BRIC’s e o retorno do capitalismo de estado

 

Já virou um lugar comum afirmar que o fato mais importante desta primeira década do século XXI é a emergência, no cenário mundial, de quatro grandes países de economia diversificada. Brasil, Rússia, Índia e China são vistos cada vez mais como novos pólos do capitalismo mundial. Tal visão não é simplesmente fruto destes países serem grandes pólos exportadores de mercadorias, como fora o caso dos tigres asiáticos na década de noventa (Taiwan, Malásia, Tailândia, Coréia do Sul). Eles são apontados como novos pólos do capitalismo mundial principalmente por estarem dotados de grandes mercados internos de consumidores. Os quatro países juntos representam algo em torno de 2 bilhões e meio de habitantes. Se apenas 15% deste contingente se constituir em mercado interno real, teremos algo como mais da metade do mercado consumidor da União Européia.

            Há previsões de bancos internacionais e de fundos de investimentos, baseadas nas projeções do Goldman Sachs, que colocam a China como a maior potência econômica até 2050 (hoje, ela representa o quarto maior PIB nominal[1], atrás dos EUA, do Japão e da Alemanha) e o Brasil entre as cinco maiores economias (hoje, ele responde pelo 10º maior PIB nominal do mundo, logo atrás da Itália, Espanha e Canadá). Pelas mesmas previsões a  Índia seria a 3ª economia mundial e a Rússia estaria entre as dez primeiras.

            As conseqüências que são apontadas desta nova configuração da economia capitalista restringem-se normalmente à afirmação de um mundo mais multipolar, onde a divisão entre países do norte e do sul tenderia a ser mais fluida. Algo deste mundo multipolar já poderia ser sentido na maneira com que as negociações da Organização Mundial do Comércio são marcadas pelos confrontos entre EUA, União Européia e o chamado G-20. Outra conseqüência seria a relativização da tese a respeito do advento da centralidade da riqueza imaterial (inteligência, tecnologia). Pois, excluindo a florescente indústria indiana da informática, a base econômica destes países é eminentemente “clássica”, ou seja, energia (petróleo, gás, biodísel) e produção industrial.

            No entanto, há um dado a mais que foi até agora pouco explorado e que deveria ser objeto de uma reflexão mais profunda. Para além do fato de serem grandes países com grandes populações e desenvolvimento econômico retardatário, Brasil, Rússia, Índia e China têm ao menos uma característica fundamental em comum: todos eles se afastaram de reformas classicamente liberais marcadas pela abertura global de mercados e pelo desmantelamento do papel regulador do Estado no interior da economia. Contrariamente aos antigos Tigres Asiáticos, nenhum destes países adotou ou permaneceu no que se convencionou chamar de “Consenso de Washington”. Isto talvez indique como estes quatro países parecem querer re-editar uma versão peculiar do que podemos entender por “capitalismo de estado”.  Caso esta hipótese esteja correta, podemos nos perguntar se não haveria uma tendência, impulsionada pelo núcleo mais crescente do capitalismo mundial, de se reconstituir como capitalismo de estado.

 

O motor imóvel da economia

 

            A partir dos anos 30 do século XX e principalmente após a II Guerra, vários foram os autores que indicavam a tendência a uma forma de capitalismo na qual o Estado aparecia como organizador do desenvolvimento econômico e como gestor de políticas de constituição de mercados internos através de sistemas de impostos e distribuição de benefícios. A figura mais bem conhecida de tal tendência foi a constituição das chamadas “sociedades de proteção social”, sociedades que podiam conviver com taxas de desemprego de dois dígitos porque o Estado, ao mesmo tempo, defendia empresas nacionais com políticas protecionistas e taxava tais empresas a fim de financiar programas que evitavam a pauperização social e o desmantelamento dos mercados internos. O Estado aparecia assim como uma espécie de “formação de compromisso” que garantia mercados para empresas nacionais, seja através da constituição de mercados internos, seja através da conservação de relações econômicas privilegiadas com antigas colônias; até porque, vale sempre a pena lembrar que boa parte das sociedades de proteção social (França, Bélgica, Países Baixos, Inglaterra) ainda eram, até o final da II Guerra, potências coloniais. Isto quando o Estado não era simplesmente o principal gestor das maiores empresas nacionais (vide os exemplos da Renault, British Airway, Deutsche Telekom, entre tantas outras)

            Aceita-se de maneira consensual que, a partir de meados dos anos setenta, este modelo teria entrado em declínio em prol de economias de livre-comércio, nas quais o Estado já não tinha o papel regulador e protetor. Impulsionado pelos modelos liberais implementados por Margareth Tatcher e Ronald Reagan no início dos anos oitenta, a economia mundial teve um desenvolvimento exponencial nos países centrais, isto enquanto ia deixando de lado as expectativas daquilo que ainda chamávamos nos anos sessenta de “sociedade da afluência”. Se, por um lado: “o capital conheceu durante este período oportunidades múltiplas de investimento oferecendo taxas de lucros geralmente mais elevadas que em épocas anteriores”[2], por outro a flexibilização do trabalho, o desenvolvimento tecnológico e o declínio das políticas estatais de proteção provocou uma situação potencialmente explosiva. Lembremos apenas que, enquanto o PIB norte-americano por habitante cresceu 36% entre 1973 e 1995. o salário horário de trabalho de não-executivos (que constitui a maioria dos empregos) caiu em 14%. No ano 2000, o salário real de não-executivos nos EUA  retornou ao que era há cinqüenta anos[3].

