saudáveis e jovens. Sua crítica também não poupava uma certa noção falocêntrica de sexualidade que guiaria a produção de representações sociais na comunicação de massa. Mas, durante o decorrer da década de 90, percebemos um lento processo de reconfiguração de representações sociais midiáticas  vinculadas ao corpo e à sexualidade. Processo este que, aos poucos, colocou em circulação imagens do corpo e da sexualidade até então nunca investidas libidinalmente pela publicidade. Graças às campanhas mundiais de marcas como Bennetton, Calvin Klein, Versace e Playstation, corpos doentes, mortificados, des-idênticos, portadores de uma sexualidade ambígua, auto-destrutiva e muitas vezes perversa marcaram a trajetória da publicidade nos anos 90. Compreender a lógica imanente ao processo de reconstrução de tais representações sociais na mídia globalizada aparece como fundamental para a caracterização das mutações da retórica contemporânea do consumo e de suas implicações na cultura. A comunicação destas marcas foi o objeto do estudo aqui apresentado.

A escolha em centrar a análise na publicidade mundial a partir dos anos 90 teve uma razão que se articula com um problema próprio a economia política da mídia. A partir dos anos 90, a mídia mundial adquiriu mais claramente a forma de grandes conglomerados multimídias transnacionais nos quais convergem: controle dos meios de comunicação, dos processos de produção de produtos midiático-culturais e das pesquisas tecnológicas em novas mídias. Centros de tecnologia/entretenimento/informação formam hoje um tripé fundamental da economia mundial. Na história da mídia, os anos 90 serão lembrados pela criação de conglomerados como : AOL Time Warner, Vivendi Universal e a News Corporation de Rupert Murdoch; além da consolidação de outros como Sony, Viacom, Disney e General Eletric (ALBARRAN, 1998). Podemos insistir, por exemplo, que já no início dos anos 90, quatro grandes grupos de mídia controlavam cerca de 92% da  circulação de jornais diários e cerca de 89% da circulação dos jornais de domingo na Inglaterra (THOMPSON, 1997, p. 74). Longe de termos uma pulverização das instâncias de produção de conteúdo midiático, como alguns esperaram devido ao desenvolvimento exponencial de novas mídias, vimos uma convergência cada vez maior de produção de conteúdo, canais de distribuição e de gestão de recepção.

Tal processo de globalização das mídias chegou rapidamente ao mercado publicitário, que viu durante os anos 90 numerosas fusões e joint-ventures que, em muitos casos, centralizaram boa parte do processo e decisão criativa na matriz mundial, cabendo às filiais regionais apenas a tradução de campanhas e pequenas adaptações (DE MOOIJ, 1994). A conjugação destes fatores, impulsionada pelo desenvolvimento tecnológico da comunicação global (TV a cabo, internet etc.) consolidou o re-aparecimento de uma publicidade produzida e veiculada mundialmente direcionada a um “público global”.

             Notemos que esta publicidade mundial foi talvez o melhor veículo de uma ideologia da globalização e da abolição de fronteiras culturais que ganhou força através da euforia alimentada pela queda dos países de regime comunista na Europa do Leste a partir de 1989 e pela ascensão do multiculturalismo como projeto maior das sociedades liberais. Neste sentido, não devemos descartar a possibilidade de convergência entre os conteúdos das representações sociais do corpo e da sexualidade a serem apresentados e certos imperativos próprios à constituição de identidades globais.

            No entanto, o que salta primeiramente aos olhos é que este processo de constituição de um imaginário global de consumo não se deixa ler a partir da noção de repetição massiva de estereótipos e tipos ideais de conformação do corpo e da sexualidade. Ao contrário, tudo indica que os anos 90 forma o momento em que, de uma certa forma, a publicidade mercantilizou o discurso da dissolução do eu como unidade sintética.

