GENOCÍDIO ADICIONAL
(Do Livro: "Modernidade e Holocausto", Zygmunt Bauman, Jorge Zahar Editor, 1989, pág. 11-117)
O assassinato em massa não é uma invenção moderna. A história está cheia de antagonismos entre comunidades e seitas, sempre mutuamente prejudiciais e potencialmente destrutivos, muitas vezes degenerando em aberta violência, que por vezes leva ao massacre e, em alguns casos, ao extermínio de populações e culturas inteiras. Diante disso, parece negar-se a singularidade do Holocausto.
Em especial, sua íntima ligação com a modernidade, a "afinidade eletiva" entre o Holocausto e a civilização moderna. O fato sugere, ao contrário, que o ódio comunitário mortífero sempre esteve entre nós e provavelmente nunca deixará de existir; e que nesse ponto a única importância da modernidade foi que, ao contrário do que prometia e da expectativa generalizada, não aparou suavemente as arestas sabidamente ásperas da coexistência humana e portanto não pôs um fim definitivo á desumanidade do homem para com o homem. A modernidade não cumpriu o prometido. Ela falhou. Mas não é responsável pelo Holocausto, uma vez que o genocídio acompanha a história da humanidade desde o início.
Não é esta, porém, a lição contida no Holocausto. Sem dúvida o Holocausto foi mais um episódio na extensão série de tentativas e na série bem mais curta de êxitos em matéria de assassinatos em massa. Também tem aspectos que não compartilha com nenhum dos casos de genocídio anteriores. São esses aspectos que merecem especial atenção.
ELES TIVERAM UM NÍTIDO SABOR MODERNO.
Sua presença sugere que a modernidade contribuiu para o Holocausto mais de forma direta do que por sua própria fraqueza e inépcia.
Sugere que o papel da civilização moderna na perpetração e extensão efetiva do Holocausto foi um papel ativo, não passivo.
Sugere que o Holocausto foi tanto um produto como um fracasso da civilização moderna.
Como tudo o mais que se faça à maneira moderna - racional, planejada, cientificamente fundamentada, especializada, eficientemente coordenada e executada - o Holocausto superou e esmagou todos os seus supostos equivalentes pré-modernos, expondo-os comparativamente como primitivos, perdulários e ineficientes. Como tudo o mais na nossa sociedade moderna, o Holocausto foi um empreendimento em todos os aspectos superior, se medido pelos padrões que esta sociedade pregou e institucionalizou. Paira bem acima de episódios anteriores de genocídio, da mesma forma que a fábrica moderna está muito acima da antiga oficina do artesão ou que a fazenda mecanizada, com seus tratores, ceifeiras-debulhadoras e pesticidas, supera em muito a velha roça, com seu arado puxado a cavalo e a capina de enxada.
Em 9 de novembro de 1938, teve lugar na Alemanha um acontecimento que passou para a história com o nome de Kristallnacht (Noite dos Cristais). Lojas, lares e templos judeus foram atacados por uma multidão desgovernada, embora oficialmente encorajada e sub-repticiamente controlada. Houve destruição, incêndios, vandalismo. Cerca de cem pessoas foram mortas. A Noite dos Cristais foi o único pogrom em larga escala ocorrido nas cidades da Alemanha durante todo o Holocausto.
Foi também o único episódio do Holocausto que seguiu a tradição secular da violência de turba contra os judeus. Não diferiu muito dos pogroms anteriores; praticamente nada a destaca na extensa lista de violência desse tipo que vai da Antigüidade, passando pela Idade Média, até as quase contemporâneas mas ainda em grande parte pré-modernas Rússsia, Polônia ou Romênia. Se o que os nazistas fizeram com os judeus tivessem sido apenas Noites de Cristal e coisas do gênero, só teriam acrescentado mais um parágrafo, um capítulo no máximo, à crônica em vários volumes de emoções que degeneram em violência, grupos de linchamento, soldados que saqueiam e estupram ao invadir cidades. Mas não foi isso que aconteceu.
E não foi o que aconteceu por uma simples razão: por mais Kristallnachte que ocorressem, não se poderia conceber nem realizar dessa forma o assassinato em massa na escala do Holocausto.
Vejam os números. O Estado alemão exterminou seis milhões de judeus aproximadamente. À média de 100 por dia, isso levaria quase 200 anos. A violência de turba assenta-se numa base psicológica errada, na emoção violenta. As pessoas podem ser manipuladas até a fúria, mas a fúria não pode ser mantida por 200 anos. As emoções e sua base psicológica têm uma duração natural; a luxúria, mesmo a da sede de sangue, é em algum momento saciada. Além disso, as emoções são notoriamente instáveis, podem mudar. Não se pode confiar em uma multidão de linchadores, por vezes eles podem ser movidos pela simpatia - digamos, pelo sofrimento de uma criança. Para se exterminar uma "raça" é essencial matar as suas crianças.
