Os seis sermões do
Mandato estão dispersos nos 12 (para alguns 14) volumes de seus
sermões. Talvez seja necessário falar ainda um pouco mais
dessa obra tão conhecida que se inicia em 1670 e só
termina dois anos após a morte de Vieira, em 1699: a editio
princeps - a publicação dos sermões de forma
conjunta e autorizada pelo autor. Para tal feita, o jesuíta
dedicou parte de seus últimos anos de vida - dos quais os dez
últimos foram passados no Brasil - revisando e rescrevendo sua
obra sermônica, e enviando para publicação volume
por volume sem "qualquer ordem cronológica ou ideológica"
(Cidade, 1985, 109) definida de sermões. Assim, por exemplo, o
primeiro sermão do Mandato a sair publicado na
coleção, seria o que por último fora pregado. Digo
seria pois não se sabe ao certo se as datas e os locais
indicados são corretos em relação ao quando e onde
foi pregado. Mas isso não é o mais relevante.
O que temos que ter em conta
é que os textos apresentados na primeira
publicação e depois reimpressos, rearranjados,
atualizados ortograficamente em outras edições
posteriores, são textos reelaborados, repensados do alto de
quase um século de vida, enriquecidos e aumentados (talvez para
compensar a ausência de elementos essenciais para a
retórica parenética: a voz, a encenação, em
suma, o teatro moral com seus atores, palco e público).
Com esses adendos, temos que
resolver um outro problema: por que estudar os sermões do
Mandato enquanto um bloco se eles não aparecem ligados ou em
conjunto dentro da obra? A justificativa ou a razão surgem
após a leitura atenta dos sermões.
Mais do que unidos pelo mesmo rito
litúrgico - o Mandato, a lavagem dos pés -, os
sermões têm o mesmo tema: o amor de Cristo. Tema talvez
fruto da própria passagem bíblica, o capítulo 13
do evangelho de João, ao qual está relacionado a
comemoração religiosa. O porém é que mais
do que o amor de Cristo, Vieira escreveu-pregou sobre a
perfeição do amor de Cristo, contrapondo à
imperfeição do nosso amor, do amor humano. E aqui reside
nosso interesse: essa diferença e como Vieira demonstrou essa
diferença.
No
sermão do Mandato de 1643, Vieira explicitou isso pelos
remédios do amor, que seriam quatro: "o tempo, a ausencia, a
ingratidão, e sobretudo o melhorar do objeto." (v.IV, 293).
Remédios do amor porque o amor foi colocado como doença
incurável de Cristo, que por nos amar muitíssimo, morreu.
Morreu, o que nos salva, o que nos cura, por estar enfermo de amor,
morreu por amar os homens.
O tempo, e me permitam ir
parafraseando Vieira, seria remédio do amor pois é agente
destruidor, erosivo: "Atreve-se o tempo a colunas de mármore,
quanto mais a corações de cera?". É desvelador de
defeitos. É abrandador de paixões e extremos.
Porém, o tempo tem esses poderes "sobre o amor humano, que
é fraco; sobre o amor humano, que é inconstante; sobre o
amor humano, que não se governa pela razão, senão
por apetite; sobre o amor humano que, ainda quando parece mais fino,
é grosseiro e imperfeito."
Mas isso não é amor. O
amor perfeito "vive imortal sobre a esfera da mudança", "isento
da jurisdição do tempo". O amor que é "verdadeiro,
tem obrigação de ser eterno; porque se em algum tempo
deixou de ser, nunca foi amor". Onde se encontraria este amor? Em Deus.
Que ama "desde o princípio sem princípio da eternidade;
porque desde então começou o Verbo eterno a amar os
homens, ou desde então os amou sem começar".
Retornamos ao primeiro ponto desta
comunicação. Balizado pelo amor, o tempo, em Vieira,
pertence à esfera da imperfeição, à esfera
humana, e sua ação erosiva geraria a mudança. A
mudança não pertence à Eternidade, porque a
Eternidade É. Não Foi nem Será. O tempo
vieirense-católico implica passado, presente e futuro, onde o
diferente marca o tempo. Por outro lado, o igual marcaria o Eterno:
"princípio sem princípio"; "amou sem começar".
Esse Idêntico (Hansen, 1997) seria o campo do Divino, da
Perfeição. Para os homens, restaria a
imperfeição temporal, sujeita à corrosão,
ao envelhecimento.
Essa contraposição
entre temporal-eterno; imperfeito-perfeito reaparece no mesmo
sermão ao tratar dos outros remédios. Como também,
no sermão de 1645, por meio da melhor ciência do objeto,
que permite amar melhor, contraposta à ignorância. Ou
ainda, como no sermão de 1670, com as provas de amor de
Adão versus as provas de Cristo. Essas oposições
estão encerradas no binômio tempo-eternidade. Mesmo
porque, ao colocar os argumentos dos outros sermões, Vieira
recorreu, inúmeras vezes, ao tempo e ao espaço
qualificado pelo tempo.
Pode-se dizer que essa
contradição havia sido apontada já em Sto.
Agostinho, em suas Confissões. O que é verdade.
Porém, Vieira, homem de uma época marcada pelo
sensível, não só qualificou o tempo contraposto
à eternidade. Ele o materializou. O tempo deixou de ser uma
dimensão de lembranças, contida na
percepção do ser humano, para adquirir estrutura
sólida. As construções usadas ao longo da
pregação, que permitem ver um tempo-ação,
como: "Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a
corações de cera?", eram mais do que meras figuras de
linguagem. Elas tinham uma função no discurso.