Sabemos como o eu está profundamente vinculado à imagem do corpo próprio, ao ponto em que desarticulações na imagem do corpo próprio afetam necessariamente a capacidade de síntese do eu (LACAN, 1996. pp. 96-104). O processo de formação do eu como instância de auto-referência e como unidade sintética de percepções é fundamentalmente dependente da constituição de uma imagem do corpo próprio capaz de servir como matriz imaginária para distinções entre ipseidade e alteridade, entre interior e exterior, entre outros. De fato, há uma proeminência da imagem do corpo sobre os ‘dados e sensações imediatas’ do corpo. Para que existam sensações localizadas e percepções é necessário que exista um esquema corporal (fundamentalmente vinculado às capacidades organizadoras da imagem ) capaz de operar a síntese dos fenômenos ligados ao corpo. A imagem aparece assim em posição transcendente e unificadora.

Mas, se voltarmos os olhos para a retórica do consumo e da indústria cultural, veremos como elas passaram por mutações profundas que afetaram o regime de disponibilização das imagens ideais de corpo. Ao invés de locus da identidade estável, o corpo fornecido pela industria cultural e pela retórica do consumo aparece cada vez mais como matéria plástica, espaço de afirmação da multiplicidade. Isto levou um sociólogo como Mike Featherstone a afirmar que “no interior da cultura do consumo, o corpo sempre foi apresentado como um objeto pronto para transformações” (FEATHERSTONE,  2000, p. 4).

            A princípio, tal  situação parecia marcar com o selo da obsolescência a idéia frankfurtiana da indústria cultural como negação absoluta da individualidade. Pois, ao invés das operações de socialização através da exigência de identificação com um conjunto determinado de imagens ideais, estaríamos agora diante de uma indústria cultural que incita a reconfiguração contínua e a construção performativa de identidades. Na verdade, o setor mais avançado da cultura do consumo não forneceria mais ao eu a positividade de modelos estáticos de identificação. Ele forneceria apenas a forma vazia da reconfiguração contínua de si que parece aceitar, dissolver e passar por todos conteúdos. Isto pode nos explicar porque temos cada vez menos necessidade de padrões claros de conformação do corpo a ideais sociais.

            Foi tendo este processo em vista que a pesquisa se debruçou sobre a análise o posicionamento mundial de comunicação de quatro marcas nos anos 90 : Benetton, Calvin Klein, Versace e PlayStation. Este conjunto se impôs porque estamos diante de marcas que influenciaram de maneira decisiva o desenvolvimento da publicidade dos anos 90 através de uma conjunção entre novidade estilística e apresentação de novas representações sociais. A estética heroina chic da Calvin Klein, a androginia e a indeterminação sexual da Versace, a publicidade que questiona os parâmetros da linguagem publicitária da Benetton, assim como o corpo maquínico, fusional e mutante da PlayStation modificaram sensivelmente os limites e as estratégias da retórica publicitária. Outro dado importante a lembrar é que todas estas campanhas foram criadas por fotógrafos e agências internacionais. Agências nacionais decidem apenas a veiculação. No caso da Playstation, sequer a veiculação é feita no Brasil. Os espaços são comprados em veículos internacionais (TV a cabo, revistas de circulação internacional etc.).

No que diz respeito ao nosso objeto de estudos, podemos dizer que elas estruturaram três representações sociais que foram analisadas detalhadamente nesta pesquisa, a saber:

 

O fato de três destas marcas referirem-se a produtos de moda (Benetton, Calvin Klein e Versace) e uma a um game ligado, de uma certa forma, ao imaginário da realidade virtual é algo que não deve causar surpresas. Pois todas estas marcas oferecem produtos que mercantilizam diretamente a promessa da re-fabricação plástica da identidade de si. Promessa fundamental para a sustentação dos vínculos subjetivos com uma ordem econômica (o capitalismo tardio) marcada exatamente pela realidade da desterritorialização. No caso de um produto ligado ao universo da realidade virtual (PlayStation), o apelo à experiência controlada da plasticidade da identidade é ainda mais visível.

