Was ist Zynismus?

 

 

Não é quando é perigoso dizer a verdade

que ela raramente encontra defensores,

mas sim quando é enfadonho.

Nietzsche

 

 

Sobre a noção de razão cínica

 

Uma discussão sobre as configurações contemporâneas do cinismo não tem como deixar de levar em consideração certos modos de encaminhamento que nortearam o projeto deste livro que, para o bem ou para o mal, funcionou como catalizador do debate : Crítica da razão cínica, de Peter Sloterdijk. Nele, o autor parte da famosa frase usada por Marx a fim de traçar os contornos do desconhecimento ideológico : “Eles não sabem, mas o fazem”. Uma certa leitura da afirmação nos levaria à idéia de que se trataria do desconhecimento da consciência em relação a estrutura social de significação que determina o significado objetivo da ação. Ela não sabe o que realmente faz; isto devido a sua posição de suporte (Träger) de determinações estruturais de reprodução da vida material que a ultrapassam. Conhecemos todos esta temática da alienação da falsa consciência no domínio das relações reificadas e de uma aparência socialmente necessária. Alienação que indicaria, entre outros, a incapacidade de compreensão da totalidade das estruturas causais historicamente determinadas que suportam a reprodução das relações sociais em todas as suas esferas de valores.

No interior desta leitura, o papel da crítica seria o de abrir espaço para a apropriação auto-reflexiva dos pressupostos determinantes da ação. Apropriação que, por sua vez, pressuporia a possibilidade, mesmo que utópica, de processos de interpretação capazes de instaurar um regime de relações não-reificadas que garantam a transparência da totalidade dos mecanismos de produção de sentido. A crítica vira “descrição das estruturas que, em última instância, definem o campo de toda significação possível”[1]. Uma das figuras desta crítica poderia ser, por exemplo, uma certa Erinnerung capaz de desvelar a história do desenvolvimento do processo real de produção que deveria ser interiorizada pela  consciência de classe. Pensemos, por exemplo, em Lukács quando este afirma que: “a existência da burguesia pressupõe sua incapacidade em chegar à compreensão clara de seus próprios pressupostos sociais”[2]. Ou seja, a auto-crítica da burguesia seria Erinnerung, rememoração e interiorização de seus pressupostos; o que permitiria o estabelecimento das condições para o ultrapassamento das ilusões burguesas e a re-orientação da ação a partir de um processo de historicização reflexiva. Esta critica que opera através dos motivos do desvelamento daquilo que estaria bloqueado à rememoração e à historicização reflexiva tem necessariamente algo de irônico no sentido forte do termo, sentido vinculado às formas de estetização de experiências sociais de inadequação entre aspirações normativas e realidade efetiva. Pois se trata de levar a consciência histórica a sua auto-posição através da realização da inadequação entre o processo de formação de seu sistema de justificações e a sua capacidade performativa “objetivamente necessária”.

            Levando tal esquema em conta, Sloterdijk pode afirmar ser o cinismo algo como uma ideologia reflexiva ou, ainda, uma falsa consciência esclarecida. Posições resultantes de um tempo que conhece muito bem os pressupostos ideológicos da ação mas não encontra muita razão para reorientar, a partir daí, a conduta. A noção de ideologia reflexiva, ou seja, de ideologia que absorve o processo de apropriação reflexiva de seus próprios pressupostos é astuta por descrever a possibilidade de uma posição ideológica que porta em si mesma sua própria negação ou, de uma certa forma, sua própria crítica. Já o termo aparentemente contraditório falsa consciência esclarecida nos remete à figura de uma consciência que desvelou reflexivamente os móbiles que determinam sua ação “alienada”, mas mesmo assim é capaz de justificar racionalmente a necessidade de tal ação. A crítica assim, por não poder fazer apelo à dimensão de uma verdade recalcada pela construção ideológica (já que tudo é posto pela consciência), perde sua eficácia para modificar predisposições de conduta. Daí a noção de que o cinismo : “É a  consciência infeliz modernizada sobre a qual a Aufklärung agiu ao mesmo tempo com sucesso e em pura perda”[3]. É neste sentido que Sloterdijk pode dizer que, no cinismo : “Eles sabem o que fazem, e continuam a fazê-lo”. 

O cinismo aparece assim como elemento maior do diagnóstico de uma época na qual o poder não teme a crítica que desvela o mecanismo ideológico. Até porque, como veremos, neste ínterim o poder aprendeu a rir de si mesmo, o que o permitiu : “revelar o segredo de seu funcionamento e continuar a funcionar como tal”[4]. Tais colocações demonstram como a problemática referente ao cinismo nos leva ao cerne de uma reflexão sobre os modos de funcionamento da ideologia em sociedades ditas “pós-ideológicas”, ou seja, sociedades que aparentemente não fariam mais apelos à reificação de  metanarrativas teleológicas enquanto fundamento para processos de legitimação e validade de estruturas da ação racional.

            No entanto, vale a pena insistir aqui em um ponto importante. A dinâmica aparentemente contraditória de uma ação produzida por uma falsa consciência esclarecida não pode ser simplesmente compreendida como a suspensáo de exigências gerais de legitimidade e validade, ou como mera deposição resignada de expectativas emancipatórias da razão. Ela não pode ser simplesmente a figura desesperada e “irracional” da conduta em uma era de crise de legitimação. Não devemos esquecer que a obediência a injunções do poder nunca é o mero resultado da aplicação de esquemas de coerção e violência, a não ser que a força seja interpretada em um contexto na qual ela já apareça imediatamente como promessa de eficiência e performatividade (atual ou potencial). Não há poder que possa economizar elaborações sobre sua racionalidade. A verdadeira questão consiste em compreender como esta justificação racional se dá, quais seus verdadeiros móbiles.

            Desta forma, faz-se necessário insistir que a obsolescência do mascaramente ideológico (diagnóstico que deve ser encontrado primeiramente na crítica da ideologia adorniana[5]) é um fenômeno mais complexo do que a simples aceitação tácita de que a força prescinde de toda necessidade real de justificação. O recurso constante a critérios normativos e a valores partilhados em situações contemporâneas de afirmação da força, mesmo que feitos de maneira meramente retórica, demonstra como as aspirações de legalidade continuam sendo peças fundamentais da lógica interna do poder. A obsolescência do mascaramento ideológico apenas indica que, de uma certa forma, talvez da única forma “realmente” possível, as promessas de racionalização e de modernização da realidade social já foram realizadas pela dinâmica do capitalismo. Elas foram realizadas de maneira cínica; o que significam que, uma forma ou de outra, elas foram realizadas.       

