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cabra marcado para morrer
Walter Lima Jr.

Filme Cultura, abril-agosto 1984

1964
Meu primeiro contato com Cabra Marcado para Morrer foi a notícia de que o diretor de fotografia que escolhera para fazer Menino de Engenho comigo não mais seria Fernando Duarte. A equipe do Cabra havia escapado da Paraíba a duras penas logo após o movimento militar, portanto não havia possibilidade de retorno do fotó-grafo à mesma área. Eu e Fernando já havíamos percorrido a mesma região em fins de 1963 fazendo as locações para Menino de Engenho e fomos testemunhas de ma-nobras militares entre os donos de engenhos locais. Mais tarde, vi uns copiões que se exibiam clandestinamente na Líder: lembro-me de uma seqüência numa casa de farinha com gente trabalhando e da cena da morte de um lavrador. Nunca me esqueci desses planos.

Um ano mais tarde, já filmando em João Pessoa, tentei obter por empréstimo a mesma câmera soviética que teria sido usada por Coutinho no Cabra Marcado. Pura lenda. Era uma máquina semelhante à Arriflex, que Linduarte Noronha havia comprado durante a exposição soviética no pavilhão de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. A tentativa mobilizou alguns "pistolões" paraibanos até que a câmera pudesse ser "libertada" da sala onde se encontrava fechada a sete chaves. Esforço inútil, pois durante todo o período de clausura não houvera conservação técnica e portanto lentes e motor estavam inutilizados. Tudo isso para nós tinha a marca maldita que a repressão conferira ao Cabra, filme marcado para morrer.

1975
Reencontro Coutinto no Globo Repórter, onde ele ainda trabalha e onde reaprendemos a pensar a produção cinematográfica com a cumplicidade criativa do real. O Cinema não mais como o inacessível altar de sacrifícios, mas como instrumento cotidiano de trabalho, ferramenta sagrada de comunicação ampla, sem o peso do compromisso com a repercussão grupal. Cinema de todo dia, como deve ter sido para os pioneiros que constituíram a sua linguagem.

Fluxo de audiência, som direto e despojamento formal são os pontos básicos desse aprendizado que também pode significar uma perigosa estética utilitária de cultura geral para as massas. A compreensão desse aprendizado e sua incorporação ao Cinema não apenas para TV abriu novos espaços no meu trabalho, desde A Lira do Delírio, onde os recursos de som direto são fundamentais na organização de uma dramaturgia mais ágil e descontraída, sem dogmatismos - é importante acrescentar. Por seu turno, Coutinho começa a visitar assiduamente a mesma região onde filmara Cabra Marcado em 1964. Nesses arredores faz um bom número de documentários de alta qualidade e é assim que recomeça a pensar numa forma de produzir o filme. Seu itinerário é quase o inverso do meu, pois compreende sobretudo o enriquecimento da linguagem da própria televisão com um motivo cinematográfico principal (terminar o seu primeiro longa-metragem), incorporando à linguagem do telejornalismo os recursos criativos da montagem cinematográfica e sua decorrente reflexão. Coutinho, em Cabra Marcado para Morrer, faz a televisão brasileira como ela devia ser, sem os maniqueísmos do autoritarismo e sem a baixa escolaridade de seus textos. A meu ver, a simples exibição de Cabra Marcado para uma audiência como a do Globo Repórter poderia mudar definitivamente a noção de criatividade televisiva entre nós.

1984
Vi pela primeira vez o filme numa sessão emocionalmente carregada, com um público de "contemporâneos" do velho projeto de Coutinho. Amigos, atores, cineastas da mesma geração que choraram ao final e o aplaudiram por mais de cinco minutos. Na saída, a conversa rendeu. Ninguém queria ir embora, o filme os mantinha ali, prova inequívoca de nossa tenacidade, de nossa esperança. Havia os descontentes, como sempre os de outra geração, que achavam que o simples fato de serem de outra geração os liberava para ver o filme de outro ângulo. Mas afinal, e o filme?

À primeira vista, um original documentário sobre o que restou das ligas camponesas nordestinas após 64. Único documento vivo de tudo aquilo, Cabra Marcado para Morrer vem enriquecer a observação da ação do cinema sobre o real, em aspectos bastante significativos: um deles, a sua capacidade de interagir entre seus personagens, transformando-os e com isto se transformando. Os camponeses que vêem os copiões de Coutinho não são mais os mesmos no dia seguinte. Provocados por uma realidade (cinematográfica) anterior, eles voltam a agir, desta vez estabelecendo novos rumos para o filme que está sendo feito. O que existe realmente de novo em Cabra Marcado talvez esteja exatamente aí, na sua extraordinária cumplicidade com a vida. O filme, como sabemos, é fruto de uma abnegada procura de si mesmo, ao longo de 20 anos de impossibilidades políticas e materiais e, sem esconder a aventura de sua execução, transforma esta aventura em estilo fílmico, usando recursos de tele-reportagem, do cinema direto, do documentário tradicional e de montagem. Caminhar pela realidade com um gravador ligado e uma câmera rodando pode significar um gesto de poder que irá certamente contrair o real, caso o cineasta não renuncie às facilidades da prepotência que seus instrumentos de trabalho certamente lhe trarão. Alguém diante de uma câmera é muito mais do que um simples alguém, mas a consciência de sua própria imagem. Na certa, a verdadeira personalidade se ocultará para dar lugar a uma “hipótese” mais aceitável de si mesmo. O cinema carrega em si uma forte dose de idealização do real e a compreensão deste fenômeno não se dá apenas com o primado dos bons sentimentos do cineasta frente à realidade que o cerca. Há que renunciar a uma ampla margem de facilidades criadas pela prepotência do mecanismo cinematográfico (câmera, equipe, ritmo incompreensível de trabalho da equipe para os incautos, etc.) e submeter-se ao tempo normal dos acontecimentos e das pessoas que se deseja filmar. Uma questão ética que determina uma nova forma estética, ou seja, a realidade como uma espécie de diretor de produção, misto de acaso e oportunidade.