Notemos, apenas a título indicativo, que, ao trabalhar representações publicitárias do corpo marcado pela doença, pela ambigüidade e pela des-identidade, estamos falando de um processo de mercantilização do que aparentemente seria o avesso da forma-mercadoria. Pois estamos diante da mercantilização midiática de representações do corpo aparentemente avessas à imagem ideal do corpo fetichizado (como são as representações do corpo doente e do corpo ambivalente) que circulava de maneira hegemônica na própria publicidade.

Talvez este fato indique uma nova etapa da retórica do consumo, já que vemos uma retórica prestes a flertar com noções aparentemente des-harmônicas do desejo e que pode indicar o advento de novos processos de mercantilização da negatividade da auto-destruição e da revolta contra as imagens ideais do corpo. Talvez valha neste caso o dito premonitório de Debord : “À aceitação dócil do que existe pode juntar-se à revolta puramente espetacular : isso mostra que a própria insatisfação tornou-se mercadoria, a partir do momento em que a abundância econômica foi capaz de estender sua produção até o tratamento desta matéria-prima” (DEBORD, 2002, p. 40). Ou seja, nada impede que o a frustração com o universo fetichizado da forma-mercadoria e de suas imagens ideais possa se transformar também em uma mercadoria. Na verdade, esta é a base do posicionamento das campanhas mundiais da Bennetton, só para ficar no exemplo mais visível. Ao questionar consumidores da marca a respeito das estratégias de comunicação da Bennetton, percebemos os resultados de uma lógica na qual a frustração com o universo publicitário vira a mola do próprio discurso publicitário. Afirmações feitas por entrevistados como: “Aquilo é o mundo real”, “Não gosto de ser tratado como alguém absolutamente aparte dos problemas do mundo” e “Bennetton foi importante por trazer problemas mundiais para o horário comercial” indicam que as rupturas formais e de conteúdo  próprias às campanhas da Bennetton permitiram a mercantilização publicitária da frustração com o universo publicitário.

Podemos mesmo colocar como hipótese que, a partir do momento em que a saturação do público consumidor em relação aos artifícios corriqueiros da retórica publicitária motivou uma certa invalidação de representações sociais normalmente vinculadas à positividade do universo das mercadorias, então a publicidade viu-se obrigada a, digamos, “flertar com o negativo”. Assim: “a crítica ao  capitalismo tornou-se, de forma bem estranha, o sague salvador do capitalismo” (FRANK, 2003, p. 44). A publicidade enquanto estrutura retórica tem uma dinâmica própria de investimento e des-investimento de estratégias persuasivas. A repetição contínua de certas estratégias impõe uma lógica de desgaste de certos conteúdos retóricos.

 

Posicionamento bi-polar de marca

 

            Este processo de mercantilização publicitária da frustração com o universo publicitário serviu de base para a análise das campanhas da Calvin Klein e Versace. Nestes casos, a  hipótese inicial consistia em afirmar que idéias vinculadas a ambivalência sexual e ao desconforto com imagens ideais de corpo estariam migrando para o cerne da cultura de consumo. Uma migração que levaria consumidores a se identificarem cada vez mais com tais representações sociais. Tal hipótese parecia corroborar uma certa forma cada vez mais hegemônica de afirmar a obsolescência de lógicas própria a uma sociedade repressiva, isto em prol do advento de uma época de flexibilização e “construção” de papéis sexuais. Poderíamos assim esperar que os consumidores de Calvin Klein e Versace tivessem, de uma forma ou outra, este ideal de conduta. No entanto, esta hipótese não se confirmou através das entrevistas realizadas.

            Sobre as campanhas da Calvin Klein, com modelos no limiar da anorexia e com corpos des-vitalizados, algumas afirmações de entrevistados forma: “As campanhas da Calvin Klein mostravam pessoas que não existem. Ninguém tem aqueles corpo magros e estilosos”, “Aquele não é meu padrão de beleza. Gosto de mulher com carne”(consumidor brasileiro). Sobre a Versace, encontramos afirmações como: “Hoje em dia as pessoas são cada vez mais bi-sexuais, as mulheres querem copiar o que há de pior nos homens”, “A marca é tão chique que pode ser vulgar”, “Não é o tipo de situação na qual me vejo. Mas hoje é cool tratar sexo como o jogo”. Tais afirmações foram muito ilustrativas da média do que foi encontrado pela pesquisa.

