E desde já reconheço o cuidado com que Calligaris se afasta da interpretação psicologizante, ainda hoje a
mais frequente: "Cordial aqui não significa gentil, bem-humorado ou disposto e
ainda menos polido".
Cordial deriva de "cor, cordis", coração em latim. Dominado pelos afetos, o
homem cordial resiste à abstração de
princípios universais. Ponto para Calligaris. Contudo ele compreende a cordialidade como índice de um hipotético caráter brasileiro.
Além disso, estabelece uma relação
imediata entre a análise de Sergio Buarque, publicada em 1936, e a sociedade
brasileira contemporânea. Essas duas
premissas comprometem o ponto mais
fecundo de seu ensaio -a crítica à "ilusão de uma unidade que oculta nossa divisão social inconciliável". Trata-se de idéia muito mais próxima da
visão de Gilberto Freyre que da concepção de Sergio Buarque, pois esse emprego associa a sociabilidade brasileira à
miscigenação. De fato, em "Sobrados e
Mucambos", também publicado em 36,
Freyre escreveu: "A simpatia à brasileira
transforma esse rito como já dissemos
essencialmente apolíneo de amizades
entre homens em expansão caracteristicamente brasileira, dionisiacamente mulata, de cordialidade".
No entanto, em "Raízes do Brasil" o
mesmo conceito possui uma orientação
muito diferente. Embora a expressão tenha sido tomada de Ribeiro Couto, a inspiração teórica vinha de Carl Schmitt,
como Sergio Buarque esclareceu na segunda edição do livro. Por sua vez, em
"O Conceito de Político", publicado no
mesmo ano de "Casa Grande e Senzala"
(1933), o alemão especificara o sentido
de dois termos definidores de sua concepção do político, a distinção entre amigo e inimigo, com base na diferença entre esferas pública e privada.
O brasileiro
assimilou a idéia: "A inimizade, sendo
pública ou política, não cordial, se chamará mais precisamente hostilidade".
Sergio Buarque nunca associou cordialidade a miscigenação. Ele identificou
sua origem na família patriarcal, na "herança rural", cuja sociabilidade supõe a
transposição da ordem privada para a
ordem pública.
O homem cordial pode
ser visto como um tipo ideal weberiano:
ele seria o precipitado de uma formação
social caracterizada pela onipresença da
esfera privada, logo, pelo primado das
relações pessoais. Ora, a cordialidade
não deve ser compreendida como uma
característica essencialmente brasileira,
mas antes como um traço estrutural de
sociedades cujo espaço público enfrenta
dificuldades para afirmar sua autonomia
em relação à esfera privada.
O conceito
de cordialidade é um importante instrumento analítico para o estudo de grupos
sociais dotados de elevado grau de autocentramento, portanto, em alguma medida, resistentes a pressões externas.
Calligaris parece compreender a análise de Sergio Buarque exclusivamente como uma interpretação da formação social brasileira, sem se dar conta de sua relevância teórica. Tal relevância, porém,
rejeita o procedimento usual de intelectuais que, para conquistar uma limitada
inserção no mundo acadêmico internacional, se apresentam como hermeneutas iluminados da "brasilidade". É óbvio
que "Raízes do Brasil" pretende oferecer
uma interpretação do país.
Mas ainda
não lemos com a devida atenção a ressalva do próprio autor: "A idéia de uma espécie de entidade imaterial e impessoal,
pairando sobre os indivíduos e presidindo os seus destinos, é dificilmente imaginável para os povos da América Latina".
E tampouco valorizamos a proximidade
entre Sergio Buarque e Jorge Luis Borges:
"O argentino, ao contrário dos norte-americanos e de quase todos os europeus, não se identifica com o Estado. (...)
O Estado é impessoal: o argentino somente concebe relações pessoais". Tais
passagens desautorizam a associação
proposta por Calligaris entre o homem
cordial e um hipotético caráter nacional.
Ademais, não é possível ver a sociedade brasileira contemporânea sob o signo
da cordialidade como um desdobramento das teses de "Raízes do Brasil".
Para Sergio Buarque, com a crescente urbanização dos anos 30 e 40 do século 20,
"o homem cordial se acha fadado a desaparecer, onde ainda não desapareceu de
todo". A superação do mundo rural levaria ao colapso da família patriarcal, centro irradiador das relações cordiais. Ao
supor que, apesar do predomínio do
mundo urbano, a sociedade brasileira
segue cordial, Calligaris contraria o
prognóstico de Sergio Buarque. Trata-se,
salvo engano, de um passo necessário.
Aliás, em outra ocasião, defendi a mesma idéia.
Por fim, cumpre identificar a contradição do ensaio de Calligaris: ele se deixou
enfeitiçar pela "ilusória unidade" que
criticara. Não se trata da unidade que as
elites buscam impor à nação, mas da
própria idéia de nacionalidade, vista como substância que assegura a continuidade do homem cordial. Isso representa
uma perda, pois poderíamos radicalizar
sua crítica e pensar numa história cultural que reconhecesse o caráter ambíguo
da formação do Brasil precisamente devido à "divisão social inconciliável". Por
que não imaginar a escrita da história da
cultura brasileira com base nessa hipótese? Carlos Drummond de Andrade talvez tenha intuído esse projeto ao escrever os versos:
"O Brasil não nos quer! Está farto de
nós!/ Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil./ Nenhum Brasil existe. E
acaso existirão os brasileiros?".
João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura
comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor de "Literatura e Cordialidade" (Eduerj).