Neste sentido, não devemos perder de vista que o estudo do que poderíamos chamar de razão cínica é um setor privilegiado dos modos de articulação das expectativas emancipatórias da razão a uma teoria do poder. Pois o cinismo é fundamentalmente um regime peculiar de funcionamento do poder e da ação social que procura dar conta de exigências partilhadas de legitimidade intersubjetivamente fundamentadas. Um regime que, na aurora do capitalismo, podia ainda aparecer como modo restrito de relação às expectativas normativas da razão apenas em classes “ociosas” e “desterritorializadas”[6], Mas este mesmo regime foi capaz de, no capitalismo tardio, transformar-se, de maneira cada vez mais visível, em modo hegemônico de relação à norma. Há uma história do cinismo marcada pela passagem de uma economia restrita a uma economia generalizada. Esta história ainda precisa ser contada.

            De qualquer forma, quando falamos que o cinismo é um regime peculiar de relação à norma, devemos lembrar do sentido maior do que está em jogo na noção de “relação”. Foucault, ao insistir na existência de uma problemática vinculada aos modos de subjetivação, problemática necessariamente presente em todas as análise dos modos de sujeição a normas, códigos, leis e valores, abriu um campo profícuo de reflexão. Lembremos, por exemplo, de sua insistência no fato de que:

 

Dado um código de ações e para um tipo determinado de ações (que podemos definir através de seus graus de conformidade e divergência em relação a este código) há diferentes maneiras  de “conduzir-se” moralmente, diferentes maneiras para o indivíduo agente operar não apenas como agente, mas como sujeito moral desta ação[7].

 

            De fato, toda ação (e não apenas as ações que visam ser validadas no campo moral) comporta uma relação significante aos critérios normativos aos quais ela se refere, mas há várias formas de se posicionar em relação a uma regra que seguimos. Em alguns casos, alguns destes posicionamentos podem ser contrários entre si sem que isto implique em contradição em relação aos critérios tacitamente aceitos. Ou seja, a dimensão procedurial da lei não condiz com uma visão unívoca de sua dimensão semântica. Até porque, não podemos retirar a ambigüidade da dimensão semântica (principalmente em seu nível referencial) apenas através de procedimentos hermenêuticos. Como veremos, este é um fenômeno absolutamente relevante para nossa discussão a respeito do cinismo.

 

Um problema de sinceridade?

 

Levando em conta tais discussões a respeito do desconhecimento ideológico na dimensão do saber e dos problemas de consistência em relação à regulação entre ação e critérios normativos, é possível apresentar uma primeira definição operacional do cinismo; definição que irá guiar nossos primeiros passos. Pois a ausência de desconhecimento implica, entre outros, na crença na possibilidade de um certo “dizer sobre a verdade”, uma certa enunciação de valores e critérios que não exige reorientação posterior do sistema de condutas. Desta forma, o cinismo pode ser visto como uma certa enunciação da verdade; mas uma enunciação que anula a força perlocucionária que poderíamos esperar deste ato de fala. Na verdade, o desafio do cinismo consistiria em compreender atos de linguagem nos quais a enunciação da verdade anula a força perlocucionária da própria enunciação. Este é um ponto importante : o cinismo, assim como a ironia, está sempre vinculado a uma certa dimensão da enunciação da verdade ou, ainda, de valores e critérios que aspiram validade universal.  

Nós nos sentimos normalmente reconfortados com a promessa de que a verdade nos libertará, ou seja, de que a luz advinda com a enunciação da verdade será capaz de portar um acontecimento que reconfigura o campo da efetividade. No entanto, o cinismo nos coloca diante do estranho fenômeno da usura da verdade[8]; de uma verdade que não só é desprovida de força performativa, mas que também bloqueia temporariamente toda nova força performativa.  Em uma formulação feliz,  Sloterdijk nos lembra que : “há uma nudez que não desmascara mais e que não faz aparecer nenhum ‘fato bruto’ sobre o terreno no qual poderíamos nos sustentar com um realismo sereno”[9]. Ela é importante por nos lembrar que não há, no cinismo, operação alguma de mascaramento das intenções no nível da enunciação. Não se trata de um caso de insinceridade ou de hipocrisia. Ao contrário, mesmo que haja clivagens entre a literalidade do enunciado e a posição da enunciação, esta clivagem é, tal como na ironia, claramente posta diante do Outro. Assim como na ironia, no cinismo, o Outro percebe que o sujeito não está lá onde seu dito aponta.  

Mas poderíamos afirmar que, se o cinismo é o que assim aparece, então não se trata de um problema tão relevante. Pois a figura de uma enunciação da verdade que anula a força perlocucionária da própria enunciação é uma velha conhecida que tem a idade dos cretenses mentirosos. Pensemos, por exemplo, em uma antiga piada judia contada por Freud : “Em uma estação ferroviária da Galícia, dois judeus encontram-se em um trem. ‘Onde você vai?’, pergunta um. ‘A Cracóvia’, responde o outro. ‘Vejam só que mentiroso’, levanta-se o primeiro. ‘Se você diz que vai a Cracóvia, é porque você quer me fazer acreditar que vais a Lemberg. Só que sei bem que você vai realmente a Cracóvia. Então, por que você mente?”[10]. Estamos aí diante de um caso claro de enunciação da verdade que produz um efeito de mentira invertendo, com isto, o próprio valor da verdade e retirando, assim, sua força perlocucionária. Ele inverte o valor da verdade ao sustentá-la.

No entanto, todo o problema vem do fato do segundo judeu, este que diz ir a Cracóvia, não ser um enunciador legítimo. Se quisermos utilizar um conceito aristotélico maior para a retórica, diremos que seu ethos não é adequado à enunciação da verdade, já que ele é reconhecidamente um mentiroso. É por saber-se reconhecido como um mentiroso que o segundo judeu pode ser cínico e inverter o valor da enunciação da verdade. Ele sabe que o outro levará em conta a distinção entre o que é dito é a maneira disjuntiva com que o enunciador vincula-se ao dizer. Assim, ele pode mentir ao dizer a verdade, como poderia também dizer a verdade ao mentir. Neste sentido, casos como este nos lembram que a verdade não é simplesmente um problema de descrição adequada de estados de coisas, mas que é também um problema de respeito a critérios normativos de enunciação (critérios que incluem, entre outros, a adequação do ethos). Como o próprio Freud nos lembra, a respeito da sua piada : “Trata-se de verdade quando se descreve coisas tais como elas são sem preocupar-se de saber como o auditor compreenderá o que é dito?”[11]. A resposta é trivialmente negativa, já que a enunciação da verdade não é simplesmente um problema de adequação semântica ou de correção sintática, mas é fundamentalmente um problema de consistência de contextos de enunciação.