            A conclusão aparente indicava que parte significativa dos consumidores da própria marca não se reconheciam nos padrões de corpo e sexualidade da própria marca. O que nos colocava com a questão de saber o que então sustentava o processo de identificação entre consumidor e marca. Notemos, por outro lado, que, mesmo não se identificando com tais padrões, a grande maioria dos entrevistados reconhecia estes mesmos padrões como tendências hegemônicas: “Cada vez mais os adolescentes jogam com a ambivalência sexual”, afirma um entrevistado de 33 anos a quem foi pedido uma projeção social a respeito das representações de sexualidade presentes em um conjunto de peças publicitárias da Calvin Klein. O que indica a capacidade da marca em se colocar como referência de interpretação da vida social.

Mas o dado inusitado consistia nesta posição de consumidores de marca com a qual eles não se identificam. A chave para o problema consistia em uma aparente contradição. Na mesma época em que Calvin Klein colocava em circulação suas campanhas heroína chic e suas representações de corpo doente, mortificado, sexualmente ambivalente (em capanahs, por exemplo, para CK One, CK Be e Obsession), ela disponibilizava campanhas (como as criadas para Eternity) com valores exatamente contrários, valores exaltando a família moderna e “classicamente definida”, o retorno à natureza, o equilíbrio. Lembremos que se tratavam de campanhas que alcançavam o mesmo target por serem veiculadas nas mesmas revistas (Details, Vanity Fair, Vogue, GQ, Rolling Stones etc.).

            A resposta para tal contradição aparente consiste em insistir que o posicionamento destas marcas não é um posicionamento de valores “exclusivos”, mas um posicionamento “bi-polar”. Ou seja, ele é assentado em valores contrários. O que aparentemente seria um erro crasso de posicionamento revela-se uma astúcia. Por um lado, isto permite ao consumidor identificar-se com a marca sem, necessariamente, identificar-se com um dos seus pólos. Mas, principalmente, este posicionamento bi-polar pode funcionar porque os próprios consumidores são incitados a não se identificarem mais a situações estáticas.

            A publicidade contemporânea e a cultura de massa está repleta de padrões de condutas construído através de figuras para as quais convergem disposições aparentemente contrárias. Mulheres, ao mesmo tempo, lascivas e puras, crianças, ao mesmo tempo, adultas e infantis, marcas tradicionais e modernas. Esta lógica foi bem sintetizada no teaser de uma campanha da própria Calvin Klein: “Be bad, be good, just be”. Ou seja, um modo de ser próprio a uma era da flexibilização de padrões de identificação.  Uma época como esta permite marcas que tragam, ao mesmo tempo, a enunciação da transgressão e da norma. Até porque os sujeitos estão presos a esta lógica de ao mesmo tempo aceitar a norma e desejar sua transgressão. A publicidade compreendeu isto. Daí porque atualmente ela fala a eles visando este ponto em que transgressão e norma se imbricam. 

            Se este for realmente o caso, então teríamos uma tendência a repensar a dinâmica própria à noção de posicionamento de marca. Práticas comerciais e dispositivos de incitação ao consumo pressupõem, necessariamente, uma certa teoria a respeito da maneira com que sujeitos orientam seus desejos e sustentam processos de identificação. A sua maneira, Marx já havia percebido algo desta natureza ao afirmar que: “A produção não cria somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto” (MARX, 1978, p. 100). Devemos apenas completar dizendo que não apenas os modos de produção criam modos de subjetivação, mas também que modos de consumo produzem maneiras dos sujeitos determinarem sua própria subjetividade.

