O ataque careca


Esses grupos são perigosos porque defendem idéias adormecidas na sociedade

TULIO KAHN

(Jornal "Folha de São Paulo", 14/02/2000)

O episódio recente do assassinato do adestrador de cães Edson Neris da Silva em plena praça da República por um grupo de carecas, somado às agressões contra imigrantes marroquinos na Espanha e à eleição do Partido da Liberdade na Áustria, despertou novamente a atenção da sociedade para a questão dos "incidentes de ódio".

As discussões durante a semana passada foram travadas muito em torno de aspectos até certo ponto secundários, como as diferenças entre punks, skinheads e carecas, o que vestem e que músicas ouvem, que locais frequentam ou qual o perfil dos seus integrantes, deixando de lado a questão mais crucial: qual é afinal o perigo que a existência desses grupos representa para a sociedade brasileira?

Desde as ameaças, os tiros e as inscrições antinordestinas na Rádio Atual, em 1992, as ações desses grupos vêm sendo monitoradas pela imprensa e pelas autoridades, e ora uma, ora outra facção tem sido apresentada como responsável por pichações difamatórias, depredações, ameaças a lideranças de minorias, difusão de idéias racistas, homofóbicas, separatistas e anti-semitas por meio de panfletos, fanzines ou pela Internet. Também foram responsabilizadas pelo envolvimento em incidentes mais graves e raros, como o envio de bombas caseiras a instituições como a Anistia, estupros, agressões físicas e assassinatos.

A morte de Neris da Silva, atacado porque "parecia homossexual", foi, segundo um levantamento feito na imprensa desde 1992, o nono homicídio que pode ser atribuído aos grupos de extrema direita. Muitos outros "inimigos" foram surrados seguindo o mesmo padrão: ataques de muitos contra poucos indefesos, escolhidos aleatoriamente pelo simples fato de ser negros, nordestinos, gays, punks ou judeus.

Mas, mais que um perigo físico para as minorias -estatisticamente baixo num país onde ocorrem 37 mil homicídios dolosos por ano e um homossexual é assassinado a cada dois dias-, o perigo representado por esses grupos é de outra natureza, mais simbólica.

Em primeiro lugar, é preciso ser cauteloso com aqueles que se apresentam como herdeiros de doutrinas que no passado foram responsáveis pelo sofrimento e pela morte de milhões de pessoas. Mas, acima de tudo, esses grupos são perigosos porque defendem bandeiras e idéias que se encontram adormecidas na sociedade, ainda hoje, mesmo que em versões mais moderadas. Idéias que não se restringem a alguns poucos extremistas e são mais difundidas do que seria desejável.

Conheço bons cidadãos, que não se julgam racistas nem de extrema direita, tampouco andam de cabeças raspadas, que compartilham em algum grau noções do tipo "o Sudeste sustenta o resto do país", "nossas prisões estão cheias de negros e nordestinos", "os gays são os responsáveis pela epidemia da Aids"; que xingam os demais de "baianos" e afirmam que jamais votariam numa nordestina ou num negro para a prefeitura.

São cidadãos que não calçam coturnos, mas que rejeitariam uma instituição de aidéticos ou uma unidade da Febem perto de suas casas. Não vestem calças camufladas, mas apoiariam restrições ao uso dos serviços públicos por migrantes e concordam veladamente que ônibus vindos do Nordeste sejam desviados para outras cidades. Não escutam música ska, mas gostariam que os mendigos fossem enviados para algum lugar remoto. Publicam anúncios pedindo "pessoas de boa aparência" e consideram o elevador de serviço mais adequado para algumas categorias de pessoas.

São versões apenas um pouco menos radicais do que as presentes no credo de vários desses grupos que tanto vilipendiamos. É claro que há diferença entre esses comportamentos e espancar alguém até a morte. Mas a diferença é frequentemente apenas de grau.

Restrições aos imigrantes fazem parte do programa do Partido da Liberdade, votado por nada menos que 27% dos austríacos nas últimas eleições, em parte pela fadiga da população com os partidos tradicionais, algo que ocorre também entre o eleitorado brasileiro -um eleitorado que já se revelou mais de uma vez disposto a votar em candidaturas apresentadas como novidades ou anti-sistema.

A vinculação dos marroquinos com a criminalidade, que foi o estopim dos incidentes de ódio na Espanha, é o mesmo tipo de vinculação que se faz em São Paulo com negros e nordestinos, não obstante a população carcerária ser predominantemente paulista e branca. Fenômenos desse tipo estão longe de estar mortos, mesmo na civilizada Europa, que mais sofreu com o fascismo e onde a crise social é menor que aqui.

O perigo que a existência de gangues juvenis como carecas e skinheads nos coloca não está tanto nas ações episódicas de violência contra minorias que realizam, mas no fato de que elas tocam em temas e questões malresolvidas em nossa sociedade, ocultadas pela falácia da democracia racial brasileira.


Tulio Kahn, 34, é sociólogo, doutor em ciência política pela USP e autor de "Ensaios sobre Racismo -manifestações modernas do preconceito na sociedade brasileira" (ed. Conjuntura)