Dactiloteísmo

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Esse diálogo aconteceu na primavera de 1989. Caminhávamos por entre nuvens, visibilidade quase nula, o céu ameaçando desabar sobre as nossas cabeças. Uma garoa fria e intermitente começava a molhar a rocha. O local era a trilha de acesso ao Dedo de Deus, a montanha-símbolo da cidade fluminense de Teresópolis. Eu era um iniciante no montanhismo. Estava começando a guiar algumas escaladas e tinha ouvido falar que um grupo guiado pelo Makoto Ishibe ia subir o Grande Dedo. Escalar essa montanha era um velho sonho meu e aquela me pareceu uma boa oportunidade para realizá-lo. Liguei para o Makoto e para outros participantes da excursão e perguntei se eles se importariam caso eu e um amigo meu os seguíssemos. Permissão concedida, o passo seguinte foi convencer o Geuis, um companheiro do Centro Excursionista Universitário, a me acompanhar na aventura. Ele aceitou o convite e ainda levou um amigo junto, de modo que formaríamos uma cordada de três.

Enquanto subiam a encosta da Serra dos Órgãos, porém, os dois perceberam que a trilha de acesso ao Dedo não é exatamente o passeio na praia que estavam imaginando. A caminhada começa na rodovia Rio-Teresópolis, perto de uma área de estacionamento onde há uma pequena represa e a estátua de uma santa. A partir daí, ganha centenas de metros de altitude, no início na forma de uma picada muito íngreme na Mata Atlântica que cobre essa parte da serra. Depois, à medida que começa a encontrar trechos quase verticais de rocha exposta, a subida se faz por uma sucessão de cabos de aço (em 1989, eram cordas fixas). Se o montanhista não estiver bem preparado, os braços rapidamente ficam cansados e as mãos doloridas. A possibilidade de escorregar e cair existe, especialmente se a rocha estiver molhada, como naquele dia.

Cabo Abaixo

Dedo de Deus Um acidente desse tipo quase aconteceu no inverno de 1996 com outro amigo nosso, o Guilherme, durante a descida do Dedo, após uma bem sucedida escalada. Contrariando a orientação dos guias, ele não levou luvas. Suas mãos ficaram tão doloridas que ele não conseguiu mais segurar nos cabos com firmeza. Acabou despencando alguns metros cabo abaixo, até parar num patamar com a ajuda de outro montanhista. Naquele dia de 1989, porém, Geuis e seu amigo desistiram antes. Depois de subir as primeiras cordas fixas e ver as nuvens em volta, os dois resolveram voltar para o calor das praias cariocas. Continuei seguindo o grupo do Makoto na esperança de, pelo menos, aprender o caminho até o início da via de escalada.

Quando chegamos à base da via, contei ao Makoto que meus companheiros haviam desistido. Ele disse que, se eu estivesse disposto a guiar, me passaria um participante. A diferença entre os papéis do guia e do participante -- primeiro e segundo na cordada, respectivamente -- é que o guia escala com segurança por baixo. Deve armar o sistema de proteção enquanto sobe, e pode estar sujeito a quedas de vários metros de extensão. O participante, ao contrário, recebe segurança por cima e raramente fica exposto a quedas. Entusiasmado com a possibilidade de escalar o Dedo, aceitei a oferta imediatamente, mesmo não tendo quase nenhuma experiência como guia. Me encordei com um montanhista chamado Chico, que eu conhecia vagamente mas com quem nunca tinha escalado antes.

A via por onde pretendíamos subir é a mais fácil do Dedo de Deus. Conhecida como via Leste, ela segue por um sistema de fissuras e chaminés. Tem sete enfiadas de corda e é graduada como 3º III+ (1). Foi conquistada em 1944 por três escaladores cariocas, todos membros do Centro Excursionista Brasileiro. Essa conquista foi um feito notável por vários motivos. O acesso ao local era muito difícil. Além disso, o equipamento disponível e a técnica utilizada na época eram primitivos. Mesmo assim, os montanhistas conquistaram a via sem bater um único grampo fixo -- atitude que, hoje, mereceria elogios. Os grampos existentes na via Leste foram acrescentados depois, por outros escaladores.

Maria Cebola

Via Leste Um dos lances mais conhecidos da via Leste é uma chaminé muito estreita, escura e úmida, a Blackout. São muito poucos os escaladores que apreciam essas passagens apertadas. A maioria prefere escalar a via Leste pela variante Maria Cebola, que desvia da chaminé e segue por um diedro paralelo (IV grau), muito mais exposto e elegante do que a Blackout. Foi na base da Maria Cebola que eu vi Makoto e sua equipe desaparecerem rapidamente diedro acima. Comecei a segui-los, mas a passagem exposta e algo técnica na entrada do diedro, combinada com minha inexperiência como guia, acabaram fazendo com que em me sentisse inseguro. Foi nesse momento que chegou o Valdi, escalador de Teresópolis que eu não conhecia, junto com um amigo. Os dois estavam usando tênis, que contrastavam com as sapatilhas importadas que eu, Chico e os demais paulistas tínhamos nos pés.

