Espetáculo e imagem de si

 

 

A desqualificação moderna da imagem

 

“Uma imagem sempre bloqueia a verdade”. Esta afirmação do psicanalista Jacques Lacan resume uma longa tradição de desqualificação da imagem que acompanhou alguns momentos fundamentais da modernidade desde seu início. Há uma tendência própria à modernidade em compreender o pensar por imagens como uma forma degradada de conhecimento, forma própria ao erro, à ilusão e, em casos extremos, à loucura.

Lembremos inicialmente que esta desqualificação não atinge apenas a potência cognitiva das imagens. Principalmente a partir do século XIX, a imagem será vista como a peça fundamental para a constituição de situações de alienação nas quais o potencial reflexivo ficaria bloqueado. Assim, por exemplo, no interior das relações de interação social, as massas alienadas teriam por característica maior deixar-se guiar por imagens. Psicólogos sociais do final do século XIX como Gabriel Tarde e Gustave Le Bon são unânimes em afirmar algo que ainda dizemos quando procuramos desqualificar o comportamento social das massas: elas pensam por imagens, fazendo com isto associações primárias e infantis. Algo deste raciocínio foi sintetizado pelo psicanalista Sigmund Freud ao afirmar: “A massa pensa por imagens que se invocam  por associação, tal como acontece no homem isolado quando este dá livre curso a sua imaginação”.

Nesta afirmação vemos como o pensar por imagens aparece como pensar que segue a lógica associativa própria à imaginação com suas regras de contiguidade e semelhança. A força insidiosa de tal lógica aproximaria, ao menos segundo o pensamento conservador da época, a massa do pensamento arcaico dos “selvagens” e do pensamento “pré-lógico” infantil: “Os raciocínios inferiores das massas são, como os raciocínios elevados, baseados em associações”, dirá Le Bon em Psicologia das massas, “mas as idéias associadas pelas massas têm, entre elas, apenas ligações aparentes de semelhança ou de sucessão. Elas encadeiam-se à maneira das idéias de um Esquimó que, sabendo por experiência que o gelo, corpo transparente, dissolve na boca, conclui que o vidro, corpo igualmente transparente, deve dissolver na boca também; ou do selvagem que acredita adquirir a bravura de um inimigo corajoso ao comer seu coração, ou do operário que, explorado pelo patrão, conclui que todos os patrões são exploradores”.

Aqui, encontramos uma temática central para compreender o que está em jogo nesta tendência de desqualificação da imagem. Em As palavras e as coisas, Michel Foucault insistia que aquilo que compreendemos por modernidade foi indissociável da crítica à pretensa potencia cognitiva das associações por semelhança, analogia e outros dispositivos miméticos. Para os modernos, o verdadeiro conhecimento não se deixa guiar pela procura em estabelecer semelhanças entre coisas visualmente ou fisicamente próximas. Eles não acreditam que ver, no tronco e nos membros do ser humano, algo como o tronco e os galhos das árvores seja mais do que uma metáfora poética. Até porque, o conhecimento seria tributário de uma força da abstração que me permite ir para além do visível e encontrar as relações estruturais entre coisas que me aparecem como dessemelhantes. As distinções clássicas entre imaginação e entendimento, ou seja, entre o conhecimento analógico da imaginação que estabelece relações indevidas, e o conhecimento seguro do entendimento com sua capacidade de abstração e generalização devem ser compreendidas a partir deste descrédito à imagem. Desta forma, a partir de então, como dirá Foucault: “a semelhança entra em uma época que é para ela esta da desrazão e da imaginação". Desrazão porque o louco será exatamente aquele que se alienou em um modo de conhecimento onde a lógica analógica das imagens é a lei, como vemos no caso de Dom Quixote. Ainda hoje, correntes psicanalíticas tendem a compreender a psicose, em especial a psicose paranóica, como uma alienação profunda a um pensar preso às amarras das relações imaginárias.