Por outro lado, poderíamos ainda tentar ler este exemplo freudiano como um caso clássico de transgressão de um critério fundamental de enunciação levantado há muito por John Austin, ou seja : “é apropriado que a pessoa que profere a promessa [ou a justificação] tenha uma determinada intenção, a saber, a intenção de cumprir com a palavra”[12]. Como se estivéssemos aqui diante de uma forma mais astuta de insinceridade

No entanto, vale a pena notar que esta noção de insinceridade como estado intencional prévio ao ato traz alguns problemas. Pois ela só é acessível através do estabelecimento de contradições performativas, ou seja, ela só aparece como efeito de um ato de fala. Como o próprio Habermas nos lembra : "Que alguém pense sinceramente o que diz é algo a que só se pode dar credibilidade pela conseqüência de suas ações, não pela indicação de razões"[13], ou pela certeza de intenções, diremos nós. Isto nos leva a colocar a questão de saber se não deveríamos simplesmente abandonar o vinculo entre estado intencional e sinceridade em prol de uma noção de sinceridade como efeito de discurso. Pois o recurso à sinceridade parte do pressuposto de uma identidade imediatamente acessível entre a intencionalidade e a forma geral do ato, como se, em última instância, a consciência pudesse ter a convicção de possuir a representação da efetividade adequada à intenção de sinceridade.

Na verdade, a noção de sinceridade como condição fundamental de produção do sentido está necessariamente vinculada àquilo que os teóricos dos atos de fala chamam de “princípio de expressibilidade[14], com sua definição de que sempre haverá um conjunto de proposições intersubjetivamente partilhadas capaz de ser a exata formulação de um determinado estado intencional. Esta sólida identidade é resultado de uma certa pressuposição. No momento em que se engaja em um ato de fala intencionalmente orientado, o sujeito sempre pode, de direito mas nem sempre de fato, partir da pressuposição prévia de saber o que quer dizer e como deve agir socialmente para fazer o que quer dizer. Em situações de performatividade, o sujeito teria assim uma representação prévia e fundamentada não apenas do conteúdo intencional de seu ato de fala, mas também  das condições de satisfação de tal conteúdo. Este último ponto é o mais complexo. Por ser a fala, antes de mais nada, um modo de comportamento governado por regras e pelo meu conhecimento sobre falar uma língua envolver, necessariamente, o domínio de um sistema de regras de ação social, seguiria daí que o sujeito que fala teria sempre, de direito e previamente, a possibilidade de saber como tal sistema de regras determina  a produção do sentido da ação em geral e dos atos de fala em particular.

No entanto, podemos lembrar que isto já demonstra como o estado intencional de sinceridade é indissociável da repetição um sistema de disposição de conduta. Partindo deste reconhecimento, podemos dar um passo a mais e ver, naquilo que chamamos de “sinceridade”, simplesmente o modo de repetição de tal sistema socialmente codificado. Sistema naturalizado na forma de “background”, o que levaria para um outro campo o sentido de proposições que vêem o background como:

 

um alicerce de capacidades mentais que, em si mesma, não constituem estados intencionais (representações), mas, não obstante, formam as precondições para o funcionamento das estados intencionais. O Background é “pré-intencional” no sentido de que, embora não seja uma forma ou formas de Intencionalidade, é, não obstante, uma precondição ou um conjunto de precondições de Intencionalidade[15].

 

É verdade que, contra a tentativa de restringir a sinceridade à repetição de sistemas socialmente codificados de significação de disposições de conduta, teríamos defesas astutas de um conceito intencional de sinceridade como a apresentada por Austin. Segundo ele, sem o recurso aos estados intencionais para a definição da significação do ato, nunca poderíamos estabelecer com segurança uma diferença entre “Estar em um certo estado” e “fingir estar em um certo estado”. Por exemplo, dois ladrões são surpreendidos tentando serrar uma grade e, para disfarçar, fingem estar serrando uma árvore. Mas para que a simulação fique mais convincente eles começam realmente a serrar uma árvore. Por que podemos dizer que, mesmo serrando a árvore, eles estão fingindo serrar uma árvore? De uma certa forma, porque a sinceridade é uma questão de estado intencional. Daí porque Austin pode dizer que: “a essência do fingimento é que meu comportamento público tenciona esconder (disguise) alguma realidade, geralmente algum comportamento real”[16]. Ou seja, reencontramos aqui novamente um conceito intencional de sinceridade.

Mas podemos também insistir em outro ponto: só sei que estou diante de um caso de insinceridade porque posso estabelecer contradições entre um comportamento público e algo que Austin chama de “comportamento real” e que nada mais é do que uma forma de comportamento socialmente pressuposta como índice de um estado intencional determinado. Ou seja, desta contradição entre conseqüências do ato e expectativas socialmente naturalizadas nasce o julgamento sobre a sinceridade. Não há aqui nenhum recurso a algo para além de expectativas de comportamento socialmente naturalizadas.

Por exemplo, se estivéssemos diante de ladrões que passam anos serrando as árvores em volta da casa sem nunca tentar novamente serrar a grade, poderíamos começar a perguntar se estamos realmente diante de um caso de fingimento, já que nossas expectativas sociais não aceitam como plausível que alguém passe anos fingindo para roubar uma simples casa. Na verdade, poderíamos perguntar se os ladrões austinianos realmente “sabem o que fazem”, até porque o fingimento poderia ser apenas uma crença que funcionaria para encobrir, para o próprio sujeito, um outro “estado intencional” (algo como: “creio que estou fingindo a espera do melhor momento para o roubo, mas estou na verdade usando o fingimento para adiar indefinidamente uma ação que não quero fazer”). Até porque, há situações em que aquilo que me aparece como meu estado intencional é tão opaco para mim quanto aquilo que me aparece como estado intencional de um outro.

Isto poderia nos levar a afirmar que a intenção de sinceridade no sentido psicológico do termo só pode ser significada se obedecer a condições externas de adequação. Trata-se de uma questão de comportar-se de certa maneira, já que o próprio estado intencional seria fundamentalmente uma disposição de comportamento. Desta forma, para fazer a partilha entre sinceridade e fingimento, deveríamos poder apelar a um experimentum crucis[17], ou seja, a uma ação não-problemática no que diz respeito ao estabelecimento de seu sentido. Mas não é certo que ações desta natureza existam em situações de julgamento de modos de aplicação de valores complexos, como veremos em seguida.