            È fato que a política de livre-comércio evitou a desagregação do sistema, já que a baixa do poder de compra de certas camadas da população era, de uma certa forma, compensada pela possibilidade de exportação e abertura de novos mercados. Talvez isto explique porque os países centrais mais retardatários neste processo de abertura (França e Alemanha) eram exatamente aqueles que mais dependiam de seu mercado interno.

            Muitas são as explicações para esta mudança da relação entre Estado e esfera econômica nos países centrais do capitalismo contemporâneo. No entanto, talvez possamos ficar com uma sugerida pelo sociólogo alemão Robert Kurz, para quem: “em todos os surtos de modernização do sistema produtor de mercadorias, o elemento do estatismo apareceu no primeiro plano, ainda que nas formas e disfarces mais diversos”[4]. Pois o Estado aparece como ator capaz de construir as bases de infra-estrutura que permitiram o desenvolvimento dos mercados. No entanto, a história do capitalismo é a história de um  “movimento histórico ondulatório em que domina ora o estatismo, ora o monetarismo, sem que jamais se alcance o equilíbrio de uma reprodução imperturbada[5]. Isto porque o capitalismo seria o movimento incessante de interferência do Estado em momentos de crise ou de constituição de estruturas econômicas nacionais e afastamento do Estado em momento de segurança econômica, isto a fim de permitir à concorrência funcionar como  “processo de dinamização histórico” e de aumento da produtividade. Prova mais recente desta lógica bipolar foi o modo de intervenção estatal na luta contra a crise norte-americana do mercado imobiliário.

 

De onde veio o BRIC?

 

            Se esta hipótese estiver correta, então podemos afirmar que este novo estágio do capitalismo representado pelo advento de novos países no cenário mundial marcaria um certo modo peculiar de retorno àquilo que havíamos deixado para trás a partir dos anos setenta, isto no que diz respeito ao menos no papel orgânico do Estado como agente econômico.

            Peguemos, por exemplo, o caso da China e da Rússia. Os dois países escolheram vias distintas de abandono do socialismo real. Enquanto a Rússia optou por uma saída dramática e radical, a China produziu um processo de modificação gradual e acomodada no qual o Estado ainda aparece como ator econômico fundamental. O resultado foi a “gangsterização” da economia russa à época de Ieltsin e o crescimento exponencial da China, assim como a transformação recente de parte da sociedade chinesa em nova fronteira de mercados consumidores. A Rússia só voltou ao cenário econômico mundial quando abandonou suas reformas liberais, retomou as empresas chaves na mão do estado (vide o caso Gazprom) e reconstituiu uma “economia de comando” baseada na exportação de energia (gaz, petróleo). Os dois casos são apenas demonstração de uma equação clássica: um capitalismo de estado baseado na associação entre estrutura estatal e interesse de grandes empresas sempre aparece na base da formação de economias nacionais.

            O caso do Brasil não foge muito à regra. Suas grandes empresas com capacidade de concorrência mundial são, em larga medida, estatais (Petrobrás) ou antigas estatais que nunca se comporiam sem o aporte fundamental do Estado (Embraer, Vale do Rio Doce). Por outro lado, o desenvolvimento recente de sua economia está organicamente ligado à procura de constituição de mercados internos através de uma clássica equação de transferência direta de renda através da cobrança de impostos. Famílias que ganham bolsa família não poupam; elas consomem todo seu rendimento, ou seja, estes dinheiro retorna diretamente à economia real; dinheiro que, se não retirado, através de impostos, das classes mais favorecidas, iria para o mercado financeiro ou para o consumo conspícuo de produtos importados ou de luxo (como sempre ocorreu no caso brasileiro).

            Tudo isto parece fortalecer a hipótese de que um certo capitalismo de estado voltou.



[1] Segundo Banco Mundial, 2006

[2] BOLTANSKI, Luc, Le nouveau esprit du capitalisme, Paris, Gallimard, 1999, p. 19

[3] Ver THUROW, Les fractures du capitalisme, Paris, Village Mondial, 1997

[4] KURZ, Robert; O colapso da modernização, São Paulo, Paz e terra, 1994, p. 35

[5] idem, p. 44