Poemas e Poesias

Anotações da Vida
(Para o ator Gerson Brenner)
H. Reis

A vida te abriu os olhos,
Te deu a luz das estrelas,
O amor infinito que aquece o teu coração.
O teu Deus te deu o dom,
O tom, a sorte de adivinhar os mares,
De aproximar os ventos, lugares
Mesmo entre as ilhas mais distantes...
Tu tens um lugar dentro de ti
Que abriga a luz, que faz nascer um sol
Em cada sorriso que se abre em tua boca...
Mas, quem saberia desenhar os arco-íris
Se não falasses de amor, ternura,
Se não alimentasses esta esperança
que te adorna a fronte? ... em tuas mãos
há um sol resplandescente:
É quando tu as entregas como, um dia,
O crucificado do Gólgota no dia de sua morte...
...E se o teu Deus não te deu braços
Que em cada laço de amor que vais tecendo
Tu vás estreitando mundos,
Espaços entre nuvens, bater de asas...
Que se abriguem nas montanhas, vales,
Nos floridos prados de tua imaginação
A perene flor de todos os evangelhos
Que nos converte na hora das bem - aventuranças...
Se o teu deus não te deu asas
Tu as irás fazendo do teu nada,
Um alado sonho que estreita todos os limites...
Se teu deus não teu deu a voz
Que se façam coros, harmonias
Em teus olhos que faíscam de amor profundo...
E neste mundo casual envolto em silêncio
Vê-se o fundo da tua alma
Como água pura, como orvalho,
Como um cristal partido
Que inunda o deserto de nossas incertezas
Da intensa luz que nasce da fraternidade...
Se o teu deus não te deixou dançar
À vista de todos o bailado que acalentas,
que tu vás por sobre as procelas da vida,
recompondo abismos de átomos
na alquimia frágil dos teus gestos,
o sopro suave, a vibração indecifrável
Dos que voam além de vãos desejos...
Que se abram em tuas mãos,
Que se agitem em teus braços
Com o frenesi dos dançarinos em dia de espetáculo
Um doce querer de pássaro,
Um doce mergulhar de peixes,
Um doce enfeitar de flores,
Um cesto farto de frutos...
A festejar o domingo dos que conquistaram
A suprema graça de terem transcendido
Os efêmeros muros da sua própria dor...
Tu que não tiveste o gesto, a voz, o passo,
O compasso dos que se imaginam normais...
Encontrarás no caos de nossas infinitas limitações
Entre o deus que há em cada homem
Um momento de céu, eternidade
Que somente o amor pode fazer
Um pouco do paraíso que se abriga
No sangrado coração de cada ser
Que pode replantar canteiros de boa vontade...
Haverá de florir ainda sobre a terra
Tantos sonhos ocultos, mesmo naqueles
Que se embrutecem... e miram indiferentes
Os teus sonhos...
"...Como nas manhãs de primavera..."
...Hás de trazer sorrisos, como aqueles que nascem
no rosto dos que abraçaram a sua dor...
E dela retiram uma força indestrutível,
A incompreensível força que torna
suave as suas faces, doce o seu sorriso...
E como é belo o rosto de quem,
Invadido pelo amor mais puro
desvenda as armadilhas da própria vida
Dando as suas mãos aos que lutam...
... diárias anotações que te ensinam
e com eles se tornam imensos, incomparáveis
a inaugurar estrelas que se perdem na imensidão...
sinais luminosos que nos vão mostrando
o quanto somos pequenos e grandes a um só tempo...


Como em novas primaveras...
H. Reis
Itaberaba, 23 de setembro de 1999

... se quando voltares

como aquela ânsia guardada

numa flor esquecida em meu pensamento,

...estarei só, como um dia, como a distância,

esperando a chuva, o próprio tempo

embaixo da brisa de tantas manhãs sonhadas...

... de ausência em ausência, tu és como a flor

que, surpreendida, oculta-se naquela hora...

a hora que, ainda morta, pensa-te

a enfeitar a noite dos alpendres...

a trêmula mão a dizer que "...vou-me embora..."

