Tempos Modernos - 03/10/98
por: Marcelo
Hashimoto
Começou com
alguns personagens de TV que hoje em dia mal são lembrados. Flash Gordon. O Sombra. Os
pioneiros do gênero dos chamados suer-heróis. Personagens criados talvez para aumentar a
fé na humanidade, ou pelo menos para disfarçar os problemas da mesma. Seja como for,
tais personagens logo se tornaram mais famosos e imitados que muitos artistas de cinema.
Afinal, quem não gostaria de viajar pelo espaço com uma pistola laser ou ficar
invisível?
Sim... com personagens e histórias que primavam mais pela fantasia do que pela realidade,
esses super-heróis viajavam pelo espaço enfrentando monstros de borracha ou combatiam o
crime em cidades paradisíacas onde tudo acabava bem. E todos torciam por eles, mesmo
sabendo se tratar de representação. A vida dos heróis era a vida de seus fãs.
Não demorou para que aparecesse outros heróis que seriam lendas mais tarde. Um deles
não tinha aparatos futurísticos ou roupas especiais, e sim poderes saídos de seu
próprio corpo como visão de calor, de raio X, super força e capacidade de voar. O
Super-Homem, por mais que fosse diferente em poderes, tinha ideais iguais aos dos
primeiros heróis: combater um bandido aqui, salvar o gatinho da árvore ali, prender pela
décima vez o arqui-inimigo lá, ajudar a velhinha a atravessar a rua acolá. Ainda assim
um super-herói. Ainda assim destinado a se tornar ídolo.
Com ele veio todo o conceito de histórias em quadrinhos, onde toda a ação não tinha
limites, pois não havia mais o problema de "tal efeito não poder ser filmado".
Explosões, prédios caindo, carros sendo levantados e esmagados contra uma rocha. Tudo
era possível. Mas ainda só havia super-heróis, digamos, comuns. O próprio Super-Homem
sempre respeitava as leis, não matava (pois isso "o tornaria igual à aqueles que
combatia") e seu alter-ego nunca estacionava em local proibido. Em suma, um cara
certinho.
Então a criatividade continuou. Surgiu outro herói. Um herói que só agia de noite,
não tinha superpoderes e fazia o que fazia por causa de um trauma e um juramento em sua
infância. Batman revolucionou os quadrinhos como o oposto completo do Super-Homem. Sem
uma superaudição, o melhor método de Batman para obter informações era espancar
marginais em becos na mais podre das cidades.
Novas editoras, novos heróis (e equipes) surgiram. O limite não existia mais. O conceito
de super-herói aos poucos foi mudando. Surgiram heróis que matavam. Heróis que
torturavam. Heróis que aleijavam. Equipes tinham divergências que variavam desde
liderança até mortes nas missões. Um herói era caçado pela polícia e pelo exército
por ser considerado "ameaça pública" enquanto outro pensava em como pagar o
aluguel do mês ao mesmo tempo em que jogava teia num ladrão de bolsa.
A fantasia foi cada vez deixada mais de lado. E o mundo perfeito foi desmoronando. A
realidade agora era a meta dos artistas e roteiristas. Era utilizada qualquer oportunidade
que surgisse para um personagem, principal ou secundário, morrer, uma equipe se dissolver
ou um vilão vencer. Mas o modelo para as histórias atuais já estava pronto. O que nos
leva a Spawn.
O que Spawn tem de diferente dos antigos heróis? Ou talvez seja melhor perguntar o que
ele tem de igual. Afinal, comparando-o com Super-Homem e outros, temos o que Todd
McFarlane sempre quis que Spawn fosse: igual a todos e ao mesmo tempo a nenhum herói.
Começando pela origem: já houve algum herói tolo o suficiente para fazer um pacto com o
diabo? Já, o Motoqueiro Fantasma é um deles. Mas Al Simmons é diferente: além de fazer
um pacto com o pior dos demônios, não foi ao estilo de "dar a alma em troca de
algo". Mas Simmons simplesmente se comprometeu a servir o diabo para sempre apenas
para ver sua esposa mais uma vez. Belo pacto. Não é preciso ser nenhum Malebólgia para
saber quem leva vantagem (absurda) nisso.
Aliás, o próprio tema religioso era algo que poucos roteiristas ousariam mencionar
alguns anos atrás. É incrível o jeito como Spawn mostra a hipocrisia do Céu e o humor
do Inferno num estilo meio Gil Vicente. Al Simmons, em vida era ateu. Quando morreu, foi
pro Inferno e é atualmente um soldado do Inferno em treinamento. Quer algo, digamos,
pior?
Uma pequena nota: estou usando Spawn como exemplo, mas muitas das caracterísicas que
estou colocando são aplicadas à maioria das revistas atualmente.
O que Spawn faz quando encontra um estuprador? Mata. O que ele fez com Maldição?
Mutilou. O que aconteceu com Tiffany? Devorada viva. E isso já se tornou algo comum na
revista. São os tempos modernos, que permitem mostrar coisas que eram proibidas
antigamente. Se antes o herói usava um uniforme perfeito, o anti-herói precisa usar um
uniforme com quem luta pelo controle do corpo. Se antes o que chamava a atenção era
raios laser, hoje o poder é magia infernal saída dos olhos.
É por isso que é tão difícil para os antigos fãs de Flash Gordon e Batman gostarem de
Spawn. São outra geração, onde a graça estava na fantasia, nos absurdos ou nos
argumentos bem escritos. Em suma, nos quadrinhos. É difícil se adpatar ao modo como as
revistas em quadrinhos se tornaram um reflexo do mundo atual, pois antes eram um modo de
se fugir dele.