Não se trata porém do que venho chamando de "Cinema possível", fruto da penosa relação entre o desejo original de filmar e o resultado conseguido, muito comum entre nós. Desejo mimético de reproduzir as idéias de uma cultura cinematográfica dominante, sufocado por uma inadequação dos meios econômicos de produção. Cinema do que foi possível fazer. Tampouco a experimentação compulsiva do cinema dito de vanguarda, profissionalmente "moderno", o que nunca falha, pois já encerra em si mesmo toda a ideologia do precário, do mal acabado, como forma final. Longe disso. Não se trata aqui de um caso gratuito de exercício de poder, de egolatria, auto-indulgência ou até de um autoritarismo com criatividade. Estamos diante do cinema como forma de perquirição, inquieto em sua dúvida e generoso em sua perspicácia.

Eduardo Coutinho filmara poucas seqüências do seu roteiro original. Tudo o que restara dessa filmagem inicial nos leva a crer que seu Cabra original estava marcado pelas dominantes de um cinema formalista, politicamente alinhado à estética do popular bem próxima do neo-realismo italiano do pós-guerra e da arte-de-urgência do CPC da velha UNE. A única cena mais "livre" do material mostra meia dúzia de lavradores reivindicando direitos, com o patrão-feitor no alpendre de uma casa de fazenda. A disposição hierática dos personagens na cena trai a improvisação dos autores camponeses: a câmera vê à distância o confronto como se quisesse reduzir cenografia e personagens à condicão de significados frontais: o alpendre (área de poder), ponto mais elevado onde se encontra o patrão, e o terreiro, espaço inferior ao alpendre, onde estão os camponeses. Os signos são claros e simplificadores do conteúdo da seqüência e se aproximam das formas de teatro de afastamento, então em voga. O resultado é próximo do esquemático, esfriando as improvisações dos atores e incorporando uma evidente artificialidade a todo o resto. Curiosamente, nas cenas mais elaboradas do ponto de vista cinematográfico, a construção do telhado, a morte à distância do lavrador e, sobretudo, o último encontro dos camponeses dentro de casa, quando Elizabeth (mulher de João Pedro) vem avisar que "tem gente lá fora", persiste uma densa credibilidade e, no caso desta última cena, uma atmosfera de beleza pictórica imune ao tempo. Todas essas cenas são as primeiras realizadas por um cineasta de curtido vigor cinematográfico e, ao longo do Cabra definitivo que agora vemos na tela, elas ressurgirão com nova força, enriquecendo a visão do espectador e a lembrança de seus personagens, ou vice-versa. Levadas de volta ao seu cenário de origem, elas fazem reagir atores e personagens em cada camponês sobrevivente ao tempo: cada lembrança surge envolta num cálido clima de companheirismo dos bons dias da primeira filmagem. Devolve assim o cinema ao real o que dele se apropriara e com esta generosa comunhão começa a surgir uma nova cumplicidade, ou melhor, um filme. Um novo filme? Um que apenas vencesse o medo de todos esses anos de censura e se impusesse como obra finalmente acabada ou a persistente aventura cinematográfica diante dos novos caminhos abertos por uma outra realidade? Acho que Coutinho preferiu todos os caminhos que o permitissem chegar ao relato quase-científico da desagregação de uma comunidade camponesa nos últimos 20 anos da vida brasileira, da desagregação de uma família do campo sob pressão policial intensa, e descobrir que a fé de cada um deles não desaparecera, assim como o quadro das injustiças sociais.

O texto que narra o filme traz em si um ângulo adequado de visão para acompanhar o que se passa na tela. Não é um texto que submeta a ação filmada a uma idéia política ou estética previamente traçada, mas sim uma exposição dos fatos fundamentais a serem analisados. Às vezes reiterativo, este texto cria também um novo personagem na trama do filme que iria ser uma coisa e acabou sendo muito mais: o próprio Eduardo Coutinho. É ele que, empunhando o microfone, adianta-se à frente de uma câmera na mão, sempre ágil para indagar ou simplesmente estar entre os protagonistas desta saga em som direto da família rural brasileira. É ele quem vence o medo (tal como a Marta que volta a ser Elizabeth ao longo do filme) e descobre o seu filme como fruto de toda uma resistência cultural e política. Tem todavia o pudor de manter-se equidistante entre personagem e autor; seu filme tem o mérito de pertencer tanto a ele quanto a cada um de nós.
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