Digamos que, grosso modo, na noção “clássica” de posicionamento de marcas, trabalhamos com sujeitos pensados como tipos-ideais (para usar um termo weberiano) que parecem procurar, nos produtos, certos valores de significação bem definida (“segurança”, “modernidade”, “retorno à natureza” etc.). No entanto, é possível que tal maneira de pensar a relação consumidor-marca não dê mais conta de certas tendências contemporâneas. Tendências que levam os consumidores a se identificar com o ponto de indistinção entre valores contrários, compondo com isto um ideal de personalidade não vinculado mais à coerência de condutas submetidas a um padrão de unidade. O que não poderia ser diferente. Basta lembrarmos que, atualmente, estamos diante de uma sociedade na qual os vínculos com os objetos (incluindo aqui os vínculos com a imagem do corpo próprio) são frágeis, mas que, ao mesmo tempo, é capaz de se alimentar desta fragilidade. Até porque, não se trata de disponibilizar exatamente conteúdos determinados de representações sociais através do mercado. Trata-se de disponibilizar a pura forma da reconfiguração incessante que passa por e anula todo conteúdo determinado, e é isto que tais marcas procuram fazer.

Notemos, por exemplo, a significação do aparecimento do corpo sexualmente ambivalente como elemento maior da retórica publicitária do final dos anos 90. A diferença sexual nunca colocou problemas para a retórica publicitária, mas os anos 90 viram a proliferação de imagens de ambivalência, assim como uma certa feminização de representações masculinas em produtos cujo target nada tem a ver com públicos homossexuais. O caso mais ilustrativo aqui é a campanha mundial da marca de moda Versace desenvolvida pelo fotógrafo Steven Meisel e pela A/R media em 2002. Ela se resume a fotos de um casal na cama ou em um quarto com decoração carregada e pretensões de luxo. Além disto, há apenas a assinatura do anunciante. Nós sempre sabemos quem é um dos parceiros (um homem ou uma mulher bem vestidos em posição de autoconfiança, tédio e domínio da situação), mas nunca sabemos quem é o outro, já que sempre aparece sem rosto, jogado em um canto para denotar que foi usado em um jogo sexual, com roupas íntimas femininas e traços de corpo masculino. Implicações de lesbianismo lipstick, de homossexualismo e de ambigüidade sexual são evidentes. Note-se que este apelo ao embaralhamento de papéis sexuais não é direcionado para um target  homossexual. O target da Versace é composto basicamente de mulheres com mais de 30 anos.

A análise de entrevistas sobre Versace feitas por esta pesquisa apenas demonstrou a recorrência de afirmações como: “Hoje em dia as pessoas são cada vez mais bi-sexuais, as mulheres querem copiar o que há de pior nos homens”, “A marca é tão chique que pode ser vulgar”, “Não é o tipo de situação na qual me vejo. Mas hoje é cool tratar sexo como o jogo”. Ou seja, novamente, as próprias consumidoras não se identificavam totalmente com o padrão geral de conduta apresentado pela campanha publicitária, a não se que tal jogo de ambivalências seja apenas a uma aparência que deva ser tratada como pura aparência.

 

A sociedade da insatisfação administrada e seus dispositivos disciplinares

 

Aqui, vale a pena uma certa digressão. É possível que o segredo desta sociedade na qual os vínculos com objetos e valores são frágeis, mas que é capaz de alimentar-se desta fragilidade mesma está em algo que poderíamos chamar de “ironização absoluta dos modos de vida”. Pois, em uma sociedade como a nossa, onde se trata fundamentalmente de saber administrar a insatisfação (e não exatamente de administrar a satisfação através da constituição de estereótipos de conduta), os sujeitos não são mais chamados a se identificar com tipos ideais construídos a partir de identidades fixas e determinadas, o que exigiria engajamentos e uma certa ética da convicção. Na verdade, eles são cada vez mais chamados a sustentar identificações irônicas, ou seja, identificações nas quais, a todo momento, o sujeito afirma sua distância em relação àquilo que ele está representando ou ainda, em relação a suas próprias ações.

