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os filmes
uma aventura no cinema moderno
Walter Lima Jr.

Correio da Manhã, 27.01.1962

Em inteligente estudo dedicado à influência de Scott Fitzgerald no atual cinema italiano, Franco Valobra aproxima o mundo dos “twenties” fitzgeraldiano ao clima de desencantamento da era atômica. Um mundo, como o outro, vivendo sofregamente as últimas migalhas de uma desagregação aterradora. Neste paralelo, Valobra situa no que ele chama de “tédio existencial” a figura de Antonioni e Fellini como expoentes máximos de uma espécie de cinema participante dos problemas básicos do homem moderno à beira do caos. E ainda que os admiradores do primeiro não participem, em sua maioria, da moral felliniana ou do ponto de vista profundamente cristão, para não enquadrá-lo genericamente como místico, de seus filmes e, mais acentuadamente, de seu painel sobre a decadência do mundo ocidental, não deixarão de meditar sobre os pontos de contato da obra dos dois diretores. L’ Avventura parece, após, uma segunda e admirada visão, a continuação lógica de La Dolce Vita. Uma continuação que talvez  o próprio Fellini não realizasse.

Marcello, ao contrário de Sandro, é um personagem que se desintegra ao longo das três horas fellinianas. Não entende o que lhe grita o “anjo úmbrio” do outro lado do regato, na praia deserta de um novo dia. Fala um outro idioma, vazio e tristemente lógico. Sandro é este Marcello, talvez um par de anos mais tarde, já completamente “robotizado”. Ele, como todos os seus companheiros de “week-end” marítimo, não sente mais a rotina dos sentimentos ou as mais primárias inquietações humanas. Quando Ana, sua amante, desaparece, numa atitude insólita (Antonioni não explica a presença da morte, ele apenas sugere quase que subliminarmente o suicídio romântico, e isto pouco ou nada importa), Sandro preocupa-se mecanicamente com este acontecimento misterioso e inédito na sua vida e troca a dúvida do reencontro com Ana pela certeza do amor de Cláudia, sua amiga e superficialmente abalada com o seu desaparecimento. O efêmero e a fragilidade dos sentimentos é a história desse filme anti-romance. É preciso continuar existindo apesar de tudo. Esquecer rapidamente, viver inesperadamente, prometer castelos de areia em trens apressados, ao lado de outros amantes que divergem quanto à preterição do amor pela música mambembe ou vivem um casamento de quatro meses como se fora um acontecimento frio e calculado. É a renúncia constante do homem nos instintos mais puros do amor, a libertação carnal, os sonhos de juventude etc., em face da gula de uma sociedade aparentemente lúcida e brilhante que tudo absorve, homens e mulheres. Os homens construíram Golen para adorá-lo e descobriram-se submissos à sua vontade. A impotência do homem-objeto, simbiose criada pelo mecanicismo frio e estatístico do mundo moderno, diante das coisas já estabelecidas, fê-lo tornar-se um “robot”, imunizado ante o amor. Essa dificuldade de amar , de encontrar-se consigo mesmo, Edgar Morin analisa em seu curto ensaio “Amour et erotisme dans la culture de masse’’  (...)

Valobra compara o Sandro de L’ Avventura com o Dick de Tender is the Night (um dos dois livros deixados por Ana na ilha; o outro é a Bíblia, motivo suficiente para que o pai acredite na hipótese não-suicida), não só pela complementação que o anti-herói de L’Avventura dá ao caráter do grande personagem de Fitzgerald, como também pela idêntica situação do alienado dentro de situações aparentemente melodramáticas.

