A EXPERIÊNCIA DA VIOLÊNCIA
(Do livro: "São Paulo, Trabalhar e viver" - Vinicius Caldeira Brant - organizador - pág. 164 a 166, Ed. Brasiliense, ano 1989).
A violência urbana é hoje um fenômeno muito mais amplo do que aquilo que pode ser detectado pelas estatísticas de crime, ou que pode ser explicado por possíveis motivações econômicas e por falhas dos aparelhos de segurança encarregados da prevenção ao crime. A vivência cotidiana de uma situação marcada pelo aumento da criminalidade violenta constituí-se em uma experiência peculiar. Dela fazem parte o medo, uma proliferação de falas recontando casos e apontando causas, a mudança de hábitos cotidianos, a exacerbação de conflitos sociais, a adoção de medidas preventivas.
Os discursos sobre a violência são produzidos a partir dos mais diferentes lugares sociais. Existem discursos institucionais; existem as falas produzidas e reproduzidas pelos meios de comunicação de massa, e aquelas que engrossam as plataformas de candidatos durante campanhas eleitorais; existem as análises dos cientistas sociais; mas, sobretudo, existem as falas dos moradores de São Paulo e sua região metropolitana, tentando dar sentido para uma experiência que vivem cotidianamente. A criminalidade violenta é hoje um tópico freqüente nas conversas cotidianas. As pessoas têm medo e o tema, apesar do horror que desperta exerce um fascínio. Todos são capazes de contar um caso e muitas vezes eles se sucedem, competindo no escabroso. Há algo na violência que não se consegue explicar: por que tal pessoa foi assaltada, por que tal mulher foi estuprada, por que aquele trabalhador foi morto, voltando para casa? Ao mesmo tempo, proliferam as falas sobre os agentes da violência: por que tal e tal tipo de pessoa se transforma em criminoso, por que atualmente a criminalidade vem aumentando em São Paulo, por que o crime é algo que compensa em nossa sociedade, são fenômenos para os quais as pessoas pensam ter explicações. As falas sobre a violência tratam antes de mais nada, de localizar e circunscrever o fenômeno, descrevendo-o em detalhes e procurando seus condicionantes. As falas delimitam a criminalidade, associando-a a espaços, tempos e tipos sociais específicos. Formam-se mapas mentais – que servirão de referência à ação e a convivência com a violência – em que a cidade, o bairro e seus moradores são esquadrinhados e classificados. Dividem-se os espaços e os períodos do dia em mais ou menos perigosos. Nessas tentativas de esquadrinhamento, percebe-se um dos procedimentos mais comuns em relação à violência: a tentativa de colocá-la longe, de se estabelecer uma distância entre quem fala e a violência.
Tenta-se sempre dizer que o pior da violência ocupa um outro espaço da cidade. Nos bairros ricos e de classe média, associa-se a violência a periferia ou ao centro da cidade, onde existem muitos pobres; na periferia, diz-se que a violência está em outras periferias ou nas favelas; nas favelas, diz-se que a violência está do outro lado, ou numa outra favela, mas nunca no lugar onde se mora. A violência é basicamente um problema dos outros. Quem fala é, na pior das hipóteses, vítima. As divisões e classificações não são apenas espaciais, mas sociais. A elas são associados tipos sociais mais ou menos perigosos.
Face ao crime violento indiscriminado, elabora-se o retrato do criminoso. Esse retrato é social. Ela não fala de pessoas específicas, mas de um tipo genérico, que concentra tudo de ruim que a sociedade produz. O criminoso é sempre o outro, na verdade, o mais outro de todos, o pária, o socialmente marginal.
As falas sobre violência são basicamente uma construção e uma demarcação de distâncias sociais. Ao se pintar o retrato do agente do crime, difundem-se e se reforçam os estereótipos e preconceitos sociais disponíveis. A imagem do criminoso, esse retrato genérico, concentra tudo aquilo que é avaliado de maneira negativa: o criminoso é o negro, o nordestino, o pobre, o que não trabalha e é preguiçoso, o morador de favela, o filho de mãe solteira, o sujo, o que não tem caráter, etc. E isto não só no imaginário das elites e das camadas médias, mas também no das camadas trabalhadoras. Difunde-se também o ódio contra essas categorias sociais "perigosas". Elas não apenas inspiram medo, mas o desejo de punição que sugere propostas de segregação, de tratamento "rigoroso", de "blitz" preventivas e, no extremo, de extermínio de criminosos.
A popularidade de programas radiofônicos que se especializam na difusão de preconceitos e na incitação ao ódio talvez decorra do fato de que explorem, através da dramatização , sentimentos que já estão arraigados nas classes populares.
É importante fazer uma ressalva. O retrato genérico das categorias suspeitas não impede que se façam relativizações ao falar de pessoas específicas.
Assim, a mesma pessoa que associa os criminosos, de modo geral, aos favelados e aos nordestinos sabe perfeitamente que nem todos os favelados e nordestinos cometem crimes. Aqui vale a regra de que o que é próximo e conhecido é bom, e o estigma é jogado para longe. A vizinha, aquela senhora nordestina e viúva que mora na favela, aquele senhor "de cor" que vive ali em frente, esses são pessoas de bem; os maus elementos são sempre referidos de modo distante e genérico.