 

A alienação na imagem de si

 

Mas tendo sido a imagem enviada para o campo pantanoso do erro, da ilusão e da loucura, o que podemos esperar das discussões a respeito da “imagem de si”? Como não poderia deixar de ser, há também uma longa tradição moderna de desqualificação da imagem de si, de sua denúncia como uma máscara alienante não apenas para os outros, mas principalmente para si mesmo.

A temática do Eu como máscara já está presente nos escritos dos moralistas franceses do século XVII, como La Rochefoucauld, La Bruyère e Pascal. Temática certamente impulsionada pela consciência das obrigações de estilização de si nas relações cortesãs na monarquia francesa. No entanto, esta problematização da imagem de si conheceu, grosso modo, dois movimentos relativamente divergentes que continuam ainda presentes no debate intelectual do começo do século XXI. Se um destes movimentos nos levou à denúncia do Eu e de sua imagem como fonte de ilusões, uma denúncia que ganhou força suplementar no século XX através das temáticas psicanalíticas relativas ao narcisismo e ao desenvolvimento do capitalismo tardio como sociedade do espetáculo, o outro seguiu um rumo substancialmente diferente.

Sobre a primeira perspectiva, lembremos, por exemplo, de algumas idéias do psicanalista Jacques Lacan. Uma das bases do pensamento lacaniano consiste em descrever o longo processo através do qual o Eu se forma identificando-se com a imagem de um outro posto na condição de tipo-ideal. Nos primeiros meses de vida de uma criança, não há nada parecido como um Eu, com suas funções de individualização e de síntese da experiência. A formação do Eu só se daria por identificações: processos através dos quais o bebê introjeta uma imagem que vem de fora e que é oferecida por um Outro. Assim, para orientar-se no pensar e no agir, para aprender a desejar, o bebê inicialmente precisa raciocinar por analogia, imitar um outro na posição de tipo ideal, servindo-se dele como quem se serve de um espelho. Tais operações de imitação não são importantes apenas para a orientação das funções cognitivas, mas têm valor fundamental na constituição e no desenvolvimento subseqüente do Eu em outros momentos da vida madura. O que levava Lacan a afirmar que “nada separa o eu de suas formas ideais” absorvidas no seio da vida social. Desta forma, a imagem de si acaba aparecendo como o dispositivo privilegiado de alienação de si, já que me faz tomar por semelhante a mim aquilo que é próprio ao outro. O que nos lembra que não há nada de próprio na imagem do si. Experiências de estranhamento diante de imagens do corpo próprio em fotografias e espelhos seriam manifestações fenomenológicas exemplares desta natureza alienante da imagem de si. Fantasmas de despedaçamento do corpo, tão comum em crianças com menos de 5 anos, nos fornecem outro exemplo da precariedade do enraizamento da imagem corporal.

Nestas idéias, não é difícil encontrar algumas temáticas clássicas do caráter da imagem como fonte de erro, ilusão e loucura que perpassa toda a modernidade filosófica. No entanto, talvez seja mais interessante lembrar aqui como esta teoria do caráter alienante da imagem de si ganha relevância suplementar se aceitarmos um certo diagnóstico social que insiste em ver nossas sociedades atuais de consumo como “sociedades do espetáculo”.

O conceito de sociedade do espetáculo foi desenvolvido pelo teórico francês Guy Debord nos anos sessenta e visava dar conta da dinâmica de funcionamento de sociedades nas quais a lógica midiática da representação e da posição integral da experiência em imagens era cada vez mais hegemônica, colonizando outras esferas sociais como a família, a política, a escola etc. Desta forma, quando Debord afirmava ser o espetáculo: “uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” pensando, principalmente, na maneira com que os meios de comunicação de massa forneciam padrões imaginários de identificação e conduta, ele acabava por fornecer um quadro sócio-econômico para esta idéia psicanalítica de que socializar era, necessariamente, colocar-se como imagem.