  

Modelos

 

Aqui devemos lembrar que, mesmo que alguns casos de cinismo sejam similares ao problema descrito através do exemplo freudiano, há uma classe de situações realmente determinantes que não cai como exemplo de desrespeito a critérios normativos de enunciação. E são tais exemplos que realmente nos interessam. Para que o cinismo seja um problema realmente relevante (e não apenas um problema vinculado à análise do comportamento social dos sujeitos em certas realidades em crise de legitimação), devemos mostrar a recorrência de casos de enunciação da verdade que anulam a força perlocucionária da própria enunciação sem contudo transgredir os critérios normativos de enunciação e justificação.

Neste sentido, ao invés de tentar afastar o cinismo através de alguma forma de apelo à dimensão da intencionalidade, devemos compreender o cinismo como um problema de indexação. Trata-se fundamentalmente de mostrar como valores e critérios normativos que aspiram validade universal podem indexar situações e casos concretos que pareceriam não se submeter a tais valores e critérios. Trata-se pois de problematizar os sistemas pressupostos de aplicação entre Lei normativa, valores e casos, de mostrar que a indexação entre a significação da Lei e a designação do caso não passa pelo esclarecimento semântico da Lei. Como se pudéssemos produzir uma espécie de “torção da Lei aprofundamento de suas conseqüências”[18]. Por isto, perderemos o foco da questão trazida pelo cinismo se insistirmos em compreendê-lo como um simples caso de contradição performativa. Ao contrário, o cinismo nasce da tentativa de mostrar que condições transcendentais-normativas de julgamento podem ser seguidas, mas suas designações “normais” podem ser invertidas sem contradição entre ato e julgamento.

Podemos fornecer um modelo para esta maneira de encaminhar o problema do cinismo. Podemos partir das exigências de validade de uma norma moral com expectativas universais de validade como o princípio de tolerância. Podemos também afirmar que na significação do princípio já encontramos, aparentemente, a designação de um modo de ação: o respeito ao outro em sua singularidade. Ou seja, o princípio e sua prática procedurial já portariam em si algo como uma validade semântica.

Mas, “em certas situações especiais”, para defender o princípio de tolerância, eu posso ser levado a ser intolerante com aqueles que são contra o princípio de tolerância. Em defesa da tolerância, eu posso ser levado a expulsar os intolerantes da minha comunidade. Desta forma, posso continuar sendo tolerante na dimensão dos critérios normativos mesmo sendo intolerante na dimensão da ação, isto sem contradição performativa.

Por sinal, este foi o caso da extrema direita holandesa encarnada por Pim Fortuyn, morto dias antes da eleição que o levaria ao poder neste que é o país formalmente mais tolerante do mundo. Sua própria figura era um exemplo maior do que procuramos apreender. Tratava-se de um populista de direita cuja grande parte das características pessoais e opiniões eram  politicamente corretas : era homossexual assumido, tinha boas relações com imigrantes, um senso inato para a ironia etc. No entanto, o núcleo do seu discurso era: “Os Países Baixos alcançaram um alto grau de tolerância e liberdade. Não podemos perder tudo isto deixando que árabes intolerantes venham para cá. Em nome da tolerância, devemos então ser intolerantes contra os intolerantes. Nós já fomos muito tolerantes com a intolerância”. Exemplo didático deste cinismo que problematiza ao extremo a indexação entre significação da Lei e designação do caso.

Seria reconfortante imaginar que tais formas de inversão seriam obra apenas de esquizofrêncios sociais que se transvestem de radicais de extrema direta. No entanto, isto é longe de ser o caso. Poderia continuar arrolando exemplos estruturalmente semelhantes como declarações do primeiro-ministro trabalhista Tony Blair a respeito do “dever de integração” que cai sobre os ombros de todo muçulmano que resolveu emigrar à Grã-Bretanha, discussão sobre a integração motivada pela eterna querela a respeito do porte de véus em lugares públicos: “Nossa tolerância”, dirá Blair, “é parte do que faz da Grã-Bretanha, Grã-Bretanha. Conforme-se a isto ou não venha para cá. Nós não queremos os “hate-mongers” independente de sua raça, religião ou credo”[19]. “Conforme-se a isto ou não venha para cá” é, de fato e como todos podem ver, um exemplo muito ilustrativo de tolerância.

Que os nossos dois exemplos sejam estruturalmente semelhantes por dizerem respeito à tolerância intolerante das nossas sociedades multiculturais em relação às massas de imigrantes, eis algo que não é um acaso. Lembremos inicialmente como há algo extremamente instrutivo a respeito destes exemplos. Conhecemos várias análises sobre a pretensa especificidade dos modos de racionalização de países pariféricos em relação aos centros hegemônicos do capitalismo mundial. Nestes países e regiões, a regra teria sido a importação de valores modernizadores no interior de realidades sociais refratárias e arcaicas. No entanto, ao invés de um “choque de modernização”, produziu-se o mais das vezes um desenvolvimento desigual e combinado no interior do qual as idéias parecem estar sempre em descompasso em relação a seus destinatários e à efetividade. Descompasso cuja estetização perfeita seria a ironização que denuncia o formalismo de um sistema de idéias que acaba por se adaptar a uma realidade social que lhe seria naturalmente contrária.

Todos conhecemos este instrutivo esquema próprio a uma reflexão sobre o caráter “fora de lugar” das idéias em sociedades periféricas. Um caráter que também pode dar conta de situações coloniais nas quais valores modernizadores metropolitanos são mobilizados para legitimar ações que normalmente lhe seriam contrárias. Situações que acabam por consolidar estruturas sociais duais que indicam a coexistência e a determinação recíproca do Centro e da Periferia no mesmo espaço social. Tal determinação recíproca serviu para indicar como a racionalização de países periféricos teria produzido uma espécie de estrutural normativa dual na qual a lei enunciada é sempre acompanhada de uma espécie de duplo subentendido que regula os processos efetivos de interação no campo social. Como se esta situação periférica desvelasse a verdade do formalismo de uma civilização liberal capitalista capaz de forjar valores capazes produzidos para serem conjugados apenas através de estruturas normativas duais.

 Mas o que significa encontrarmos tais estruturas duais regulando os processos de interação social em países ditos “centrais”, como se agora a lógica das relações coloniais das antigas metrópoles aparecesse como o modo hegemônico de funcionamento social das próprias antigas metrópoles? Seria um caso de esvaziamento gradativo da substância normativa da ordem constitucional ou estaríamos diante de algo mais essencial, algo que diz respeito à própria dinâmica dos modos de racionalização e modernização no capitalismo avançado?