...de tantos desejos,

deixados à margem de um rio...

correnteza de gemidos, silêncios,

deslizar de murmúrios entre pedras,

e tudo que nos cerca, todavia,

vibra e canta, canta... num abraço

tão envolvente, assim tão cheio de ternura

que tudo quase para, ... num murmúrio,

como se criara outros mundos...

... o seu constante correr,

o resoluto ir-se embora de repente,

o seu calmo deslizar pra dentro desses mares...

e passear nestes lugares, ímpares momentos,

doces sementes de te reencontrar...

é como se plantar do nada,

a calma que envolveu aquela amante

num momento cego, cambaleante

como o salto frágil de um inseto

que faz florir a sonhada primavera...

tu guardarás sempre, o dia,

a noite que se cumpre como um rubro sabor

de vinho em tardes de festa...

tu guardarás sempre dentro de ti...

os cálidos momentos de um beijo único,

o sedento instante em que a vida

muitas vezes se faria fruto

... tu guardarás, eu sei, em inesperada estação

o sopro de vida que tu concebeste em dor e festa,

o prazer mais completo, o mais profundo sentimento

que pode um amante sentir...

...e o amargo de não te haver comigo

segue hoje doendo ainda,

como o olhar de quem caminha sedento

a consumir pela estrada ardente

o último gole do cantil... saber-se embora

enamorando o vento, deglutindo a sorte

... perder-se, encontrar-se, destinar- se

ao eterno, como se pensara um deus,

fazer da morte a vida, e da vida a morte...

... o doce momento amargo

que o embriaga, quando se avizinham

o horizonte, o prado verde,

a montanha aconchegante que vem

banhar-se nas nascentes, sombra e claridade

como a primeira amante que segreda em luas

a inaugurada manhã de quem amou um dia

... e nunca mais, em tuas mãos transfiguradas

jamais se vira tantos tempos, campos

e não faltara ao coração chuva e flor

como em novas primaveras...


O dom do tempo
H. Reis
Sítio São João/Salvador – março de 1998

( As sete cantigas de um amor perdido)
I 
(... de lavrar a terra, remover
a mínima terra, no silêncio do teu canto...
resta a hora conquistada, 
o contínuo renascer do ontem
que se reserva, como o feno,
no recriar do mundo...
... de fazer chegar invernos,
outonos, desencantos, novos sonhos...
acreditar que num outro dia, 
um ventre fecundado se espanta
com a própria luz que em pedra
e água serpenteou riachos
lavrando o cascalho das estradas...
terás no galope do tempo o vento
que abre as suas douradas crinas
nos ombros mansos dos dias, 
a cavalgar desejos
nas asas de um bem querer...)
II
...Quando se abrem as manhãs
Tu estás sorrindo, abraçando
O novo dia que chega
no lombo de um cavalo branco...
O teu rosto afagado 
pelos ventos que trazem 
lembranças de um amor perdido
E acariciam os teus cabelos...
... hora de descer os vales,
percorrer campinas, recolher
os horizontes... quando chegam as manhãs,
queres viver, queres
multiplicar a vida ainda que tenhas
de terminar o dia
sem nada entre as mãos...
III
Quando chegam as manhãs
tu estás celebrando com os pássaros
a vertigem de um sempre voar
entre as nuvens... tens o corpo 
perfumado pelo azul-distância
que colore as flores dos campos
que nascem todos os dias 
e adornam os caminhos
por onde passas...Não haveria
nenhum pássaro
pousado em tua janela se não tivesses
o alado sentimento de quem 
sempre desejou
que o vento corresse livre
por entre montanhas
e a copa das palmeiras,
enchendo de cartas recebidas
as noites dos amantes,
bandeirolas de saudade em tempo de festa...
Quando chegam as manhãs
Tu sentes a alegria dos animais
Que sopram o calor da vida
Pelas narinas quentes do viver...
Tu vais colhendo os raios de luz
Que douram o dorso das abóboras,
fazem estalar as vagens 
das leucenas e banham
o verde dos frutos dos limoeiros...
... é tua crença, teu enlevo
o teu deus de tudo, o teu altar!
IV
Quando chegam as manhãs
Tu abraças teus irmãos e renovas
Em teu coração
o mandamento maior do amor
que sustenta a vida...
Quando chegam as manhãs
Tu beijas os teus filhos e a tua amada
e renovas a tua crença
de que nada se acaba... Antes
se perpetua em cada gesto
Que guarda o mistério de viver ...
Tu conservas em tuas mãos,
como um encanto, a dita
de haveres descoberto 
que um sorriso ...vem do nada,
vem do teu querer:
É como quando chovia
e adivinhavas frutos;
Quando era estio e tu acreditavas
Em amêndoas guardadas
em teus pensamentos 
como um menino que dorme
abraçando a tarde...... como era 
bom ver ovelhas remoendo,
regurgitando o sumo dos tempos 
na garganta limpa de quem
crê na inocência...e cumpre,
silenciosamente, o destino dos prados!
Há rios em tuas mãos...
Há tantos sonhos e tantas primaveras...
Em teus pensamentos,
nos poros do teu sentimento
Há uma criança sempre a te esperar
Sempre, toda vez que o sol retorne...
V
É tua a estrela que encontraste,
É dos teus olhos este brilho
Que vai achando a vida
Cada vez que nas montanhas
Se aninha um musgo, 
Uma gota de orvalho da manhã...
É tão lindo quando cantar
É simples ofício de tecer vontades;
É tão lindo quando se vai
cumprindo a vida como um pássaro
que voa no céu,
Como uma pétala que compõe
A flor da indecifrável mansidão
De uma ovelha 
que passeia nas varandas
... quando chegam as manhãs...

