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frank capra: compreensão e “new deal”
Walter Lima Jr.

Correio da Manhã, 02.09.1962

Aproxima-se o momento em que a nova geração mais interessada no fenômeno cinematográfico travará conhecimento com um dos mais famosos cineastas de Hollywood: Frank Capra. A oportunidade terá efeito com a realização do Festival Capra-Ford na Cinemateca do MAM. Já há quem diga, no entanto, que Capra sairá ferido da luta. Convém esclarecer alguma coisa a esse respeito. Em primeiro lugar, não há disputa entre Capra e Ford. Em segundo, não poderia haver dupla mais simpática. Vale ressaltar que o cinema andou muito, depois de Frank Capra. E Ford sempre à frente. Porém, no dia em que se fizer um levantamento político-sociológico da sociedade americana em toda a sua complexidade, impossível será deixar de todo o cinema de Capra, preso a um determinado momento histórico mas personalíssimo.

Frank Capra, assim como Ford, é um dos grandes cineastas americanos que impuseram a sua capacidade criadora no decênio 1930-40. É produto típico de uma época, o “new deal” rooseveltiano. Desligá-lo desse período é eliminá-lo completamente. E seria inominável fazê-lo.

Após a grande crise financeira de 1930, a nação americana foi violentamente despertada de um suave torpor que a vinha embalando durante quase trinta anos. Desfeito esse imenso castelo de areia, viu-se desamparado e desiludido o americano médio. A nação em completa ruína, o sentido de valores radicalmente alterado, o pânico em lugar de ilusão. Em todo o mundo havia a substituição das velhas fórmulas de vida pelo despertar de uma consciência participante dos problemas coletivos. Roosevelt, no poder, tratou de “varrer” (a coisa não é só nossa, como se vê) as negociatas de dois governos deficientes (Hardin e Coolidge) e tomar vigorosamente todas as medidas de repressão que ajudariam a levantar de novo a América. Era uma nova conquista, uma nova liberdade, era o “New Deal”. Assim, de uma hora para outra, o homem comum americano viu-se descoberto pelo Estado todo-poderoso. As medidas socializantes de Roosevelt (lei antitruste, Instituto de Previdência Social etc) fizeram-se sentir em Hollywood, onde até então a regra geral era a produção de melodramas sentimentais escapistas. É certo que este gênero de filmes não desapareceu, pelo contrário. Deu-se, no entanto, oportunidade àqueles que realmente estavam interessados em dizer alguma coisa; àqueles que sinceramente viam o homem como elemento catalizador dos problemas sociais e humanos. Assim é que Ford e Vidor puderam mostrar ao mundo seus imensos talentos em filmes tão memoráveis quanto The Whole Town’s Talking, The Grapes of Wrath, Our Dally Bread, Wedding Night, entre outros, e Capra deu largas ao seu agudo senso de observação e ao seu admirável espírito criador. Capra, mais do que qualquer outro, representa o porta-voz do “New Deal” ao lado de seu cenarista habitual Robert Riskin, já desaparecido. E Longfellow Deeds, o maior de todos os seus personagens – entre eles um fabuloso “John Doe” – é o ponto mais alto (o personagem não o filme: Mr. Deeds Goes to Town) a que atingiu na sua brilhante carreira.

Longfellow Deeds é o americano médio por excelência. Ele é humilde, rude e puro. Tem uma herança fabulosa nas mãos e resolve reparti-la com os menos afortunados. Ele é a própria consciência despertada nos novos Estados Unidos da América, voltado para os seus filhos. É uma denúncia viva, de carne e osso, à indiferença dos poderes públicos. É o homem, ideal por certo, mas homem, ser humano. Capra, como Ford, não faz cinema social. Seria muito cômodo rotular uma constante que está entre as maiores da história do cinema: o homem e sua trajetória na paisagem terrestre. Atrás de toda a sua “oratória cinematográfica” (sic) e sua verve anticonformista, Capra e Ruskin não escondem – antes pelo contrário – a sua fé na democracia, que é o verdadeiro ideal americano. Capra e todos os seus personagens acreditam na democracia. Se Longfellow Deeds, protótipo do personagem capraniano, à primeira vista, se define quixotescamente – só e invulnerável travando violenta batalha com o mecanismo da sociedade moderna – ele é tão somente o elemento de ligação entre o senso crítico-analista do realizador e o espectador anônimo que vê e ouve (impossível dissociar som e imagem no cinema de Capra) a sua fábula e que se sente convidado a ironizar ao lado de Capra a máquina de mil surpresas que é a sociedade americana.

A ironia de Capra, ao retratar o homem comum sujeito a toda sorte de situações criadas pela engrenagem corruptora da sociedade, jamais encontrará paralelo em obras como Miracolo a Milano, vazada de profunda e amarga alegoria simbólica, narrada como se fora uma fábula. No siciliano Capra, ao contrário do nortista (de Sora, Frosione) De Sica e seu filantropismo cristão, o que há é a construção do erro e a luta pela verdade. Não importa a reivindicação, a fase de substituição de um estado de coisas por outro e sim O Outro Estado de Coisas, a verdade e, por fim, a paz. Assim, à tomada de consciência de Longfellow Deeds, Capra apresenta a solução por ele (Deeds) encontrada. É uma solução utópica (porque irônica), mas é uma solução. Eis aí porque os comunistas se recusam a entendê-lo, xingando-o de superado. A eles interessa tão somente a denúncia e a luta e Capra “somente” ironiza inventando uma solução imaterial, uma versão americana da Rerum Novarum, um “happy-end”. Em Capra, no entanto, o “happy-end” não é uma obediência à bilheteria. Ele existe porque realmente fez parte de sua concepção do mundo e dos homens. Esse otimismo é, na realidade, a sua maior característica. Tanto Longfellow Deeds como Mr. Smith ou John Doe, e até mesmo personagens pouco importantes na sua obra como as duas velhas assassinas de Arsenic and Old Lace, que envenenam as suas “pobres e solitárias vítimas de um mundo hostil”, têm fortes traços humanos e são perfeitamente felizes na vida que levam.

Capra trouxe do silencioso um aprendizado que é bem revelador num estudo sobre a sua carreira. A sua ligação com Harry Langdon, cuja linha de interpretação tragicômica ele deve ter assimilado profundamente, enriqueceu e sua técnica de caricaturar as mais dramáticas situações. A sua ironia nunca é desproposital. Ele não se compraz em esquematizar as suas personagens secundárias: o velho milionário de It Happened One Night, por exemplo, jamais é mostrado como um ser repelente e, no entanto, este mesmo personagem tudo faz para demonstrar a sua ociosidade, desfilando em carro de luxo, precedido de batedores motociclistas, perseguindo a filha fugitiva (Claudette Colbert) que mantém um secreto idílio com o pobre repórter Clark Gable.

Capra é um desses cineastas que se dão ao luxo de ter o seu próprio universo. Um universo ideal, cristão, onde as pessoas vivem diante das maiores catástrofes e saem, sicilianamente, lutando com o propósito de colocar as crises nos seus devidos lugares. Ele representa bem o ideal do “New Deal”. Longfellow Deeds e todos os seus companheiros nesse universo não deixam nunca de lutar por suas convicções: são inúmeros Davis enfrentando inúmeros Golias, e lutando até vencer. Depois fazem as pazes ...
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