Crise de valores leva a classe média ao crime, diz antropólogo
Reportagem de Mário Magalhães
(Jornal "Folha de São Paulo", 21 de fevereiro de 2000)
Uma crise de valores contribui
para a participação de jovens de
classe média em quadrilhas do
crime organizado e em episódios
marcados pela violência.
Essa é a opinião do antropólogo
Gilberto Velho, 54, professor-titular do Museu Nacional (instituição da Universidade Federal do
Rio de Janeiro) que, nas últimas
três décadas, fez estudos sobre o
que chama de camadas médias.
Nas últimas três semanas, três
fatos fizeram a classe média carioca se perguntar se o perigo não está mais perto do que imagina.
Primeiro, F.B., um garoto de 17
anos, educado em tradicional colégio alemão, foi assassinado com
mais cinco jovens. Local: um
morro da zona sul, para onde se
mudara a fim de traficar drogas.
Depois, Maurício Chaves da Silveira, o Mauricinho Botafogo, 25,
foi preso sob acusação de participar de um bando dedicado a assaltos a apartamentos de vários
Estados. Filho do dono de uma
agência de turismo e câmbio do
Rio, já cumprira um ano de prisão
por assalto em Blumenau (SC).
Por último, o lutador de jiu-jitsu
Ryan Gracie, 25, foi apontado como pivô de uma briga numa casa
noturna de classe média-alta. Um
homem foi ferido no tórax por
uma navalha ou canivete.
Casos como esses criaram a sensação de que nunca o crime foi tão
tentador a jovens de classe média.
Dados parciais e obtidos com
critérios pouco definidos da Justiça sugerem que há mais gente de
classe média no crime, mas os levantamentos são inconclusos.
Pesquisa da Secretaria de Estado da Justiça do Rio constata que
a pobreza não é fator determinante da criminalidade.
Segundo os dados, 81% dos presos de 18 a 24 anos no sistema penitenciário estadual tiveram o
sustento de suas casas assegurado
pelo pai, a mãe ou ambos.
De todo modo, os pobres continuam sendo as maiores vítimas
da violência, como afirmou Gilberto Velho na entrevista à Folha.
Folha - Como analisa a pesquisa da Secretaria da Justiça?
Gilberto Velho - Não foi surpresa. A variável pobreza é muito importante na construção do campo
propício ao desenvolvimento da
criminalidade, mas não a única. É
um preconceito grande imaginar
que a pessoa pobre é uma criminosa em potencial.
Folha - O motivo mais citado
por condenados para aderir à
marginalidade foi o desejo de
consumir. Como o consumismo
se manifesta na classe média?
Velho - A questão do consumismo afeta várias classes sociais,
mas sobretudo as camadas médias. Os jovens de camadas médias, que motivações eles têm?
O estudo é uma motivação absolutamente secundária. O que
existe como motivação fundamental é adquirir bens materiais,
ter dinheiro, coisas.
Folha - E isso é novidade?
Velho - Você não precisa ser
uma pessoa nostálgica de um idílico passado para saber que até
um tempo não tão remoto se encontravam na juventude outras
preocupações: com participação
política, o país, o estudo, a cultura.
Folha - Como o senhor analisa
casos como os de Mauricinho
Botafogo, da favela Cerro-Corá
e da turma de jiu-jítsu?
Velho - Há uma crise de valores.
Esses exemplos mostram o tipo
de individualismo que se desenvolveu no Brasil, no capitalismo
contemporâneo. Está ligado ao tipo de visão de mundo absolutamente materialista.
Folha - Além do tráfico de drogas, que outros motivos influenciam a adesão de jovens de classe média ao crime?
Velho - Isso que a gente chama
de ordem moral, nível de valores,
a questão dos símbolos, acho que
isso tem sido subestimado na
análise da violência.
Você não tem no Brasil nenhuma ordem tradicional, baseada,
por exemplo, em valores religiosos. Nós não temos isso, só em alguns setores da sociedade, mas
não é mais poderoso como foi.
Não temos o valor cidadania.
Folha - A desagregação familiar contribui para essa cultura?
Velho - A família vive uma situação de transição. As famílias
nucleares -pai, mãe e filhos, basicamente- têm pouca capacidade de socializar seus filhos.
Na família extensa, ampliada,
com avós, tios, sobrinhos, amigos
da família, você tinha outras referências e mecanismos que faziam
estabelecer certos laços de lealdade. O universo social era mais ampliado. Hoje em dia isso está muito enfraquecido.
Folha - Que tipo de consequência a família menor, mais
isolada, provoca?
Velho - A família não cumpre as
mesmas funções que cumpria há
50 anos. A escola também não.
Você valoriza o sucesso material
em todos os meios de comunicação. As pessoas não têm os meios
de realização desse sucesso. Que
meios vão implementar? Ilícitos.
Que valores há para que não façam isso? Até que ponto os valores familiares são fortes para contrabalançar essa mensagem individualista do sucesso?
Folha - Esses valores não levam necessariamente ao crime.
Velho Não precisa ser o crime
caracterizado como crime, mas a
transgressão, táticas e estratégias
menos límpidas, menos honestas.
Aquela coisa de querer levar vantagem em tudo, de querer se dar
bem, passar a perna.
Folha - Esses valores influenciam as gangues de artes marciais que vão às ruas e às casas
noturnas para brigar?
Velho - O esporte é uma coisa
importante. A motivação é fundamental, se for associada a determinados valores: de comunidade,
grupo, sociabilidade, realização
pessoal, aperfeiçoamento.
Folha - Na sua tese de doutorado, em 1975, o senhor tratou
o consumo de drogas pela classe média como uma questão de
liberdade individual. Mantém a
ótica, mesmo considerando que
o consumidor integra a cadeia
do tráfico, marcada por violência, mortes, barra pesada?
Velho - Alguns meninos e meninas que fumam maconha no final de semana, isso não causa dano social maior. O problema é
quando isso se articula com uma
rede de tráfico.
Se você tem outras condições de
vida social, outras estruturas funcionando, outras perspectivas, o
problema das drogas poderia ser
um problema menor. O problema
não é a trouxinha de maconha,
mas a metralhadora.
Folha - O senhor mantém-se
favorável à descriminalização
do consumo de drogas?
Velho - A descriminalização é
uma coisa fundamental. O uso de
drogas do modo atual é expressão
de crise de valores, crise moral.
Tem a ver com uma estrutura
econômica e política que faz com
que haja espaço para o tráfico de
drogas e de armas.
Folha - O tráfico é a porta de
parcela da classe média para entrar na criminalidade. Há pessoas que abandonaram as drogas para não participar da cadeia que inclui o tráfico.
Velho - Eu sei de pessoas que
deixaram de usar até drogas leves
porque não queriam participar
dessa máquina criminosa.
O problema é que não existe um
projeto internacional para combater a máquina de drogas e armas. E é absurdo prender qualquer pessoa que seja porque está
fumando maconha.