Snake Dike

Certa vez, xeretando no rec.climbing, um dos grupos de discussão da Internet dedicados ao Montanhismo, encontrei esta pergunta, feita por um dos freqüentadores: "Qual a melhor via longa de 5.7 em Yosemite?". Várias respostas vieram, mas a grande maioria convergia para uma mesma via - Snake Dike. Como seria essa tal Snake Dike? O dicionário me forneceu várias possíveis definições para a palavra dike -- dique, canal, muro ou uma fatia de rocha magmática injetada numa fissura antes de se solidificar. Este último significado, geológico, pareceu ter mais a ver com uma via de escalada em rocha. Fiquei imaginando uma via sinuosa num grande paredão vertical, com passagens expostas espetaculares (clique sobre as fotos para vê-las ampliadas).

Half Dome Meses depois, na Califórnia, quando Bel Prado e eu compramos nosso catálogo de escalada livre de Yosemite Valley, pude verificar que a Snake Dike fica na face sudoeste do Half Dome, tem sete enfiadas de corda e graduação III 5.7 R. Foi conquistada por Eric Beck, Jim Bridwell e Chris Fredericks em julho de 1965. A via termina numa rampa de aderência que conduz até o cume ("aderência classe 3, eternamente", diz o livro). A descrição do Don Reid, o autor do catálogo, é encorajadora: "Uma passagem incrível no grande monolito. Há longos trechos sem proteção mas, em geral, a via progride por um caminho bastante fácil", diz ele. A lista de material recomenda apenas um jogo de nuts. Fora isso, há alguns grampos -- uns dez numa via de 330metros.

Misty Trail

Recém-chegados a Yosemite, Bel e eu resolvemos escalar primeiro alguma via mais curta e bem protegida para nos familiarizar com a rocha e com as escaladas locais. Assim, entramos na Munginella, uma II 5.6 PG na região das Yosemite Falls. Simpática, com ótimas fendas para a colocação de proteção e muito fácil, essa via de três enfiadas de corda nos deixou mais confiantes para atacar algo maior. Alguns dias depois, subimos pela trilha ao cume do Half Dome. Caminhamos pela Misty Trail, que acompanha o rio Merced e passa por duas grandes cachoeiras, Vernal Fall e Nevada Fall. Por essa trilha, contornamos o monte Broderick e, depois, o pico Liberty Cap. Entramos na John Muir Trail, no trecho em que ela atravessa o vale Little Yosemite e segue em direção ao monte Clouds Rest. Derivamos, então, pela Half Dome Trail, que vai até o cume do monolito. Pelo caminho, encontramos manadas de veados, muito pássaros e incontáveis esquilos que sempre tentavam roubar nossa comida quando parávamos para um lanche.

A subida da parte rochosa é feita primeiro por uma escada com degraus de pedra e, depois, por dois cabos de aço que servem de corrimão numa rampa de 45º. No ponto onde começam os cabos, há um buraco cheio de luvas no chão. Cada pessoa que sobe pega um par para proteger suas mãos no trecho de cabo e o devolve na descida. No cume, encontramos um pessoal carregando cordas e outros equipamentos de escalada. Pareciam cansados, com muito suor escorrendo pela testa. "Que via vocês escalaram?", perguntei. "Snake Dike", foi a resposta. Eles me contaram que a via era fácil e divertida, mas cansativa por causa da sua extensão e da longa caminhada de aproximação. Eles haviam saído do vale lá pelas 5 da madrugada e chegado ao cume 11 horas depois, às 4 da tarde. Para mim, estava perfeito. Era exatamente o que eu procurava -- uma via fácil, longa e de visual espetacular. Marcamos a ascensão para dois dias depois.

Na noite anterior à escalada, fomos a uma palestra dada pelo Mike Corbett, um escalador local, que nos falou sobre suas aventuras nos paredões do vale. Corbett havia guiado um escalador paralítico em ascensões no Half Dome e no El Capitan. Ele nos contou que o El Capitan já foi escalado por um cego, por um senhor de mais de sessenta anos, e por um garoto de cinco anos. Contou que o recorde atual de velocidade na via The Nose, uma das mais populares, é de menos de cinco horas, e que uma dupla conseguiu escalar três vias no El Capitán num único dia. São feitos quase inacreditáveis, considerando que o El Capitán tem quase um quilômetro de parede vertical, às vezes negativa, e que a maioria das pessoas precisa de pelo menos três dias para ascendê-lo.

Escalando os Dikes

No dia seguinte, às 6:30, estacionamos nosso carro perto de Curry Village e começamos a caminhar pela estrada, ainda no escuro. Seguimos em direção a Happy Isles, onde começa a trilha. Subimos até Little Yosemite pela rota já conhecida e começamos a procurar um caminho que nos levasse ao Lost Lake, um ponto de referência importante em nossa travessia rumo à face SW do Half Dome. Depois de várias tentativas frustradas, atravessamos um trecho rochoso com vegetação esparsa e entramos num pinheiral. Descendo sempre, chegamos a uma trilha já bem perto do lago, que mais parecia um pântano tal a quantidade de plantas aquáticas. A trilha nos levou sem mais problemas a uma série de rampas rochosas, entremeadas por arbustos, já na base da grande montanha de pedra. Gastamos bem mais de uma hora para subir pelas rampas, às vezes pela rocha, às vezes agarrando-se aos arbustos que arranhavam nossas pernas e braços. O sol estava bem acima das nossas cabeças e fazia muito calor quando atingimos a base do paredão. Um casal escalava uns 50 metros acima. Gritando, perguntei que via era aquela. A resposta foi a esperada: Snake Dike. Hora de desenrolar a corda, vestir as sapatilhas e começar a escalar.

