Como em
novas primaveras...
H. Reis
Itaberaba, 23 de
setembro de 1999
...
se quando voltares
como
aquela ânsia guardada
numa
flor esquecida em meu pensamento,
...estarei
só, como um dia, como a distância,
esperando
a chuva, o próprio tempo
embaixo
da brisa de tantas manhãs sonhadas...
...
de ausência em ausência, tu és como a flor
que,
surpreendida, oculta-se naquela hora...
a
hora que, ainda morta, pensa-te
a
enfeitar a noite dos alpendres...
a
trêmula mão a dizer que "...vou-me
embora..."
...de
tantos desejos,
deixados
à margem de um rio...
correnteza
de gemidos, silêncios,
deslizar
de murmúrios entre pedras,
e
tudo que nos cerca, todavia,
vibra
e canta, canta... num abraço
tão
envolvente, assim tão cheio de ternura
que
tudo quase para, ... num murmúrio,
como
se criara outros mundos...
...
o seu constante correr,
o
resoluto ir-se embora de repente,
o
seu calmo deslizar pra dentro desses mares...
e
passear nestes lugares, ímpares momentos,
doces
sementes de te reencontrar...
é
como se plantar do nada,
a
calma que envolveu aquela amante
num
momento cego, cambaleante
como
o salto frágil de um inseto
que
faz florir a sonhada primavera...
tu
guardarás sempre, o dia,
a
noite que se cumpre como um rubro sabor
de
vinho em tardes de festa...
tu
guardarás sempre dentro de ti...
os
cálidos momentos de um beijo único,
o
sedento instante em que a vida
muitas
vezes se faria fruto
...
tu guardarás, eu sei, em inesperada estação
o
sopro de vida que tu concebeste em dor e festa,
o
prazer mais completo, o mais profundo sentimento
que
pode um amante sentir...
...e
o amargo de não te haver comigo
segue
hoje doendo ainda,
como
o olhar de quem caminha sedento
a
consumir pela estrada ardente
o
último gole do cantil... saber-se embora
enamorando
o vento, deglutindo a sorte
...
perder-se, encontrar-se, destinar- se
ao
eterno, como se pensara um deus,
fazer
da morte a vida, e da vida a morte...
...
o doce momento amargo
que
o embriaga, quando se avizinham
o
horizonte, o prado verde,
a
montanha aconchegante que vem
banhar-se
nas nascentes, sombra e claridade
como
a primeira amante que segreda em luas
a
inaugurada manhã de quem amou um dia
...
e nunca mais, em tuas mãos transfiguradas
jamais
se vira tantos tempos, campos
e
não faltara ao coração chuva e flor
como
em novas primaveras...
O
dom do tempo
H. Reis
Sítio São
João/Salvador março de 1998
( As sete cantigas de um amor perdido)
I
(... de lavrar a terra, remover
a mínima terra, no silêncio do teu canto...
resta a hora conquistada,
o contínuo renascer do ontem
que se reserva, como o feno,
no recriar do mundo...
... de fazer chegar invernos,
outonos, desencantos, novos sonhos...
acreditar que num outro dia,
um ventre fecundado se espanta
com a própria luz que em pedra
e água serpenteou riachos
lavrando o cascalho das estradas...
terás no galope do tempo o vento
que abre as suas douradas crinas
nos ombros mansos dos dias,
a cavalgar desejos
nas asas de um bem querer...)
II
...Quando se abrem as manhãs
Tu estás sorrindo, abraçando
O novo dia que chega
no lombo de um cavalo branco...
O teu rosto afagado
pelos ventos que trazem
lembranças de um amor perdido
E acariciam os teus cabelos...
... hora de descer os vales,
percorrer campinas, recolher
os horizontes... quando chegam as manhãs,
queres viver, queres
multiplicar a vida ainda que tenhas
de terminar o dia
sem nada entre as mãos...
III
Quando chegam as manhãs
tu estás celebrando com os pássaros
a vertigem de um sempre voar
entre as nuvens... tens o corpo
perfumado pelo azul-distância
que colore as flores dos campos
que nascem todos os dias
e adornam os caminhos
por onde passas...Não haveria
nenhum pássaro
pousado em tua janela se não tivesses
o alado sentimento de quem
sempre desejou
que o vento corresse livre
por entre montanhas
e a copa das palmeiras,
enchendo de cartas recebidas
as noites dos amantes,
bandeirolas de saudade em tempo de festa...