“Algo mais essencial” não está aqui por acaso. Podemos nos perguntar se este fenômeno que encontramos hoje de maneira cada vez mais hegemônica não seria o destino inelutável de um certo modo de compreender processos de racionalização como processos de normatização e de constituição de quadros normativos tacitamente partilhados. Talvez estejamos tão acostumados a compreender racionalidade como normatividade que nos espantamos com situações nas quais o acordo intersubjetivo em relação a critérios e valores não nos leve a um acordo em relação aos modos de aplicação de tais critérios e valores.

É verdade que, a princípio, afirmações desta natureza parecem absolutamente  inconsistentes. Pois é sempre possível contra-argumentar dizendo que a simples definição de uma enunciação como ‘cínica’ já pressupõe a identificação de contradições entre as condições transcendentais-normativas de julgamento de um enunciado (ou “condições ideais de fala intersubjetivamente partilhadas”, se quisermos falar como Habermas) e seu modos regulares de aplicação. Dizer que um ato de fala é cínico já implica em reconhecimento da contradição entre fato e Lei. Nossa própria definição do cinismo como indexação de valores e critérios normativos a casos que invertem a significação normalmente pressuposta parece falha. Pois falar em “significação normalmente pressuposta” implica necessariamente em aceitar a existência de coordenadas gerais e seguras de indexação entre enunciados, intenções, estrutura da ação e estados de coisas. 

Esta aceitação da existência de coordenadas gerais e seguras de indexação é normalmente defendida relembrando discussões a respeito da centralidade de noções similares ou convergentes com o conceito de background na compreensão dos processos de produção do sentido. Ou seja, podemos lembrar da pressuposição, em todo ato de fala, de um "sistema de expectativas" fundamentado na existência de um saber prático cultural e de um conjunto de pressupostos que define, de modo pré-intencional, o contexto de significação.

No entanto, gostaria de insistir que isto não pode servir como elemento para impedir a compreensão dos processos de interversões de indexações característico do cinismo como exposição de problemas estruturais em nossos modos de racionalização da dimensão prática. Primeiro, faz-se necessário lembrar que o background fundamenta princípios de conversação cooperativa em operação nos usos ordinários da linguagem. De fato, ele pode fornecer coordenadas gerais e seguras de indexação entre enunciados, intenções, estrutura da ação e estados de coisas. Mas tais coordenadas funcionam de maneira segura apenas nos limites dos usos ordinários da linguagem e é um erro maior acreditar que a definição do modo de aplicação de valores e critérios de racionalização siga a lógica presente no uso ordinário da linguagem. Tanto é assim que, volto a este ponto, podemos estar de acordo a respeito de critérios e valores intersubjetivamente partilhados sem necessariamente estar de acordo a respeito de seus modos de aplicação e dos casos corretos que por eles podem ser indexados. Ou seja, estar de acordo a respeito de critérios e valores não implica em estar de acordo a respeito das estruturas de aplicação entre normas de aspiração universalizante e casos concretos. Podemos muito bem aceitar que as ordenações da sociedade: “não são constituídas independentemente de toda validez, como as ordenações da natureza, em face das quais só adotamos uma atitude objetivante”[20]. Mas não se segue daí que a existência de atores e ações capazes de seguir ou satisfazer as normas possa garantir seus modos de indexação.

Na verdade, nada nos permite pressupor a existência de algo parecido a um background capaz de orientar nossos julgamentos em situações complexas que envolvem significação de valores e modos de aplicação de critérios normativos de aspiração universalizante. Situações deste tipo não podem ser desproblematizadas através do recurso ao esclarecimento de contextos já que não estamos de acordo sequer a respeito da extensão e da determinação de tais contextos. Sempre haverá os que contra-argumentarão dizendo que valores e critérios normativos não têm apenas realidade sintática, mas realidade semântica, sua significação aparece como largamente não problemática. Mas, novamente poderíamos insistir que o fato do sentido de um conjunto de valores ser intersubjetivamente partilhado não implica em uma partilha de significado, ou seja, de relação à referência, de relação ao caso. As distinções clássicas entre sentido (Sinn) e significado (Bedeutung) podem ser úteis neste contexto. Saber o sentido não implica em necessariamente saber a referência, quais referências são adequadas e quais não o são.

Poderíamos ainda contra-argumentar afirmando que problemas de indexação entre critérios, valores e fatos podem ser normalmente resolvidos a partir de procedimentos similares à noção jurídica de “criar jurisprudência”, ou seja, decisões anteriores aparecem como campo de constituição de um núcleo de experiências que tendem a direcionar decisões posteriores, criando assim um processo, no sentido forte do termo[21]. Esta tendência não implica em ignorar toda possibilidade posterior de redirecionar, através do “uso público da razão”, tal processo de determinação dos modos de indexação de critérios, valores e fatos.

Contra este modo de tentar resolver a questão, devemos mostrar que o campo pressuposto por decisões passadas não tem estruturalmente a força de retirar a indeterminação de decisões futuras porque as indeterminações não foram resolvidas sequer nas decisões passadas. Para que tais indeterminações estivessem ausentes seria necessário aceitar que decisões passadas, além de terem sido produzidas em contexto de partilha intersubjetiva, isto no sentido de terem sido vistas como modos bem sucedidos de aplicação de regras, construíram procedimentos e critérios não-problemáticos de inferência e universalização, a não ser que estejamos dispostos a “naturalizar” tais critérios, como se tivéssemos uma gramática natural dos modos de relação. Mas nada disto é certo. E talvez nada disto seja certo porque tomar uma decisão reconhecidamente legítima é um processo ligado a um princípio de soberania, e não a um princípio de adequação normativa. Veremos mais a frente o que esta distinção pode significar.

            Neste sentido, podemos dizer que o cinismo é um modo de exposição de certas questões centrais na compreensão da racionalidade como normatividade. Digamos que, a partir do momento em que se pressupõe uma transparência entre significação e práticas proceduriais de aplicação de critérios e valores, o cinismo transforma-se em um problema insolúvel. Pois tudo se passa como se o ato cínico afirmasse que tal transparência existe, mas ela foi mal-compreendida, ou foi compreendida de maneira muito “rápida”, muito “ingênua”. Faz-se necessário desdobrar as mediações, desdobrar as inferências. A Lei é clara, diz o cínico, e se seguirmos seu espírito, veremos que ela pode justificar casos que lhe pareciam opostos. Como dizia Sade, é possível fundar até mesmo um estado de libertinos a partir de valores universais republicanos intersubjetivamente partilhados.