- Tu tá muito drena de guiar esse lance? Tô vendo que tu não tá acostumado a guiar lances expostos. Depois da curva é uma aderência de quarto grau. Se tu cair, tu vai ficar pendurado num negativo. É melhor tu descer e ir com a gente pela Blackout. Vem pela Blackout que a gente te dá uma mão.

As palavras do Valdi me deixaram apavorado. Me imaginei pendurado no tal negativo, depois de despencar muitos metros parede abaixo. Rapidamente, aceitei o convite para ir pela Blackout e a ajuda que ele me ofereceu. Para isso, tive que me desencordar, armar uma descida por rapel e voltar à base da variante. Valdi me jogou uma corda e me deu segurança por cima, não só na Blackout mas também no lance seguinte, uma chaminé clássica, com largura perfeita para uma escalada confortável. Como guia, eu estava me saindo um bom participante. No final desse lance, dei de cara com o Makoto. Ele já havia subido até o cume e, depois, tinha desescalado as últimas três enfiadas de corda -- sem corda -- para ver por que eu estava demorando. Meu candidato perdeu a eleição para presidente naquele ano (o eleito foi Fernando Collor), mas nós chegamos ao cume do Dedo de Deus. Lá, tive tempo apenas de assinar o livro de registro e iniciar a descida. Paisagem, nem pensar. As nuvens ainda cobriam tudo em volta e estava começando a chover.

Teixeira

Rapel A descida do Dedo é feita pela via Teixeira, a via original usada pelos primeiros aventureiros a chegar ao cume, em 1912. Diz a lenda que alguns escaladores estrangeiros tentaram, sem sucesso, conquistar o Dedo de Deus no início do século. Um pernambucano cabra-macho, de nome Teixeira, ficou sabendo e decidiu que tinha que atingir o cume antes deles. Teixeira era ferreiro e morava em Teresópolis, onde conseguiu convencer mais quatro amigos a acompanhá-lo naquela exótica aventura. Sem nenhuma experiência em montanhismo, ele confeccionou, em sua oficina, uma grande variedade de artefatos de ferro para viabilizar a subida.

Os cinco abriram a picada que sobe em direção à cela entre o Dedo e o primeiro dos três dedinhos que se alinham no seu lado Sudoeste. A partir dela, subiram pelos paredões rochosos da face Noroeste, seguindo uma seqüência de chaminés e patamares. Uma das chaminés é tão estreita que recebeu o prosaico nome de Arranca Botão. Conta-se que um garoto de nome João fazia diariamente o percurso de Teresópolis ao campo-base, armado no final da trilha, levando comida para os aventureiros. Os escaladores improvisados chegaram ao cume depois de uma semana martelando pedra para cravar grampos e se equilibrando sobre pilares e escadas de madeira que eles tinham levado lá para cima. No topo, fizeram fogueira, soltaram fogos e hastearam a bandeira do Brasil. Quando voltaram a Teresópolis, eram os heróis do município.

Bel no Cume Depois daquela primeira escalada em 1989, voltei várias outras vezes ao Dedo de Deus. A via Leste tornou-se fácil à medida que eu desenvolvia minhas habilidades de escalador, mas não perdeu seu encanto. A bela paisagem da Serra dos Órgãos e o prazer de ascender àquela impressionante montanha valem a longa viagem de São Paulo a Teresópolis. Em junho de 1994, eu e meu amigo Hsu Wang Chang escalamos uma parte da via original aberta por Teixeira e seus companheiros em 1912. Tínhamos subido por toda a trilha, com seus cabos de aço, carregando, cada um, mais de 20 quilos na mochila, entre equipamento de escalada, material de bivaque, água, comida e agasalhos. Escalamos até um certo ponto e depois voltamos a um patamar protegido por um teto inclinado (o plano era escalar a Maria Cebola no dia seguinte). Nele, montamos nosso bivaque. Nuvens escondiam as luzes das cidades da Baixada Fluminense, que só apareciam parcialmente. Mesmo assim, foi deliciosa a sensação de dormir num lugar tão inusitado -- nas rugas do Dedo de Deus.

Maurício Grego -- São Paulo, 11 de Dezembro de 1996

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© - O texto e as fotos desta página são da autoria de Maurício Grego. Seus comentários e sugestões são bem vindos. Página atualizada em 15/jan/96.