Quando chegam as manhãs
Tu sentes a alegria dos animais
Que sopram o calor da vida
Pelas narinas quentes do viver...
Tu vais colhendo os raios de luz
Que douram o dorso das abóboras,
fazem estalar as vagens
das leucenas e banham
o verde dos frutos dos limoeiros...
... é tua crença, teu enlevo
o teu deus de tudo, o teu altar!
IV
Quando chegam as manhãs
Tu abraças teus irmãos e renovas
Em teu coração
o mandamento maior do amor
que sustenta a vida...
Quando chegam as manhãs
Tu beijas os teus filhos e a tua amada
e renovas a tua crença
de que nada se acaba... Antes
se perpetua em cada gesto
Que guarda o mistério de viver ...
Tu conservas em tuas mãos,
como um encanto, a dita
de haveres descoberto
que um sorriso ...vem do nada,
vem do teu querer:
É como quando chovia
e adivinhavas frutos;
Quando era estio e tu acreditavas
Em amêndoas guardadas
em teus pensamentos
como um menino que dorme
abraçando a tarde...... como era
bom ver ovelhas remoendo,
regurgitando o sumo dos tempos
na garganta limpa de quem
crê na inocência...e cumpre,
silenciosamente, o destino dos prados!
Há rios em tuas mãos...
Há tantos sonhos e tantas primaveras...
Em teus pensamentos,
nos poros do teu sentimento
Há uma criança sempre a te esperar
Sempre, toda vez que o sol retorne...
V
É tua a estrela que encontraste,
É dos teus olhos este brilho
Que vai achando a vida
Cada vez que nas montanhas
Se aninha um musgo,
Uma gota de orvalho da manhã...
É tão lindo quando cantar
É simples ofício de tecer vontades;
É tão lindo quando se vai
cumprindo a vida como um pássaro
que voa no céu,
Como uma pétala que compõe
A flor da indecifrável mansidão
De uma ovelha
que passeia nas varandas
... quando chegam as manhãs...
VI
O coração tem medo
de espantar a vida, quando
escutas que te chamam...
...era , porém, o dia, aquela
hora cortada em que nasceste
de novo em sangue e sobressalto...
nascer de novo, renovar as tuas crenças,
esquecer o peso inútil
de sentimentos antigos... as tuas mãos
encheram cestos de esperança,
tua amizade trouxe o sereno
da manhã, alegria de peixe
em correnteza... dançaste, então,
em baixo da chuva, sentias
o cheiro de roçadas novas,
percorrias o milharal
em noite de fogueira, ficavas contando
pirilampos na invernada, escutavas
aboios , conversavas com os tropeiros,
viajavas a conduzir boiadas,
ajuntando o nada,
debulhando o ouro
da cantiga dos que partem,
cozinhavas na beira das estradas
o meio-dia incerto de teus ancestrais...
a vida tomou-te pelas mãos, andaste,
a montar donzelas
na garupa de alazões, tiveste os amores
das esposas infiéis, ias vendo
revoada de quero-queros adornando lagos,
adivinhando despedidas...
deixaste tantas saudades,
dançaste nos bailes,
guardaste tantos beijos,
noites cálidas de amor fugaz...
a flor da juventude se abriu
e a terás contigo como um renovo de videira,
a perscrutar os vinhos,
canções de plenilúnio, primeira noite...
cantigas de um amor perdido...
VII
... e a felicidade te custara tanto
que toda vez que ouves este canto
lembra-te que a vida se leva na algibeira
como bolas-de-gude para encontrar pessoas
a caminho das festas de domingo...
tens agora em tuas mãos
um pouco da farinha que te deram
quando pareceu-te não ter forças pra seguir...
...foi assim aquele tempo do medo,
do coração perplexo que chega
aos cinqüenta e hesita
entre um cair de neve e rugas...
rezes mansas no terreiro
a ruminar as horas,
pousando sobre o lençol dos anos...
... quando chegam as manhãs
escreves no tempo
a direção das velas, quando
um lugar distante te acolher sorrindo
e já nem souberes que um aboiador partiu...
e o cantar se foi contigo numa noite
em que o luar era
a tua própria ausência... de novo
a vida recriada em sonhos
...virá contigo, eu sei,
na manhã que não termina.
E tanto nasceu deste plantar
Que a vida será sempre assim
Quando se abrem as manhãs...