Poderíamos aqui concordar com Slavoj Zizek e afirmar que tudo isto só demonstra como a fórmula cínica “Eles sabem o que fazem, e continuam a fazê-lo” ignora que o desconhecimento ideológico não está na dimensão do ‘saber’ da consciência, mas na estruturação das condições de significação da praxis, ou seja, na dimensão do ‘fazer’[22]. Pois, como dizia Althusser, a ideologia não é uma questão de falsa consciência, mas um questão de repetição de rituais materiais.

No entanto, devemos completar tal raciocínio com um elemento fundamental :  esta fantasia ideológica que estrutura as configurações da ação só pode ganhar consistência se não entrar em contradição performativa com os critérios normativos de julgamento intersubjetivamente partilhados e presentes no saber da consciência. Assim, se é verdade que : “o cínico vive da discordância entre os princípios proclamados e a prática – toda a sua sabedoria consiste em legitimar a distância entre eles”[23], então devemos levar às últimas consequências a idéia de que o cinismo é uma contradição posta que é, ao mesmo tempo contradição resolvida, ou antes, aproveitando a formulação de Zizek, uma estranha ‘discordância legitimada’. Este é o ponto realmente central : compreender como é possível ao cinismo sustentar-se como discordância legitimada.          

 

Kant com Kojève e o Imperador Juliano

 

Antes de avançarmos neste ponto, vale a pena retornar ao problema da ironização, ou seja, esta compreensão de que estamos diante de uma realidade que, por não se adequar a seus próprios critérios de justificação, não pode ser levada a sério, devendo a todo momento ser invertido e pervertida. Podemos aproximar tal problemática da definição do cinismo como um problema de indexação entre Lei normativa, valores e caso concreto. Tal aproximação serve para lembrar que seria incorreto dizer simplesmente que o cinismo aparece como problema a partir do momento em que realidades sociais não respondem mais a expectativas normativas que aspiram validade universal. Como se o cinismo fosse o simples reconhecimento do fracasso de processos de racionalização da realidade social. Ao contrário, a ironização própria ao cinismo vem da compreensão de que realidades e ações que pareciam não se conformar a expectativas normativas podem, ao contrário, aparecer como realização última de tais expectativas. Neste sentido, o cinismo, a sua maneira, realiza ao inverter nossos modos de indexação entre critérios normativos e consequências da ação. Ironização significa não apenas ruptura entre expectativas de validade e determinações fenomenais, mas também reconstrução de tal relação. 

Alexandre Kojève nos fornece um exemplo precioso a respeito desta noção de cinismo como ironização de condutas e inversão de modos de indexação. Trata-se do seu comentário sobre a arte de escrever do Imperador Juliano[24], comentário que, a sua maneira funciona como mais um capítulo de uma polêmica maior envolvendo Kojève e Leo Strauss. Em Perseguição e a arte de escrever, Leo Strauss sublinhava como não devíamos tomar ao pé da letra tudo o que tinham escrito os grandes autores do passado, nem acreditar que eles tinham explicitado em seus escritos tudo o que queriam dizer. A arte antiga redescoberta por Leo Srauss consistia em escrever o contrário do que se pensa, tal como na ironia. Tal estratégia obedecia a uma dupla função : escapar à censura e, sobretudo, formar uma elite.

Kojève vê o exemplo perfeito desta arte de escrever nos textos do Imperador Juliano. Juliano é um imperador que se encontra diante do seguinte paradoxo : ateu convicto e esclarecido, ele, enquanto imperador, deve ser chefe da religião pagã de Estado. Conservar esta religião popular é ainda, segundo ele, modo de conservar a unidade do Estado contra a sedição cristã. A solução será mostrar, a uma elite capaz de ‘bem entender’, que ele não escreve tudo o que pensa nem pensa tudo o que escreve. Pois, como dirá o próprio Juliano : “Não devemos tudo dizer; e mesmo sobre aquilo que podemos dizer, faz-se necessário esconder algumas coisas para a grande massa”[25]. Seus escritos sobre a religião serão assim paródias que, devido ao caráter contraditório de suas construções e mitos, denunciam, para uma elite esclarecida, que o próprio poder critica ironicamente as idéias que divulga. Neste sentido, Juliano não oculta a verdade, ao contrário, ele demonstra que a maneira correta de enunciá-la é através da ironização absoluta do que então fundamenta as esferas sociais de valores, ou seja, a religião.

Há algo de profundamente astuto neste exemplo e que certamente não passou desapercebido a Kojève. Pois, de uma certa forma, poderíamos compreender o aparente  paradoxo próprio ao Imperador Juliano como uma versão inesperada da distinção entre uso público e uso privado da razão que marca Was ist Aufklãrung?, de Kant. Conhecemos todos o exemplo clássico de Kant neste pequeno texto. Diante dos membros de sua paróquia, o religioso deve se contentar com um uso privado da razão que o obriga a obedecer, mesmo sem acreditar, as injunções e normas próprias ao papel que ele desempenha como membro de instituição social. Aqui, a razão deve submeter-se à aplicação de regras e a certos fins particulares. Mas diante da “totalidade do público do mundo leitor”, diante deste público esclarecido para o qual posso aparecer como cientista (Gelehrte), como membro da humanidade racional, tenho todo o direito de fazer uso público da razão com todo o seu potencial crítico. Um uso que, no seu horizonte, poderá produzir o consenso intersubjetivo necessário para chegar à posterior modificação das normas que guiam o funcionamento social das instituições. Maneira de garantir o poder de racionalização da reflexão sem colocar em risco o fundamento institucional dos processos de interação social. Ou poderíamos dizer, juntamente com Foucault: maneira de passar ao largo da relação complexa entre crescimento da autonomia e intensificação de relações de poder[26].

E o que faz Juliano? Mesmo sem acreditar, ele desempenha o papel que lhe cabe de chefe da religião de estado. Neste contexto, ele obedece à injunção iluminista de contentar-se com um uso privado da razão. O que não impede de se endereçar à “totalidade do público do mundo leitor” através de seus escritos, fazendo um uso público da razão e procurando, com isto, criar um consenso intersubjetivo sobre a precariedade, sobre o déficit de legitimidade das injunções e normas obrigatórias para o funcionamento das instituições sociais. O resultado aqui é um regime peculiar de Sapere aude!

Não é difícil perceber que a peculiaridade de tal exigência de saber vem do fato do trabalho de esclarecimento pressuposto pela capacidade de ironizar os mitos religiosos não produzir, como poderíamos esperar, a queda do poder da religião devido ao esforço de racionalização. Ao contrário, a posição dos mitos religiosos como aparência perpetua a necessidade funcional da partilha destes mitos no interior da vida social. Notemos que, desta forma, realidades e ações que pareciam não se conformar a expectativas normativas de racionalidade esclarecida podem, ao contrário, aparecer como realização última de tais expectativas.

