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nada havíamos percebido...
Ao entrar na sala exibidora para ver o documentário de José Padilha, já conhecemos o começo, o meio e o fim da reportagem sobre o seqüestro do ônibus por um jovem negro mal-encarado e sem os dentes da frente. O fato, como se sabe, paralisou o país durante uma tarde dramática e dele tivemos a impressão de que a televisão havia finalmente transmitido uma reportagem como deve ser, sem a presença conclusiva de um repórter sempre tenso e mecânico nas palavras e nos gestos.

Pois o documentário "Ônibus 174" surge inesperadamente para demonstrar-nos exatamente o contrário: nada havíamos percebido do que acontecera naquela tarde, não havíamos visto direito o jovem negro desdentado, nem os policiais que aguardavam o momento para matá-lo, nem o despreparo patético de uma polícia desgovernada, nem a miserável mas infinita solidariedade da pobre senhora que assume o papel da mãe protetora, nem a espantosa revelação da invisibilidade destes excluídos que nos espreitam enquanto dormem nas calçadas e nos vêem passar indiferentes, nem a dramática tentativa de suas vítimas em compreender todo aquele absurdo.

Tudo isso - e muito mais - nos é desvendado durante o trajeto deste "Ônibus 174", que continua a marchar inexorável pelo mesmo itinerário, disposto a revelar o micro e o macrocosmo de uma sociedade inteira. O início já é revelador: a câmera deixa o mar e sobrevoa as colinas da floresta da Tijuca devastadas pelo povo favelado, as mansões com suas piscinas, o itinerário do ônibus enfim. O passeio aéreo no contraditório. Nada de proselitismo político, apenas o fato substantivo: eis o percurso da tragédia. Os elementos de que dispõe o cineasta são oficiais: todos os materiais captados pelas câmeras de televisão e pela CET-Rio são resgatados para traçar o painel do evento, passo a passo. Submetido à análise do documentarista, esses "significantes" ganham significado e tudo o que nos parecia incompreensível torna-se claro e revelador.

Não estamos aqui diante de um puro e simples documentário, desses tantos que vêm demonstrando que a vitalidade do documentário brasileiro é, hoje em dia, muito mais vigorosa e criativa que todo o nosso cinema de ficção. É bom que fique claro também que não estamos diante de uma "tese" comprovada por imagens mais do que reveladoras. Não. Estamos diante do Cinema frente ao Real. O Cinema que corre riscos e desta relação com a realidade nos devolve a nossa própria imagem perdida entre tantas imagens "ideais" que a mídia pervertida nos oferece no dia a dia.

Miséria, abandono, medo, manipulação da notícia, incompetência, desaparelhamento policial, despreparo, desgoverno e uma institucional indiferença são os temas desenvolvidos ao longo de quase duas horas e meia de projeção que espantosamente passam sem que delas nos demos conta. As palavras do ex-secretário de segurança Luiz Eduardo Soares clareiam os aspectos mais obscuros da nossa tragédia social cotidiana: a invisibilidade que votamos aos excluídos das grandes cidades, atirados à própria sorte sem qualquer projeto governamental que os recupere para a sociedade. Parece que nossa principal riqueza, o povo brasileiro, não faz parte dos planos da nação. O seqüestrador clama pela visibilidade, quer ser visto e avisa que tudo aquilo "não é cinema não, é a realidade". Seus companheiros de rua fazem ecoar ao longo do filme as palavras do "invisível" Sandro, o seqüestrador. Uma das vítimas chega a dizer que é êle, Sandro, a vítima maior de toda aquela tragédia. Os policiais entrevistados complementam a visão de Luiz Eduardo Soares e revelam os desmandos da operação de resgate.

Saímos da sala exibidora com a incômoda sensação de termos visto nossa própria imagem, sem retoques. Apesar da trilha sonora que, ironicamente, confere ao filme o seu tom de espetáculo, é tudo espantosamente verdadeiro. Não conheço outro documentário brasileiro que tenha me proporcionado esta vivência do fato narrado.

Walter Lima Júnior