O assassinato integral, abrangente, exaustivo exigia a substituição da turba por uma burocracia. A substituição da raiva grupal pela obediência à autoridade. A burocracia requerida seria eficiente, quer exercida por anti-semitas extremados, quer por moderados, o que ampliava consideravelmente o espectro de possíveis funcionários; as ações deles não seriam dirigidas pela paixão, mas por rotinas de organização; ela só faria distinções para as quais estivesse programada, não as que os funcionários fossem tentados a fazer, digamos, entre crianças e adultos, doutor e ladrão, inocente e culpado; seria sensível à vontade da autoridade última por meio de uma hierarquia de responsabilidades - fosse qual fosse aquela vontade.
A raiva e a fúria são deploravelmente primitivas e ineficazes como instrumentos de extermínio em massa. Elas normalmente se exaurem antes que se conclua a tarefa. Não se podem erguer grande projetos sobre essa base. Certamente não projetos que visem para além de efeitos momentâneos como uma onda de terror, a ruptura de uma velha ordem, abrindo terreno para uma nova.
Gengis Khan e Pedro, o eremita, não precisavam de tecnologia moderna nem de métodos científicos modernos de coordenação e administração. Stálin e Hitler precisavam. São aventureiros e diletantes como Gengis Kahn e Pedro, o Eremita, que foram desacreditados por nossa sociedade racional, moderna, e postos de lado.
Foi para os praticantes de genocídio frio, completo e sistemático como Stálin e Hitler que a moderna sociedade racional preparou o caminho.
O mais notável nos casos modernos de genocídio é, simplesmente, sua escala. Em nenhuma outra oportunidade, fora os regimes de Hitler e Stálin, tanta gente foi assassinada em tão pouco tempo. Esta não foi, porém, a única novidade, talvez nem mesmo uma novidade básica, mas apenas um subproduto de outras características mais fundamentais.
O assassínio em massa contemporâneo caracteriza-se , por um lado, pela ausência quase absoluta de espontaneidade e, por outro, pelo predomínio de um projeto cuidadosamente calculado, racional. É marcada pela quase completa eliminação da contingência e do acaso, assim como pela independência face às emoções grupais e as motivações pessoais. Sobressai-se pelo papel marginal ou de mera tapeação, dissimulado ou decorativo, da mobilização ideológica. Mas, antes e acima de tudo, destaca-se pelo propósito.
As motivações homicidas em geral, e as do extermínio em massa em especial, têm sido muitas e variadas. Vão do puro cálculo a sangue-frio e um lucro competitivo até o ódio igualmente puro e desinteressado, quer dizer, a heterofobia. A maioria das rivalidades comunitárias e campanhas genocidas contra aborígenes está seguramente entre esses dois pólos.
Se acompanhada de uma ideologia, a heterofobia não vai muito além de uma visão de mundo que se resume na fórmula "ou eles ou nós" e no preceito "não há lugar para os dois", ou "índio bom é índio morto". Espera-se que o adversário siga princípios-modelo apenas se isso lhe for permitido. A maioria das ideologias genocidas assenta-se numa simetria tortuosa de falsas intenções e ações.
O genocídio realmente moderno é diferente. É genocídio com um propósito. Livrar-se do adversário não é um fim em si. É um meio para atingir determinado fim, uma necessidade que decorre do objetivo último, um passo que se deve dar caso se queira chegar um dia à meta final. O fim em si mesmo é a visão grandiosa de uma sociedade melhor e radicalmente diferente.
O genocídio moderno é um elemento de engenharia social, que visa a produzir uma ordem social conforme um projeto de sociedade perfeita.
Para os que lançam e executam genocídios modernos, a sociedade é objeto de planejamento e projeto conscientes. Pode e deve-se fazer mais pela sociedade do que mudar um ou vários dos seus detalhes, melhorá-la aqui e ali, curar algumas das suas aflições mais problemáticas.
Podem e devem ser estabelecidas metas mais ambiciosas e radicais; a sociedade pode e deve ser refeita, forçada a conformar-se a um plano geral cientificamente concebido. É possível criar uma sociedade objetivamente melhor do que a que "apenas existe" - isto é, a que existe sem intervenção consciente.
Invariavelmente, há uma dimensão estética nesse projeto: o mundo ideal a ser criado conforma-se aos padrões de uma beleza superior. Uma vez construído, será imensamente satisfatório, como uma obra de arte perfeita; será um mundo que, nas imortais palavras de Alberti, nenhum, acréscimo, redução ou alteração poderá melhorar.
É a visão de um jardineiro, projetada em tela de tamanho planetário. Os pensamentos, sentimentos, sonhos e impulsos dos projetistas desse mundo perfeito são conhecidos de todo jardineiro digno desse nome, embora talvez em escala um tanto menor. Alguns jardineiros odeiam as ervas daninhas que estragam seus projetos - uma feiúra no meio da beleza, desordem na serena ordenação.
Outras não são nada emocionais: trata-se apenas de um problema a ser resolvido, uma tarefa a mais.
O que não faz diferença para as ervas: ambos os jardineiros as exterminam. Se indagados e com tempo para refletir, os dois concordariam que as ervas devem morrer não tanto pelo que são, mas pelo que deve ser o belo e organizado jardim.