A psicanálise, em especial a psicanálise de orientação lacaniana, insistiu no papel das identificações como processo central na socialização e sustentação dos vínculos sociais. Ela chegou mesmo a estabelecer uma distinção estrita entre identificação imaginária, fundada na introjeção constitutiva e especular da imagem de um outro que tem o valor de tipo ideal, e identificação simbólica, que indica o reconhecimento de si em um traço unário vindo de um Outro (normalmente aquele que sustenta a função paterna) na posição de Ideal do eu. Esta forma de identificação é modo de reconhecimento que, por operar através de traços unários, isto ao invés de operar por imagens estáticas, não impõe ao sujeito a partilha de uma identidade fixa, mas o leva a se reconhecer e a reconhecer seu desejo naquilo que não tem objetivação previamente determinada.

Através desta duplicidade nos mecanismos de identificação, Lacan procurava explicar como os processos de socialização baseados em identificações podiam dar conta do fato dos sujeitos serem capazes de se reconhecer em funções simbólicas que não se esgotam nas figuras contingentes daqueles que as portam. No entanto, tudo se passa como transformássemos esta ausência de objetivação previamente determinada própria às funções simbólicas em ironia. Pois, tal como as identificações simbólicas, as identificações irônicas não estão vinculadas a introjeção de imagens privilegiadas colocadas em posição de ideal. Mas esta destruição da pregnância das imagens pode redundar simplesmente na implementação contínua de uma certa distância irônica em relação a toda determinidade empírica, ou seja, em relação a todo papel identitário que determina um fazer social. Um distanciamento que pode se estabilizar a partir do momento em que os sujeitos tratam suas identidades sociais como simples semblants, para usar um termo de Lacan, ou ainda, como aparências postas enquanto tal. Assim, eles se aferram a identidades sociais que não têm realidade substancial devido exatamente ao fato delas não terem realidade substancial alguma. Tal lógica da ironização pode realizar-se, por exemplo, através da “flexibilidade” de uma subjetividade plástica que compreende identidades sociais como aparências postas como aparência e que, com isto, pode afirmar-se enquanto puro jogo de máscaras não mais submetido a princípio unificador algum.

Tudo isto nos permite dizer que esta ironização absoluta dos modos de vida com sua lógica de autonomização da aparência pode aparecer como posição subjetiva que internalizou a desvinculação geral entre imperativo de gozo e conteúdos normativos privilegiados própria a uma retórica de consumo que enuncia, ao mesmo tempo, a norma e sua transgressão. Ela ganha relevância em uma situação histórica, como a nossa, na qual a ideologia no capitalismo pode livrar-se de todo e qualquer vínculo privilegiado a conteúdos substantivos. Pois: “Da mesma forma que o sujeito irônico pode adotar qualquer discurso ou persona, o capitalismo pode colocar no mercado qualquer discurso ou valor (...) Ironia representa, ao mesmo tempo, uma tendência e um problema do capitalismo. Ela sempre pôs algum ponto para além de todo conteúdo ou valor particular. Neste sentido, ela antecipou a tendência do capitalismo em atravessar contextos e produzir um ponto universal a partir do qual todos valores podem ser intercambiados” (COLEBROOK, 2004, p. 150).

Há muito nossos dispositivos disciplinares não procuram mais produzir subjetividades através da internalização de sistemas unificados de condutas e regras de práticas corporais. Não vivemos mais na época em que a ideologia procurava naturalizar modelos normativos de conduta e tipos sociais ideais, até porque isto exigiria identificações com tipos sociais pautadas pela ética da convicção; o que é impossível em situações de crise de legitimidade como a nossa. Mas notemos esta disposição atual da indústria cultural em ironizar a todo momento aquilo que ela própria apresenta. Esta auto-derrisão é uma maneira astuta de perenizar estruturas narrativas e quadros de socialização, mesmo reconhecendo que eles já estão completamente arruinados. 

