Os crimes sexuais
Jaime Pinsky e Luiza Nagib Eluf
(Do livro: "Brasileiro é assim mesmo" – Jaime Pinsky e Luiza Nagib Eluf, Ed. Contexto, 1993, São Paulo)
O julgamento de William Kennedy Smith por crime de estupro em Palm Beach, Flórida, reacendeu antiga discussão sobre o comportamento sexual na sociedade ocidental. Como em todo delito praticado especificamente contra a mulher, ocorre um duplo julgamento: o do réu e o da vítima.
É importante notar como as manobras da defesa são sempre no sentido de destruir a integridade moral e psicológica da mulher, imputando-lhe fatos ou atos que a tornem culpada pela agressão que sofreu. Assim, usando argumentos equivalentes àqueles utilizados pelo ladrão que procurou justificar o roubo de jóias alegando não ter podido resistir à beleza das mesmas, o agressor tenta explicar a violência sexual cometida com base nos atributos físicos da vítima, sua maneira de ser ou de vestir.
Dessa forma, o criminoso passa de réu a vítima dos seus próprios e incontroláveis instintos, instintos, perversamente estimulados por uma mulher inconseqüente, degradada ou, como comumente se diz, louca.
Esse padrão moral, fálico e subvertido, ainda predominante em alguns bolsões das sociedades ocidentais, procura disfarçar uma postura castradora que assim se revela:
a)A mulher tem apenas duas opções: ou é casta, pura, ingênua e, consequentemente, oprimida, ou é devassa, imoral, libertina. A mulher independente, com vontade própria, determinada e possuidora de uma vida sexual gratificante, está fora de cogitação. Fazer-se sensual e atraente é confundido com colocar-se em disponibilidade total, onde o direito de escolha não vigora. A predisposição sexual é interpretada como sinal verde para qualquer tipo de abordagem, mesmo que desrespeitosa ou violenta.
Dentro desse mesmo raciocínio, também se nega à mulher o direito de desistir do ato sexual a qualquer tempo. Se alguns indicativos de receptividade forem detectados, ao parceiro reconhece-se o direito de obrigá-la a ir até o fim.
O desejo sexual feminino, por vezes mal interpretado, condena moralmente a vítima e justifica a agressão do réu como um "castigo merecido". E essa punição às avessas que vem explicando as absolvições de assassinos de mulheres no Brasil por "legítima defesa da honra" ou que levou a defesa, no caso Kennedy, a exibir ao júri as peças íntimas usadas por Patricia Bowman: lingerie preta e rendada.
b) O instinto sexual masculino deve ser entendido como prova cabal de superioridade, sem necessidade de ser controlado em nome do respeito à vontade da mulher. Qualquer proposta de limitação à atividade sexual do homem é pouco aceita, mesmo quando a ameaça é um terrível mal como a AIDS.
c) Sendo a mulher culpada por todos os pecados do mundo desde os tempos de Eva, toda e qualquer figura feminina, independentemente de posição, fica comprometida num confronto. Prova disso é o destaque que a revista Veja deu a uma qualificação pejorativa atribuída à promotora Moira Lasch, que atuou na acusação de Kennedy: "piranha de nariz arrebitado" (sic).
Sabemos que os padrões descritos acima estão em franca decadência e o futuro é bastante promissor quanto aos direitos humanos das mulheres e ao saudável relacionamento entre os sexos. Mas devemos aproveitar o ensejo para reestudar o estupro em nosso país. Ele ocorre com muito mais freqüência do que se pode imaginar, inclusive dentro da família e da relação conjugal. E, na maioria das vezes, fica impune, condenando a mulher à dor silenciosa ou ao constrangimento público.
Crime de sedução é inconstitucional
Certos conceitos sobre a sexualidade feminina expressos no Código Penal, na doutrina mais antiga, às vezes na jurisprudência e, mais raramente, nos trabalhos de alguns criminalistas, necessitam urgente reformulação para adequação aos preceitos constitucionais em vigor desde 1988.
É, hoje inquestionável a equiparação dos direitos da mulher aos direitos do homem, nos termos da Carta Magna:
"Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
"Art. 5º, I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição."
O Código Penal de 1940, à evidência, reflete a condição feminina do começo do século, quando à mulher era negado o exercício da cidadania e sua subordinação ao homem era quase total. A mulher casada era considerada semi-incapaz para os atos da vida civil. Convém lembrar, também, que o voto feminino só é possível a partir de 1934, seis anos antes da elaboração do Código Penal cuja Parte Especial ainda vige.
Frente às incontestáveis conquistas femininas tanto na sociedade corno na política e na legislação, os chamados "crimes contra os costumes" previstos no Código Penal transformaram-se em verdadeiras peças de museu e certamente após a virada do milênio poderão ser considerados achados arqueológicos.
O Código Penal sujeita a reclusão de 2 a 4 anos quem seduzir mulher virgem, menor de 18 anos e maior de 14, e tiver com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança, ou seja, cometendo o chamado crime de sedução. Ora, se a mulher está, hoje, definitivamente equiparada ao homem em direitos e obrigações, como já demonstrado, por que será que alguns juristas não conseguem compreender o alcance da Constituição com relação à sexualidade? O artigo do Código Penal que trata do crime de sedução, da forma como está redigido, não protege a mulher de malefício algum, apenas reforça o escabroso entendimento de que às mulheres o sexo é coisa proibida, um fator de decadência, uma inabilitação para o casamento, uma perda de qualidade irreparável, uma condenação imediata à prostituição, um horror à sua reputação e uma vergonha para a família (principalmente para o pai da moça).
As mulheres são iguais aos homens, é preciso repetir. Vejamos o efeito dessa igualdade em sentido inverso: "seduzir rapaz virgem, menor de 18 anos, e maior de 14 anos, e ter com ele conjunção carnal..."
O preconceito e a desigualdade expressamente condenados na Constituição de 1988 manifestam-se exatamente no momento em que a perda da virgindade dos meninos é comemorada pela família e a da menina é condenada como ultraje. Um Código Penal elaborado à luz de uma Carta magna que respeita, acima de tudo, os direitos humanos e da cidadania, não pode persistir na concepção da mulher como propriedade do homem. A perda da virgindade deve ser entendida, para a mulher, como um ato de livre escolha e corno um direito inalienável seu, aos quais sua honestidade, competência ou respeitabilidade não podem estar vinculadas. As expressões "mulher virgem", "mulher honesta" ou "desonra própria" devem ser definitivamente banidas do ordenamento jurídico. Trata-se de pseudoproteção que, na realidade, avilta a mulher, rouba-lhe o direito ao próprio corpo e invade sua vida privada de forma a retirar-lhe a independência. A honra da mulher é igual à honra do homem. A proteção à sexualidade da mulher deve ser idêntica àquela destinada ao varão, sendo absolutamente ridículo, nos dias de hoje, querer insistir na existência de crimes sexuais, nos quais a vítima só pode ser mulher.
A Comissão de Reforma do Código Penal, em seu projeto, já eliminou o crime de sedução (entre outras aberrações ainda presentes no CP), incluiu os crimes sexuais entre os crimes contra a pessoa e equiparou a liberdade sexual feminina à masculina, não subsistindo nenhum delito, nesta área, praticável exclusivamente contra a mulher. Mesmo porque seria, como já é, inconstitucional.