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MARIA J FORTUNA


O TRAPEZISTA E O PALHAÇO

Eu estava realmente perplexa quando, pela primeira vez, aos 7 anos de idade fui ao circo. As luzes se haviam apagado. Mas um grande foco dela iluminou o picadeiro. Um belo homem vestido de azul prateado, com seu corpo inteiramente musculoso e fascinante, segurou o bastão do trapézio com uma postura de imensa nobreza! Ele estava inacreditavelmente alto! Lá encima o céu estrelado da lona azul realçava o momento.
Na minha cabecinha aquele cenário era um sonho...
Seu rosto era grave, concentrado. A música da pequena orquestra mambembe executou uma valsa suave.
Meu coração flutuava como uma pena...
Então ele passou um pó branco em suas mãos enormes. Segurou o bastão, desta vez com muita firmeza, e seu corpo se elevou na ponta dos pés e ele alçou um vôo magnífico para cá e para lá.
A música o embalava e e fazia dançar minhas fantasias de criança...
Num segundo, desviou de um trapézio para o outro. Colocou-se de cabeça para baixo sustentado pelas pernas dobradas no bastão do trapézio. Para minha surpresa, vi que ele aguardava outra figura a quem iria aparar com suas mãos fortes. E de repente, a figura apareceu lá em cima.
Imaginem a minha surpresa com esta dose dupla de homens corajosos!
Eu estava sob a força do encantamento.
Então o homem repetiu o gesto do primeiro. Alçou vôo . Deu uma pirueta no ar ,como os pássaros caçando peixes, mas caiu nas mãos do homem de cabeça para baixo numa sincronia tão bela como quando acontece algo de muito bom e o coração reconhece. Puxa, pensava eu. Por um triz ! Se o outro homem não o segura... se ele chega adiantado ou mais tarde... Meu coração havia sincronizado o compasso do bailado daqueles homens voadores.
Agora uma pirueta mais arriscada! Os tambores começaram a tocar.
Eu tremia toda naquele momento...
O homem-pássaro segurou o bastão do trapézio e jogou-se no ar. Deu duas voltas ali, no alto, no meio do picadeiro, lá encima e virando-se no ar procurou as mãos do que o aparava. E num golpe só foi seguro pelo companheiro de grande riscos.
Foi um alivio... Eu estava emocionada e meus olhinhos se encheram de lágrimas. O trapezista tornou-se a figuração do homem forte e corajoso para mim. A melhor interpretação do masculino na minha vida de menina.
Qualquer pequeno erro, qualquer dissincronicidade poderia ser fatal para os que executavam aquele fascinante número de circo pois não havia rede.
Quanto mais pobre o circo, mais riscos, pensei. O circo não tem dinheiro para comprar uma rede para eles... E fiquei cheia de compaixão. Então porque se arriscam tanto?
Os trapezistas desceram do alto e vieram cumprimentar o público. Como estavam garbosos! Muitos pares de olhos, que haviam contemplado aquele risco todo, agora brilhavam e uma chuva de palmas eclodiu na acústica tão precária do velho circo.
Eu me esforçava por bater muita palma mesmo! Afinal a gente precisava compensa-los por ter executado uma façanha tão incrivelmente arriscada! Minhas mãozinhas ficaram vermelhas e doloridas de tanto que eu aplaudia. Eu havia experimentado de tudo ali: fascinação, apreensão, alívio! O maior tesão de criança. Minha preocupação era a próxima apresentação deles no dia seguinte... A grande empatia que eu possuía com aquelas pessoas sofridas do circo mambembe e o instinto maternal de proteção era inevitável! A grande marca que venho trazendo ao longo dos anos.
Bem, logo em seguida surgiram os palhaços risonhos e brincalhões, com suas caras pintadas Davam cambalhotas . caíam, esbarravam uns nos outros, quebravam velhos pratos, subiam uns nos outros.
Eu ainda estava sob o impacto do número anterior.Não achava nenhuma graça. Achava que, por baixo de suas caras pintadas, eram tristes.
A platéia ria as gargalhadas e tudo parecia uma grande festa. As crianças, algumas no colo dos seus pais, lambuzadas de algodão doce apontavam para os palhaços e batiam palmas descompactadas. Tinha gente gritando e os sacos de pipoca eram derramados, caindo no chão de terra batida. Todos pareciam aliviar a tensão da presença do perigo que se fez presente durante o número anterior.
Eu continuava pensando e sentindo. Sentindo e pensando... estes homens também vão repetir as mesmas palhaçadas no dia seguinte... e no outro e no outro... Será que conseguirão sempre a mesma façanha todos os dias? O que seria melhor? Ser trapezista ou palhaço? Por que não faziam palhaçada no trapézio? Será que um trapezista conseguiria ser palhaço?
Logo os palhaços se retiraram do picadeiro porque ir começar o número do domador. E ele, o domador, parecia não correr muito risco porque o leão parecia muito velho... Bem, aí é uma outra estória.
Esta minha experiência cerceasse marcou minha vida surpereendentemente. O que seria mais difícil? A aventura dos homens voadores sem rede, ou o esforço dos homens pintados por estarem sempre alegres fazendo as pessoas rirem entre um número arriscado e outro? Anos mais tarde, quando virei gente grande, sempre diante de uma situação de risco, noto que, tem hora que sou trapezista e outra em que sou palhaço. E que , de repente, posso ser um palhaço trapezista. Percebo que o risco e o medo de cair acompanham cada ação da gente quando nos expomos a situações difíceis que a vida nos traz. Percebi que quando se apresenta uma situação de risco inevitável, não há espaço para o medo e que o perigo faz parte do dia a dia que é uma sucessão de espetáculos, que só termina quando terminamos aqui no palco do planeta. E que há de se respeitar o palhaço que existe em nós para que assim possamos enfrentar as situações de ridículo que a sociedade nos oferece com suas exigências marginalizantes. Esta é a forma de nos distrair do medo de cair na frente de todo mundo, de ficar velho e morrer. Isto quando a postura elegante do trapezista garboso vai nos abandonando e a gente começa a sofrer limitações.
Sem dúvida aquele foi o espetáculo que fez minha natureza humana tomar maior consciência. Conhecer a dimensão das minhas possibilidades e me mostrar o direito de pintar o rosto e me esconder quando o meu ser procura proteção.

Belo Horizonte, 22 de junho de 2001


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