Sandro, como o Charlie Wales de Babylon Revisited, não se reconhece após uma noite de farra, surpreende-se ante a sua própria figura grotesca e vulgarizada pelos sutis e enganosos encantos do meio-ambiente. Suas lágrimas, ao final de toda a “aventura”, corresponde à volta de Charlie a Paris, procurando reconciliar-se com o tempo avidamente vivido mas desastradamente desperdiçado. A piedade de Cláudia por este último “close”do homem desmistificado é uma reação humana aparentemente esquecida ao longo da meditação de Antonioni sobre a fragilidade dos sentimentos. Como personagem, Cláudia é a imagem da inquietação feminina. Mesmo quando Ana e Sandro se amam, ao início do filme sua presença no pátio, como fêmea, vista através da janela semi-aberta, em último plano, estabelecendo uma silenciosa equação amorosa, determina uma nova visão do cinema psicológico moderno, cujas bases Rosellini já assentara admiravelmente em Viaggio in Italia. Cláudia poderia ser a mulher moderna, consciente de toda a sua legitimidade como ser humano, participante de todos os superproblemas de alienação do homem. Sua conduta, do princípio ao fim do filme, é verdadeira e compatível com essa possibilidade de “vir a ser”.

Cláudia reduz a experiência de Rossellini a uma espécie de preliminar do cinema moderno, não porque supere como personagem, observado em sua vivência mais íntima, a Mrs. Joyce de Ingrid Bergman, mas antes porque Rossellini é um místico, sequioso de uma solução ainda mais utópica ou maravilhosa, como no caso do milagre final de sua viagem. Antonioni, ao contrário, é o intelectual de nosso tempo, desesperado e alienado por todo um processo de desumanização do mundo ocidental. Assumindo esta posição anti-romântica, Antonioni supera Rossellini na observação psicológica, assimilando as experiências literárias mais próximas do seu tempo, ao contrário de um Visconti em Rocco e i suoi Fratelli, por exemplo. Sua validade como criador cinematográfico reside justamente no fato de ele fazer esse tipo de cinema despojado, participante, moral e filosoficamente engrenado com as nossas dúvidas e frustrações.
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Fala-se de L’Avventura como um filme fechado, preso a uma espécie de mistério impenetrável, de atmosfera marciana; até em Brecht, sobretudo, no plano de despojamento dos personagens em função de uma idéia central: a alienação da sociedade. Pode ser que o filme de Antonioni tenha uma tese ou seja até mesmo um comício mecânico e anti-humano sobre a angústia existencial dos anos mil novecentos e sessenta. E isto seria mais um problema de filmologia do que de análise racional. Todavia, o esteticismo que tanto se proclama em Antonioni não encontra uma base fundamental, a partir da forma aplicada ao conteúdo (Gehaltaesthetik) e do que Antonioni tem verdadeiramente a dizer em termos de arte, superando o supérfluo das imagens de choque por uma concentração mais íntima, um testemunho apenas do que acontece, sem comentar a ação sob um ponto de vista crítico. A sua temática central, o efêmero do amor, é vista mais através de um testemunho esteticamente funcional do que filosófico ou moral. Seus personagens se procuram sempre por uma insatisfação psicológica gerada pelo meio e nunca por uma atitude frente aos indivíduos em geral. O mundo, visto pelos olhos de Antonioni, se afigura frio nos termos da mecânica cinematográfica, justamente porque ele se recusa a adotar os métodos tradicionais da concepção do cine-espetáculo. Seu cinema observa sem encargos melodramáticos. É como diz Felice Battaglia em seu ensaio “Esteticismo”: “Diz-se que o artista o é na medida em que unifica, na sua fantasia, um mundo que o emociona e o domina, sendo precisamente pessoa no emocionar-se por esse mundo. Disse-se também que o artista se inflama na contemplação, mas que não fica nela, vai mais além. Na vida, ele é verdadeiro protagonista, despertador de impulsos magnânimos e animador das resoluções dignas e nobres. É Dante que aspira a um mundo melhor, Alfieri que desperta a pátria, Carducci que revigora a fibra de um povo. A Arte não é ação, mas qualquer coisa diferente: pausa serenante na ação. Mas como excluir que a ação nasça dela tanto mais enérgica quanto melhor alguém se contemplou a si mesmo na visão, e os torvos impulsos donde se procede se acalmaram na expressão adequada?”

Sente-se em L’Avventura, sobretudo, um despojamento absoluto das contradições do neo-realismo. A limpeza iniciada por Zavattini-De Sica em Umberto D (a constatação social) e continuada por Rossellini no já citado Viaggio in Italia (o reencontro do ser humano com os elementos que o formaram: a troca da dúvida pela verdade) encontra em Antonioni o mais aplicado dos estudiosos.
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