A Formação Étnica e Cultural do Brasil

O Brasil é reconhecidamente uma nação multi-étnica, que consolidou em sua formação a curiosa mistura de elementos europeus, índios e africanos, e que culturalmente soube integrá-los como talvez nenhuma outra nação fez.

Esta visão da formação do povo brasileiro está escrita nas primeiras lições de História do Brasil de nossas escolas, e começa com a explicação biologizante da mescla de três raças: a branca, a indígena e a africana. Se nossa formação é esta, a chegada posterior de imigrantes europeus instigava a visão biológica, salientando nossa capacidade singular de absorção do "outro". Mas, esta fábula de três raças surge ainda no brasil Império, no seio de pesquisadores naturalistas, e ganha a adesão de cronistas e escritores, em meio às teorias da época que reuniam os saberes biológicos com os sociais.
Genericamente, os autores que formularam as impressões do que viam se consolidar por aqui inclinavam-se por dois caminhos divergentes, mantendo, porém, uma matriz comum: a constatação da mestiçagem racial. Esta foi vista ou como uma elaboração bio-cultural inusitada e sublime ou como algo perigoso e lamentável. A mestiçagem seria, então, um entrave aos anseios progressistas da nação que pretendia desempenhar seu papel no mundo civilizado. Ela é, no primeiro momento, a marca racial para se tornar, então, a marca cultural do Brasil.

Harmonia cultural?

A idéia de que a mesma fusão racial trouxe junto uma fusão cultural é tão parte da cultura brasileira quanto o é a idéia da miscigenação racial. Nesse sentido, o Brasil não se esquiva de festejar datas comemorativas de santos católicos, com uma pitada de estética afro-religiosa, assim como não deixa de festejar o carnaval na forma de competição cabocla, celebrando a cultura indígena. O carnaval do Rio de Janeiro talvez seja a apoteose de nossa combinação cultural. Pelo sambódromo temos, como já apontou o antropólogo Roberto Da Matta, a inversão temporária de nossas hierarquias e diferenças. Fantasiados, os ricos viram pobres e os pobres viram reis e rainhas. O patrão dança ao lado do empregado e o branco junto ao preto. Especialmente agora que comemoramos 500 anos de descobrimento do Brasil, lembramos das etnias que consolidaram nesta nação hospitaleira a doçura da culinária, o afago, a amabilidade e a confusa alegria festiva.
Certo. Certo? Nem tanto... Algo soa embaraçoso nesta visão do Brasil. E talvez não seja a constatação da grandiosidade e da riqueza multi-étnica, mas sim a dificuldade de metabolizarmos o que concebemos idealmente como sendo a nação brasileira e como ela de fato se apresenta. Se a capacidade antropofágica brasileira é ponto cultural alto, não o foi em termos de absorção dos compatriotas indígenas e africanos. Infelizmente, a sociedade brasileira se identifica com o traço multi-étnico e cultural que lhe é constitutivo, mas vive este de forma tensa em sua prática. Cotidianamente, idealizamos mais e somos mais felizes quando concebemo-nos fazendo parte desta amálgama.
Na prática, e sempre mais em aspiração do que no concreto, o Brasil branco e europeizado, mais tarde branco e americanizado, não soube com fazer com a diversidade cultural que a nossa formação configurou; não a integrou de fato, quando muito de direito. E talvez até para amenizar as deficiências da justiça para com o caldeamento cultural, o memorial que vai marcar os 500 anos de descobrimento, ironicamente, está sendo construído em terras Pataxós, a mesma tribo do índio queimado vivo. Neste caso, o direito está vindo em forma de reconhecimento memorial. Mais uma vez os grupos indígenas são pensados enquanto personagens (exóticos) que romantizam nossa formação multi-étnica. O que fez o jornalista indagar: "Comemorar o quê, cara-pálida?" (Armando Antenore, Folha de S. Paulo, 3/4/98).

Os Negros

E quando pensamos no outros lado da fábula das três raças, os afro-brasileiros são os condutores de nossas expressões folclóricas, como o samba e, sem infringir regras católicas, são responsáveis por manifestações religiosas de cheiro agradável e fortes proteções. Estes são alguns dos lugares em que a antropofagia cultural é esteticamente absorvida. De resto, os negros brasileiros padecem da tradição que os viu, especialmente após a abolição, como tendo direitos sim, mas apenas os que não perturbem uma certa ordem que ensaia se impor. O fato de que boa parte da população afro-brasileira transite pela periferia de nossa sociedade é significativo já que não ocupam senão os lugares que a própria história da colonização e do desenvolvimento lhes relegou.
Enquanto o Brasil não acertar as contas com afro-descendentes, índios e todos os caboclos e mamelucos que compõem nosso mapa de exclusão, não poderemos falar com tanto garbo e júbilo assim de nossa diversidade étnica e cultural. A nação que se constitui por seus arranjos insólitos e graciosos tem muito ainda que repartir, antes de festejar.

Jacqueline Britto Pólvora


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