 

 

VI

 

O coração tem medo 
de espantar a vida, quando 
escutas que te chamam...
...era , porém, o dia, aquela 
hora cortada em que nasceste 
de novo em sangue e sobressalto...
nascer de novo, renovar as tuas crenças,
esquecer o peso inútil 
de sentimentos antigos... as tuas mãos 
encheram cestos de esperança,
tua amizade trouxe o sereno 
da manhã, alegria de peixe
em correnteza... dançaste, então, 
em baixo da chuva, sentias
o cheiro de roçadas novas,
percorrias o milharal 
em noite de fogueira, ficavas contando 
pirilampos na invernada, escutavas
aboios , conversavas com os tropeiros,
viajavas a conduzir boiadas, 
ajuntando o nada,
debulhando o ouro 
da cantiga dos que partem,
cozinhavas na beira das estradas
o meio-dia incerto de teus ancestrais...
a vida tomou-te pelas mãos, andaste,
a montar donzelas
na garupa de alazões, tiveste os amores
das esposas infiéis, ias vendo 
revoada de quero-queros adornando lagos,
adivinhando despedidas...
deixaste tantas saudades,
dançaste nos bailes,
guardaste tantos beijos,
noites cálidas de amor fugaz...
a flor da juventude se abriu 
e a terás contigo como um renovo de videira,
a perscrutar os vinhos,
canções de plenilúnio, primeira noite...
cantigas de um amor perdido...
VII
... e a felicidade te custara tanto
que toda vez que ouves este canto
lembra-te que a vida se leva na algibeira
como bolas-de-gude para encontrar pessoas
a caminho das festas de domingo...
tens agora em tuas mãos 
um pouco da farinha que te deram 
quando pareceu-te não ter forças p’ra seguir...
...foi assim aquele tempo do medo,
do coração perplexo que chega
aos cinqüenta e hesita
entre um cair de neve e rugas... 
rezes mansas no terreiro
a ruminar as horas,
pousando sobre o lençol dos anos...
... quando chegam as manhãs
escreves no tempo
a direção das velas, quando
um lugar distante te acolher sorrindo
e já nem souberes que um aboiador partiu...
e o cantar se foi contigo numa noite 
em que o luar era
a tua própria ausência... de novo
a vida recriada em sonhos
...virá contigo, eu sei,
na manhã que não termina.
E tanto nasceu deste plantar
Que a vida será sempre assim
Quando se abrem as manhãs...

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