Neste sentido, chegaríamos a uma situação tipicamente cínica se pensássemos, por exemplo, em um momento histórico no qual a elite esclarecida seria do tamanho exato da população do Império. Ou seja, momento que já disseminou o esclarecimento. Nesta situação, a paródia do poder nunca terminaria, primeiro, porque haveria sempre um sujeito-suposto-crer, alguém que sempre crê no meu lugar legitimando a necessidade da ideologia; segundo, porque os conteúdos ideológicos seriam ironizados e postos como aparência que não seriam nada mais do que aparência, e por isto, já marcados pela crítica. Assim, todos os sujeitos seriam esclarecidos mas agiriam como se não soubessem, todos seriam ateus mas continuariam objetivamente a dobrar os joelhos mesmo que tal ato não fosse motivado por nenhuma crença nos mitos socialmente partilhados. Ou antes, continuariam a dobrar os joelhos exatamente devido ao ato não exigir mais crença alguma. Neste sentido, chegaríamos facilmente a uma das definições clássicas do cinismo: falsa consciência esclarecida ou ainda ideologia reflexiva. Notemos ainda que não podemos falar aqui em transgressão de critérios normativos de enunciação, e muito menos em contradição performativa. Juliano não diz outra coisa do que faz; ao contrário, ele justifica de maneira consistente o que faz, e pode assim continuar a fazê-lo sem culpa.

 

Quando romper a norma é seguir a norma

 

Uma discussão rica em conseqüências para tais problemas vinculados às estruturas da racionalidade cínica foi levada a cabo por Giorgio Agamben a ocasião do problema do estado de exceção. Se definirmos o cinismo como uma enunciação da verdade que anula a força perlocucionária da própria enunciação ou (o que é um caso simétrico) como uma indexação de valores e critérios normativos a casos que invertem a significação normalmente pressuposta, então já podemos compreender como o problema da exceção é um elemento maior no interior de uma reflexão sobre a razão cínica. Pois a discussão de Agamben a respeito do estado de exceção nos leva a uma lógica na qual o ordenamento jurídico legaliza sua própria suspensão.

Esta lógica quer ser vista como constitutiva do quadro mesmo de fundamentação do ordenamento jurídico na modernidade ocidental. Criada, em 1791, pela tradição democrático-revolucionária da Assembléia Constituinte francesa sob o nome de "estado de sítio", a figura de um quadro legal para a suspensão da ordem jurídica em "casos extremos" aplicava-se inicialmente apenas às praças-fortes e portos militares. Mas, já em 1811, com Napoleão, o estado de sítio podia ser declarado pelo imperador a despeito da situação efetiva de uma cidade estar sitiada ou ameaçada militarmente. A partir de então, vemos um progressivo desenvolvimento de dispositivos jurídicos semelhantes na Alemanha, Suíça, Itália, Reino Unido e EUA, que serão aplicados, durante os séculos 19 e 20, em situações variadas de emergência política ou econômica. O caso mais recente desta lógica de generalização do estado de exceção foi obra do governo francês que, no ano passado, como resposta às manifestações de descontentamento social nas periferias das grandes cidades, colocou o país sob situação de emergência.

            Giorgio Agamben compreende tal desenvolvimento como a manifestação de um processo de generalização dos dispositivos governamentais de exceção. O que nos explicaria porque: “a declaração do estado de exceção é progressivamente substituída por uma generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo”[27]. Processo este que teria sido o motor invisível das democracias ocidentais. Daí porque ele insiste que a exceção não é uma lógica exclusiva de estados totalitários, mas criação da tradição democrático-revolucionária ocidental.

            No entanto, se é fato que estaríamos aí diante de um paradigma constitutivo da ordem jurídica, então devemos ver, no problema colocado pela exceção, a exposição de uma estrutura “sintomática” própria a modos privilegiados de racionalização das esferas sociais de valores na modernidade. Pois a compreensão de que a ordem jurídica pode incluir sua própria exceção sem, no entanto, deixar de estar em vigor nos remete, necessariamente, a modos de racionalização através da posição de estruturas normativas capazes de indexar casos que suspendem o próprio funcionamento de tais estruturas, sem que isto seja uma contradição. A exceção indica que o fundamento da Lei é aquilo que pode manifestar-se de maneira negativa, transgredindo a própria Lei, sem fazer com que ela deixe de estar em vigor. Assim: “um dos paradoxos do estado de exceção quer que, nele, seja impossível distinguir a transgressão da lei e a sua execução”[28]. Pois se a norma pode ser suspensa sem, no entanto, deixar de estar em vigor, é porque seu regime de aplicabilidade pode englobar sua própria suspensão, sua significação não reconhece um campo seguro de indicações. Como se a dinâmica entre violência instituinte e violência instituída fosse interna ao próprio funcionamento normal da Lei.

No fundo, uma das referências silenciosas maiores para tal reflexão de Agamben é Georges Bataille. Grosso modo, Bataille procurava pensar uma certa solidariedade entre transgressão e interdito enunciado pela Lei que encontramos em estruturas sociais marcadas por uma experiência do sagrado e do erotismo estranha para o mundo “desencantado” da modernidade. Tais estruturas sociais fundam-se em uma normatividade que aceita e regula sua própria suspensão temporária: “Não há interdito que não possa ser transgredido. Muitas vezes a transgressão é admitida, muitas vezes ela chega mesmo a ser prescrita”[29]. Ou seja, a transgressão é modo de funcionamento do vínculo social, isto na medida em que a transgressão não é um retorno à natureza, ela é uma forma da norma internalizar momentos de anomia, sem com isto destruir-se. Assim, a redução da vida a um fluxo contínuo de formas em momentos de anomia não parece se opor ao ordenamento jurídico. Daí porque Bataille pode afirmar que: “a transgressão suspende o interdito sem suprimí-lo”. O esclarecido imperador Juliano não diria outra coisa.

Como foi afirmado, costumamos aceitar que a meta da Razão consistiria em fornecer condições para a racionalização das esferas de valores através do estabelecimento de estruturas normativas capazes de determinar condições ideais-reguladoras e, no horizonte, realizar a promessa de um ordenamento jurídico justo. A compreensão de que o estado de exceção é cada vez mais a regra do funcionamento do poder legal é apenas uma das figuras da falência deste modo de compreender racionalização idealmente como constituição de normatividades. Falência cujo nome correto é cinismo. O mesmo cinismo que anima afirmações paradigmáticas e cada vez mais usuais como: “Nenhum sacrifício pela nossa democracia é demasiado grande, menos ainda o sacrifício temporário da própria democracia”[30]. Não me parece necessário arrolar aqui uma seqüência interminável de exemplos que parecem realizar tal lógica.

