Ride the Lightning

OK, BEL! PODE LIBERAR! Gritei para Bel e Hsu que esperavam na base da parede. Eu havia chegado ao final da fissura que, mais tarde, nós chamaríamos de Nanica e Ordinária. Era a primeira vez que eu conquistava uma via de escalada totalmente inédita. Durante anos, eu havia me limitado a escalar paredes já percorridas, antes, por outros montanhistas. Sempre sonhara conquistar minha própria via. Agora, o sonho tinha virado realidade. Não sabia se comemorava, se armava a segurança para meus dois companheiros ou se simplesmente sentava para descansar e contemplar o visual. Na afobação do momento, montei uma segurança rápida para a Bel e, assim que ela chegou, desci correndo para apanhar a câmara a tempo de fotografar o Hsu escalando (clique sobre a foto para vê-la ampliada).

Hsu na Nanica

Nós três havíamos saído do nossa acampamento com a intenção de percorrer a Travessia do Couto. Já eram umas 11h e o sol de Itatiaia brilhava forte. Pelo caminho íamos observando as rochas, em busca de alguma coisa escalável. Vez ou outra, subíamos em alguma pedra, mas o primeiro lugar que nos atraiu de verdade foi um pequeno diedro perto do lugar onde a trilha faz uma curva fechada à direita, avança algumas dezenas de metros por um vale estreito para, em seguida, virar à esquerda e galgar o pequeno planalto onde há um torre de telecomunicações, próximo ao ponto culminante da travessia. O visual do lugar é fantástico, com as faces do Pico das Agulhas Negras e da Pedra do Altar visíveis à distância.

Depois de alguma hesitação, decidimos que eu guiaria essa via. Encordei-me e escalei rapidamente os primeiros cinco metros -- um trepa-pedra fácil, 1º grau -- e cheguei à base do diedro. À minha frente, uma larga fissura horizontal me pareceu o lugar perfeito para inaugurar meu recém adquirido Camalot #4. Coloquei a proteção e, como de hábito, dei um puxão forte na costura para testar a estabilidade da colocação. "Sólida como pedra. Dá para segurar um elefante caindo", pensei. Dois metros acima, mais uma costura -- agora um nut na estreita fenda que percorre o diedro. Com dois bons pontos de proteção, senti uma agradável sensação de segurança. Era hora de começar a negociar o diedro. Posicionei o corpo para uma clássica oposição do tipo Dülfer. A rocha áspera de Itatiaia segurava as sapatilhas maravilhosamente e a fenda era quase perfeita para as mãos. Rapidamente cheguei ao final do lance. Uma última costura, por desencargo de consciência, e continuei pelo trepa-pedra final até o cume.

Nanica e Ordinária

A escolha do nome da via foi um pouco complicada. Bel e eu somos praticantes de danças de salão. Tínhamos um projeto de batizar nossas vias com o nome de ritmos dançantes -- coisas como Tango Apache ou Rock Acrobático. A presença do Hsu, que não tinha nenhuma intimidade com dança, me deixou um pouco constrangido em propor esses nomes. Como era uma via curta e fácil, ele sugeriu Nanica e Ordinária, com o que Bel e eu concordamos. Batizada a via, recolhemos o equipamento e continuamos caminhando pela trilha. Quase no ponto culminante da caminhada, a subida ao pico mais alto do Morro do Couto é feita por uma canaleta entre as pedras. À direita dela, chamou a nossa atenção um belo conjunto de fissuras que formava o desenho de um S estilizado, ou de um raio, como observou o Hsu.

Hsu na Lightning

Era uma óbvia rota rumo ao cume, aparentemente mais técnica do que a Nanica e Ordinária. Ficamos um tempão olhando para a parede. Subi em uma ponta de pedra, entalei um pé na fissura inferior e consegui colocar a primeira costura. Desci em seguida, enquanto o Hsu se preparava para guiar. No trecho inicial, ele preferiu usar a fissura apenas para colocar as ancoragens das costuras, escalando pela parede à esquerda dela. Depois, fez a travessia para a esquerda com o corpo em uma posição esquisita, quase engatinhando, e sumiu no diedro em direção ao cume. Ouvi sua voz reclamando a falta de um segundo Camalot #3 (o único que nós tínhamos estava instalado na fissura inferior). Depois, alguns gemidos -- deve estar difícil, pensei -- e, finalmente, ele apareceu no cume, fazendo sinal para que eu desarmasse a segurança (clique sobre a foto para vê-la ampliada - © Isabel Prado, 1996).

Quando chegou a minha vez, empreguei técnicas de progressão diferentes das do Hsu. Comecei escalando pela fenda, usando entaladas de punho e de pé. A uns dois metros do patamar intermediário, saí da fissura e passei a subir em diagonal para a esquerda, em agarras. A travessia que liga as duas fendas é esquisita mesmo. Como a parede acima é negativa, fica difícil encontrar uma posição minimamente elegante para o corpo. Na base da fissura superior, optei por atacá-la em oposição, técnica Dülfer. As bordas arredondadas da fenda exigiam cuidados, mas a rocha de Itatiaia mais uma vez colaborou com sua aspereza abrasiva. O desenho das fendas lembrava a figura de um raio. Por isso, Hsu sugeriu o nome Ride the Lightning, retirado de uma música da banda de rock pesado Metallica. No cume, acenamos para a Bel, que fotografava ferozmente de um patamar no outro lado da canaleta. Como já começava a anoitecer, decidimos não prosseguir pela Travessia do Couto. Em vez disso, voltamos pela trilha, cansados mas felizes, como sempre.

As Vias

Nanica e Ordinária: 3º grau, 10 metros de extensão, proteção móvel.

Ride the Lightning: 4+, 20 metros de extensão, proteção móvel.

Conquistadores: Isabel Prado, Hsu Wang Chang e Maurício Grego

Maurício Grego -- São Paulo, 24/mai/96

Climbing in Brazil
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© - O texto e a primeira foto desta página são da autoria de Maurício Grego. A segunda foto é de Isabel Prado. Seus comentários e sugestões são bem vindos. Página atualizada em 15/jan/97.