A cultura moderna é um canteiro de jardim. Define-se como um projeto de vida ideal e uma arranjo perfeito das condições humanas. Constrói sua própria identidade desconfiando da natureza.
Com efeito, define a si mesma e à natureza, assim como a distinção entre as duas, por sua desconfiança endêmica em relação á espontaneidade e seu anseio por uma ordem melhor, necessariamente artificial. À parte o plano geral, a ordem artificial do jardim precisa de instrumentos e matérias-primas. Também precisa de proteção contra a ameaça implacável de - óbvio - uma desordem.
A ordem, concebida originalmente como um projeto, determinam o que é um instrumento, o que é matéria-prima, o que é inútil, o que é irrelevante, o que é perigoso, o que é uma erva daninha e o que é uma praga. Classifica todos os elementos do universo pela relação que têm com ela.
Tal relação é o único sentido que lhes concede e tolera - e a única justificativa para os atos do jardineiro, diversos como as próprias relações. Do ponto de vista do plano geral, todas as ações são instrumentais, enquanto todos os objetos de ação são coisas que facilitam ou estorvam o plano.
O genocídio moderno, como a cultura moderna em geral, é um trabalho de jardineiro. É apenas uma das muitas tarefas que precisam empreender as pessoas que tratam a sociedade como um jardim. Se o projeto de um jardim define o que é erva daninha, há ervas daninhas em todo jardim.
E ervas daninhas devem ser exterminadas. Eliminá-las não é uma tarefa destrutiva, mas criativa. Que não difere em essência de outras atividades que se somam para a construção e manutenção de um perfeito jardim.
Todas as visões da sociedade como um jardim definem parte da população como ervas daninhas.
Que, como quaisquer ervas daninhas, devem ser segregadas, contidas, impedidas de proliferar, removidas e mantidas fora dos limites da sociedade; se todos esses meios se revelarem insuficientes, elas devem ser mortas.
As vítimas de Hitler e de Stálin não foram mortas para a conquista e colonização do território que ocupavam. Muitas vezes foram mortas de uma maneira mecânica, enfadonha, sem o estímulo de emoções humanas - sequer do ódio. Foram mortas por não se adequarem, por uma outra razão ao esquema de uma sociedade perfeita. Sua morte não foi um trabalho de destruição, mas de criação. Foram eliminadas para que uma sociedade humana objetivamente melhor - mais eficiente, mais moral, mais bela - pudesse ser criada.
Uma sociedade Comunista. Ou uma sociedade ariana, racialmente pura.
Nos dois casos, um mundo harmonioso, livre de conflitos, dócil aos governantes, ordeiro, controlado. Pessoas manchadas pela inerradicável praga do seu passado ou origem não podiam se adequar a esse mundo impecável, saudável e brilhante.
Como ervas daninhas, sua natureza não podia ser alterada. Elas não podiam ser melhoradas ou reeducadas. Tinham que ser eliminadas por razões de hereditariedade genética ou ideológica - por razão de um mecanismo natural, resistente, imune ao processamento cultural.
Os dois casos mais notórios e extremos de genocídio moderno foram fiéis ao espírito da modernidade. Não se desviaram da rota principal do processo civilizador. Foram as mais consistentes e desinibidas expressões desse espírito.
Tentaram alcançar os objetivos mais ambiciosos do processo civilizador , que a maioria dos outros processo apenas beirou, não necessariamente por falta de boa vontade. Mostraram o que os sonhos de racionalização, planejamento e controle e o que os esforços da moderna civilização são capazes de realizar se não forem abrandados, refreados ou neutralizados.
Esses sonhos e esforços têm estado conosco há muito tempo. Eles fizeram proliferar o vasto e poderoso arsenal de tecnologia e técnicas gerenciais. Deram origem a instituições que servem ao único propósito de instrumentalizar o comportamento humano a tal ponto que qualquer objetivo pode ser perseguido com eficiência e vigor, com ou sem dedicação ideológica ou aprovação moral da parte dos que o perseguem. Legitimizam o monopólio dos governantes sobre os fins e o confinamento dos governados ao papel de meios. Definem a maioria das ações como meios e os meios, como subordinação - ao fim último, àqueles que o estabelecem, à suprema vontade, ao saber supra-individual.
Enfatizemos que isso não significa que vivemos todos, no dia-a-dia, segundo os princípios de Auschwitz. Pelo fato de o Holocausto ser moderno, não segue que a modernidade é um Holocausto.
O holocausto é um subproduto do impulso moderno em direção a um mundo totalmente planejamento e controlado, uma vez que esse impulso deixe de ser controlado e corra à solta.
A maior parte do tempo, a modernidade é impedida de chegar a esse ponto. Suas ambições chocam-se com o pluralismo do mundo humano; elas não se realizam por falta de um poder absoluto suficientemente absoluto e de um agente monopolista suficientemente monopolista para conseguir desprezar, deixar de lado ou esmagar toda a força autônoma e portanto compensatória e suavizante.