Levando tal situação em conta, podemos afirmar que uma época como a nossa desenvolveu dispositivos disciplinares que são subjetivados “de maneira paródica” por procurarem levar sujeitos a constituirem sexualidades e economias libidinais que absorvem, ao mesmo tempo, o código e sua negação. Neste sentido, a paródia, longe de ter uma força política explosiva (como defendem teóricos como Giorgio Agamben e Judith Butler[3]), parece ser, na verdade, a lógica mesma de funcionamento dos dispositivos disciplinares da bio-política contemporânea, o que nos leva a encontrá-la no seio da retórica midiática de consumo. Pois a “administração dos corpos e a gestão calculista da vida” a respeito da qual fala Michel Foucault só é atualmente possível não através do vínculo a mandatos simbólicos coesos, mas através da internalização de tipos ideais e práticas que transgridem suas próprias disposições de conduta, tipos ideais próprios a situações de anomia. Ou seja, esta maneira de funcionamento do setor mais avançado da retórica de consumo é apenas uma forma de gestão disciplinar dos processos de subjetivação em situações sociais de anomia.

É bem provável que a contemporaneidade esteja diante de uma situação histórica na qual a própria Lei normativa tende a funcionar de maneira paródica e auto-derrisória (ver SAFATLE, 2005). Este fato está vinculado a uma modificação maior nos modos de operação da ideologia já diagnosticado desde Adorno: a ironização absoluta dos modos de vida e condutas. Ironização que nos coloca diante daquilo que Peter Sloterdijk um dia chamou de ideologia reflexiva, posição ideológica que porta em si mesma a  negação dos conteúdos que ela apresenta. Maneira astuta de perpetuá-los mesmo em situações históricas nas quais eles não podem mais esperar enraizamento substancial algum.

 

Bibliografia

 

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COLEBROOK, Claire; Irony, Londres: Routledge, 2004

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DEBORD, Guy; A sociedade do espetáculo, Contraponto, Rio de Janeiro, 2002

FEATHERSTONE (org.), Body modifications, Sage, Londres, 2000

FONTENELLE, Caçadores do cool: pesquisas de mercado de “tendências culturais” e transformações na comunicação. In: Cadernos de Pesquisa ESPM, n.1, 2005

FRANK, Tom; O marketing da libertação do Capital In: Cadernos Le monde diplomatique, n. 1/03, pp. 43-45

LACAN, O estádio do espelho como formador da função do Eu. In: Escritos, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1996

MARX, Karl; Para uma crítica da economia política, Abril, São Paulo, 1978

RIFKIN, Jeremy, O fim do emprego, Makron books, São Paulo, 2001

SAFATLE, Sobre um riso que não reconcilia: ironia e certos modos de funcionamento da ideologia, Revista Margem Esquerda, n.5, 2005

TOSCANI, Oliviero; A publicidade é um cadaver que nos sorri,Objetiva, Rio de Janeiro, 1998

 

 

Vladimir Safatle, Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, pesquisador-bolsista do CNPq, autor de, entre outros: “A paixão do negativo: Lacan e a dialética”(Unesp, 2006)



[1] Esta pesquisa foi conduzida pelo autor, que teve o auxílio inestimável e decisivo do bolsista Gustavo Monteiro. Ela foi financiada pelo Centro de Altos Estudos em Propaganda e Marketing (CAEPM), centro de pesquisas vinculado à ESPM/SP.

[2] Lembremos da provocação de Oliviero Toscani: “A publicidade não conhece a morte” in (TOSCANI, 1998, p. 5). Devemos acrescentar, nesta mercantilização do corpo doente e mortificado, a transformação de um certo ‘sadomasoquismo chic’ em paradigma do comportamento sexual socialmente aceito e veiculado pela publicidade. Ao analisar certas publicidades de moda dos anos 90, Diane Barthel afirma: “In such advertisements sadism becomes understandable and aggression is presented as a daily part, even a desirable part of daily life” (BARTHEL, 1988, p. 81).

[3] Ver AGAMBEN, 2005 e BUTLER, 1999