Gostaria apenas de insistir que não se trata aqui de um problema de aplicação entre norma e caso que poderia ser resolvido através do esclarecimento progressivo dos critérios que orientam o exame de validade da norma. Se a norma pode ser suspensa sem, no entanto, deixar de estar em vigor, é porque seu regime de aplicabilidade pode englobar sua própria suspensão, sua significação não reconhece um campo seguro de designações. Daí porque podemos seguir Agamben e lembrar que; “o conceito de aplicabilidade é certamente uma das categorias mais problemáticas da teoria jurídica” já que “A relação entre norma e realidade implica a suspensão da norma, assim como, na ontologia, a relação entre linguagem e mundo implica a suspensão da denotação sob a forma de uma langue[31].

De fato, a relação entre o geral da norma e o particular do caso não pode ser pensado como uma subsunção lógica. No entanto, se passarmos ao domínio da práxis, veremos que esta relação, por sua vez, não pode apelar a sistemas partilhados e não-problemáticos de expectativas de indexação entre estados de coisas, intenções e critérios normativos. Como havia dito, nada nos permite pressupor a existência de um background capaz de orientar nossos julgamentos em situações complexas que envolvem significação de valores e modos de aplicação de critérios normativos de aspiração universalizante. Pode parecer com isto que entramos em uma aporia incapaz de definir como podemos afinal nos orientar racionalmente no agir. No entanto, apenas chegamos à conclusão de existir uma problematização para a qual convergem crítica às dinâmicas de racionalização pensadas a partir de exigências de legitimidade dependentes da posição de estruturas normativas e teoria da ideologia não mais dependente de noções como reificação e falsa consciência. Esta problematização organiza-se a partir da temática do cinismo. Pensá-la em toda sua extensão é uma tarefa urgente.

 



[1] PRADO JR., Bento; Alguns ensaios, São Paulo, Paz e Terra, p. 210.

[2] LUKÁCS, História e consciência de classe

[3] SLOTERDIJK, Critique de la raison cynique, Paris, Christian Bourgois,  1987, p. 28

[4] ZIZEK, Slavoj ; Fétichisme et subjectivation interpassive in Actuel Marx, n. 34, 2003, p. 100

[5] Ver ADORNO, Beitrage zu Ideologielehre in Soziologische Schriften I, Frankfurt, Suhrkamp, 1999

[6] Ver, por exemplo, ARANTES, Paradoxo do intelectual in: Ressentimento da dialética, São Paulo, Paz e Terra, 1996

[7] FOUCAULT, Histoire de la sexualité II, Paris, Gallimard, 2000, p. 37

[8] Tomo emprestada esta expressão de Bruno Hass

[9] SLOTERDIJK, idem, p. 30

[10] FREUD, Der Witz und seine beziehung zum Unbewustssein, Frankfurt, Fischer, 1998, p. 127

[11] FREUD, idem, p. 128

[12] AUSTIN, Quando dizer é fazer, Artes Médicas, Porto alegre, 1983, p. 38

[13] HABERMAS, Consciência moral e agir comunicativo, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1989, p. 79

[14] Por « princípio de expressibilidade »  entende-se que : « para qualquer sentido X e qualquer falante S, não importa o que S queira dizer (intenções a expor, desejos a comunicação em um sentença, etc.) com X, é possível haver alguma expressão E de maneira que E seja a exata expressão ou formulação de X. Simbolicamente : (S) (X) (S significa X ®P ($ E) (E é a expressão exata de X)) » (SEARLE, Speech acts, Cambridge University Press,  1969, p. 20)

 

[15] SEARLE, Intencionalidade, Martins Fontes, São Paulo, 2002, p. 198

[16] AUSTIN, Philosophical papers, Oxford University Press, 1961, pp. 210-211

[17] Cf. RYLE, The concept of mind, Penguin Books, Londres, 2000, p. 166

[18] Cf. DELEUZE, Présentation de Sacher-Masoch, Minuit, Paris, 1969, p. 77

[19] THE GUARDIAN, 9 de dezembro de 2006.

[20] HABERMAS, idem, p. 81

[21] Como se valesse aqui o que Robert Brandom falou a respeito do modo de funcionamento da normatividade no interior da filosofia hegeliana: “A autoridade das aplicações passadas, que instituíram a norma conceitual, é administrada em seu nome por aplicações futuras, que incluem, por sua vez, apreciações sobre tais aplicações passadas” (BRANDOM, Tales of the mighty dead, Harvard University Press, 2002, p. 230).

[22] O que o próprio Marx já sabia claramente ao afirmar : “É verdade, a descoberta tardia pela ciência de que os produtos do trabalho, na medida em que são valores, apenas exprimem sob forma de coisas um trabalho humano dispensado na produção, é uma descoberta que fez data na história do desenvolvimento da humanidade, mas ela não dissipou em nada a aparência de objeto que tem as características sociais do trabalho”(MARX, O capital, p. 85) 

[23] ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1992, p. 60

[24] KOJÈVE, L’empereur Julien et son art d’écrire, Fourbis, Paris, 2000

[25] JULIANO, Discurso contra Heráclios, 239 ab apud Kojève, idem,

[26] Ver FOUCAULT, What is enlightment? In; Dits et écrits II, Gallimard, Paris, 1595

[27] AGAMBEN, Estado de exceção, Boitempo, São Paulo, 2005, pp. 27-28

[28] AGAMBEN, Homo sacer, Editora da UFMG, Belo Horizonte, 2002, p. 65

[29] BATAILLE, L´érotisme, Minuit, Paris, 1960, p. 71

[30] ROSSITER, Constitutional Dictatorship. Crisis Government in the Modern Democracies, p. 318 apud AGAMBEN, Estado de exceção, p. 22

[31] AGAMBEN, idem,, p. 93. Neste sentido, nos parece que o problema do estado de exceção é um contraponto a idéias como: “A história dos direitos fundamentais nos Estados constitucionais modernos dá uma quantidade de exemplos do fato que as aplicações de princípios, desde que sejam reconhecidos, de modo nenhum oscilam de situação para situação, mas seguem, si, um curso orientado. É o próprio conteúdo universal dessas normas que traz à consciência dos concernidos, no espelho de faixas de interesses cambiantes, a parcialidade e a seletividade das aplicações”. (HABERMAS, idem, p. 128).