Se tal articulação entre psicanálise e tradição marxista fornece, ainda hoje, uma atualidade para esta longa tradição moderna de desqualificação da imagem, não devemos esquecer que a segunda metade do século XX confrontou-se com uma tendência a reler por outro viés a temática da imagem de si como máscara. Grosso modo, filósofos como Gilles Deleuze e Jean-François Lyotard se inspiraram de alguns motivos nietzscheanos de crítica ao caráter unificador do Eu a fim de afirmar que nossa sociedade fornecia enfim as condições para transformar a existência em uma espécie de jogo infinito de máscaras que, ao invés de alienar os sujeitos, o liberariam das ilusões de uma essencialidade e de uma naturalidade que seria dissimulada pela imagem de si. Como se a afirmação de que a imagem de si nada mais é do que uma aparência posta como simples aparência nos permitisse nos livrar do peso do natural, abrindo com isto o espaço de deslizamento incessante por uma plasticidade infinita de personas.

Esta afirmação da multiplicidade aparece ainda hoje como uma certa ideologia utópica da pós-modernidade e do estágio atual do capitalismo de consumo. Por exemplo, basta voltarmos os olhos para a retórica do consumo e da indústria cultural para vermos como elas passaram por mutações profundas que afetaram o regime de disponibilização das imagens ideais do corpo e de si. Por exemplo, ao invés de locus da identidade estável, o corpo fornecido pela industria cultural e pela retórica do consumo aparece cada vez mais como matéria plástica, espaço de afirmação da multiplicidade. Na verdade, o setor mais avançado da cultura do consumo não forneceria mais ao eu a positividade de modelos estáticos de identificação. Ele forneceria apenas a forma vazia da reconfiguração contínua de si que parece aceitar, dissolver e passar por todos conteúdos. Talvez seja esta a condição maior para a sobrevivência da sociedade de consumo.

 

Em sala

 

Proponha uma discussão a respeito dos padrões atuais de identificação presentes na indústria cultural e na retórica do consumo. Por exemplo, várias campanhas publicitárias interncionais (Calvin Klein, Playstation etc.) não utilizam mais a incitação a padrões estereotipados de identificação e conduta. Elas parecem, ao contrário, oferecer produtos que mercantilizam diretamente a promessa da re-fabricação plástica da identidade de si. Promessa fundamental para a sustentação dos vínculos subjetivos com uma ordem econômica (o capitalismo tardio) marcada exatamente pela realidade da desterritorialização. No caso de um produto ligado ao universo da realidade virtual (PlayStation), o apelo à experiência controlada da plasticidade da identidade é ainda mais visível. Leve o aluno a se perguntar sobre como isto modifica a percepção que temos da imagem de si e, principalmente, porque nosso estágio atual do capitalismo precisa alimentar-se de tal processo.

            Um outro exercício possível consistiria em refletir sobre as mudanças na noção de auto-retrato que encontramos na história da arte. Pode-se, por exemplo, constituir uma interessante linha do tempo com os auto-retratos de Rembrandt, Edvard Munch e Cindy Sherman com suas fotos em múltiplas personas.

 

Em casa

 

A melhor atividade que um aluno pode desenvolver em casa é a leitura e a escrita. Vale a pena levar o aluno a ler textos que problematizem a noção de “si mesmo” e escrever resumos de tais textos. Por mais que os textos sejam difíceis para uma primeira abordagem, sua leitura vale mais do que vários textos de divulgação. Algumas leituras possíveis e generosas para uma primeira abordagem são: as Meditações, de Descartes (principalmente as duas primeiras), O que é um autor?, de Foucault e O eu e o isso, de Freud.

 

Saiba mais

 

DEBORD, Guy; A sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997

JAY, Martin; Downcast eyes; the denigration of image in twentieth century french thought, University of California Press, 1994

 

Vladimir Safatle, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, professor-visitante das Universidades de Paris VII e Paris VIII, autor de A paixão do negativo: Lacan e a dialética (Unesp, 2006)