A primeira enfiada de corda não tem nenhum grampo. Nela, está um dos lances-chave da via -- graduado em 5.7 e sem proteção, dizia o catálogo. Comecei a subir por um sistema de fendas bastante fácil. De tempos em tempos, colocava alguma costura por desencargo de consciência. Trinta metros acima, costurei num último Camalot #0.75 e entrei no trecho crítico, uma passagem de aderência de uns 15 metros em diagonal para a esquerda. Se eu caísse, a queda seria longa, mas não havia tempo para ficar pensando nessas coisas. Era hora de me concentrar, respirar fundo e ir em frente. Depois da passagem delicada, uma fenda fácil de alguns poucos metros me levou até o patamar onde, com alguns nuts, montei a primeira parada. Isabel escalou esse trecho sem problemas. Andei uns cinco metros até o final do patamar, à direita, e coloquei um Camalot #1 para direcionamento da corda. Saí escalando, então, direto para cima, por uma bonita fenda em forma de arco de uns cinco centímetros de largura. Subi uns 15 metros por essa fenda, costurando de vez em quando, até que chegou a hora de abandoná-la e sair para a direita, por uma parede com boas agarras mas sem qualquer possibilidade de proteção.

Bel na Snake Uns quinze metros adiante, encontrei um grampo. Mais quinze metros e cheguei à parada, com dois grampos. Estávamos, agora, numa região da parede onde se encontram vários dikes, linhas salientes traçadas na superfície da grande pedra. Essas linhas lembram um pouco a Escadinha de Jacó, no Pão de Açúcar carioca e outras formações semelhantes encontradas nas rochas do Rio de Janeiro e de Niterói. Com boas agarras, os dikes do Half Dome são caminhos naturais no paredão. Da segunda parada, comum a várias vias, a Snake Dike segue para a esquerda, um trecho que inclui o segundo lance-chave. Como o primeiro, esse lance-chave é uma passagem de aderência em diagonal para a esquerda. No entanto, existe um grampo bem no meio dele, o que faz com que ele seja bem menos emocionante do que o primeiro. Depois, um trecho horizontal para a esquerda, sem proteção mas com boas agarras, leva ao esperado dique da cobra, o Snake Dike, nosso caminho parede acima por centenas de metros.

Class 3 Slabs Forever

Escalamos três enfiadas de corda nesse dique e, no final, ultrapassamos o casal de americanos que ia à nossa frente. O caminho é bem fácil. O guia só não pode perder a calma, já que há duas enfiadas de corda inteira (50 metros) sem nenhum tipo de proteção. Em geral, há grampos apenas nas paradas, onde eles são instalados aos pares. Na sexta enfiada de corda, o dique termina. A escalada passa a ser feita pela parede, com agarras e aderência, mas é sempre fácil. Nas duas últimas enfiadas, onde não há grampos, algumas fendas providenciais proporcionam bons locais de parada e algumas poucas costuras. No final da sétima enfiada, enrolamos nossa corda e seguimos caminhando para o cume -- aderência classe 3, eternamente, como dizia o catálogo.

Eu e Bel Ficamos um bom tempo no cume, apreciando o visual, fotografando, bebendo e comendo o que ainda restava dos nossos alimentos e água. Começamos a descer às 18:30, 12 horas depois de termos iniciado a caminhada em Happy Isles. Desescalamos tão rapidamente quanto possível, pela mesma via de cabos de aço por onde havíamos subido dois dias antes. Mais abaixo, continuamos pela trilha já conhecida em direção a Little Yosemite. Quase chegando a Vernal Fall, encontramos uma família perdida, tentando achar o caminho para o vale. Eram quatro pessoas com apenas uma lanterna e, ao que parecia, nenhuma prática de trilha. Estavam apavorados, de modo que Bel e eu resolvemos acompanhá-los. Moravam numa cidade próxima e, mesmo assim, tinham ido pouquíssimas vezes a Yosemite. Muitos turistas fazem a subida ao Half Dome pela trilha. Como é uma caminhada longa (para um dia), acabam descendo à noite.

The Visor Snake Dike é uma via bem fácil, que pode decepcionar escaladores em busca de lances mais técnicos e exigentes. Mas o visual é nota 10. Além disso, é bem mais agradável subir por ela e descer pela trilha do que subir e descer pela trilha. Quem quiser um caminho mais exigente rumo ao cume do Half Dome tem uma grande variedade de outras opções. Entre elas, está a via normal da face NW, muito transitada e considerada uma das 50 melhores escaladas clássicas da América do Norte (graduação 5.12 ou VI 5.10 C2, dependendo do estilo de escalada adotado - extrem free ou big wall). Quando estávamos lá, Bel e eu vimos várias cordadas nessa imensa parede. Uma delas estava quase chegando ao cume, já em seu último dia de ascensão (a escalada demora, em geral, de 3 a 6 dias). Abaixo deles, avistávamos o famoso Thank God Ledge, o estreito e longo patamar que é percorrido quase inteiro pela via. Acima, The Visor, o espetacular negativo que marca o ponto mais alto do monolito. Qualquer que seja o caminho escolhido, uma escalada no Half Dome é um programa imperdível para quem vai a Yosemite.

Maurício Grego -- São Paulo, 1o de Fevereiro de 1997

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© - O texto e as fotos desta página são da autoria de Maurício Grego. Seus comentários e sugestões são bem vindos. Página atualizada em 12/ago/97.