A retórica se unia a uma prática
(Pécora, 1994). A figura tinha como uso criar uma certa
sensação no público que o aproximasse da
proposição que está querendo ser passada. (Hansen,
1997). A figura servia como transporte para uma realidade
simbólica (Bosi, 1997), que na retórica sermônica
vieirense tinham uma razão, um porquê.
Essa consubstanciação
do tempo servia para indicar que o tempo pertence ao Homem, ao corpo.
Mais do que isso, que era da responsabilidade do Homem. Que pertencia
ao campo das Causas Segundas. Que devia ser escrito para a, em
direção a Causa Primeira, que é Deus. O ser
escrito passa pela realização de um telos. Para Vieira,
esse telos, já anunciado e profetizado, estaria na
realização temporal do V Império.
Introduzimos, agora, uma nova personagem para tratar do
outro aspecto do tempo: a matéria profética.
Vejamos São Francisco Xavier Dormindo e o
produto desse sono: o sonho.
Os sermões de
São Francisco Xavier foram publicados em 1694, em um
único volume, o oitavo, da editio princeps. São 13
sermões, com duas "propostas" ou "prefações": uma
ao bloco dos três sermões de Xavier dormindo, que ainda
possui uma conclusão; outra aos dez sermões de Xavier
Acordado. Trataremos somente dos sermões de Xavier dormindo,
pois nosso interesse é perceber o conteúdo
profético e temporal do sonho.
Para cada um dos três
sermões de Xavier dormindo, Vieira tratou de um sonho tido por
Xavier. Vamos resumi-los, usando muitas vezes do próprio texto
sermônico.
O primeiro sonho mostrava Xavier lutando contra "um
índio agigantado e robustissimo", que o esmagava entre o
braço e quase o matava por asfixia. Tão real era a
dimensão onírica que Xavier acabara asfixiado. Depois, no
mesmo sonho, Xavier trazia o imenso índio aos ombros. E do mesmo
modo, Xavier, ao acordar , estava dolorido e cansado. "A lucta e o peso
era sonhado mas os effeitos eram verdadeiros". Esse índio era a
Ásia que Xavier viria a converter.
No segundo, Xavier, dormindo em um
hospital de Roma, gritara, no meio da noite, "mais, mais, mais". Deus
revelara à Xavier, por meio de um sonho, as desgraças que
o santo "havia de padecer por seu amor [por Deus].". E por ser o amor
de Xavier por Cristo tão grande, "e com serem tão
grandes, tão excessivos, tão inumeraveis, era tão
generoso o animo de Xavier, e a sêde de padecer por Cristo
tão fervorosa, tão ardente, tão insaciável,
que nada o intimidava, nada o satisfazia, nada o fartava, tudo [todas
as desgraças, os trabalhos, as doenças, as
perseguições, os combates] lhe parecia pouco; e assim
pedia mais."
No último sonho, o Diabo, vendo Xavier cansado,
pensou que o Santo estaria descuidado. Assim, mostrou ao Santo "uma
representação menos decente, que sua virginal pureza lhe
permitia", e tão fervorosos foram os sentimentos de
repúdio de Xavier que suas veias estouraram e ele "acordou com o
rosto todo banhado em sangue".
Assim Vieira introduziu dois
assuntos fulcrais para nossa comunicação e para entender
o tempo: a profecia e os cuidados.
Antes de tudo, é
necessário falar um pouco mais sobre Profecia e também
sobre o Tempo, Para tanto, vamos apresentar dois textos. Ambos
publicados na edição do ano passado da Revista da
Biblioteca Mario de Andrade. O primeiro, que fala explicitamente sobre
profecia, é do Prof. Alfredo Bosi, onde ele se detém na
Defesa perante o Tribunal do Santo Inquérito de Vieira e sua
defesa de que Bandarra era um verdadeiro profeta. O segundo, tratando
do tempo e combatendo o uso de termos anacrônicas para
entender ou explicar Vieira, é do Prof. João Adolfo
Hansen.
Para Bosi, a profecia no limite
estaria circunscrita ao campo da fé: a profecia é Verdade
para quem nela acredita, para quem tem fé. Fé em um
telos. Que teria sido anunciado pela profecia. E que, com o passar do
tempo, com a proximidade da resolução do telos, haveria
sinais comprobatórios dessa profecia.
Assim, indica Bosi, Vieira advogava o novo - o passar
do tempo - como eterna melhora (no sentido de uma compreensão do
Divino), pois mais perto do acontecer profetizado, como numa
metáfora da História do Futuro: mesmo tendo os antigos
melhor lume, hoje se ilumina melhor pois estamos mais perto do que vai
acontecer. Ou ainda, no caso dos dois amores, presente no Sermão
do Mandato de 1645, onde o segundo amor, por se ter mais ciência
do objeto, adquirida com o decorrer da experiência e do tempo,
é melhor que o primeiro. Bosi conclui que a visão de
tempo do jesuíta é "progressiva e (arriscaria dizer)
progressista" (Bosi, 1997, p.166).
Rebatendo essa leitura, está
o texto de Hansen. Hansen coloca o tempo do jesuíta como linear,
pois católico ortodoxo, no qual "não há progresso"
(Hansen, 1997, p.186), sendo suas diferenças marcadas pela
repetição do Idêntico. Ou seja, pelo dobramento do
Infinito, da esfera perfeita e Divina, no eixo imperfeito e humano do
tempo. Não a superação do passado, portanto,
não pode haver progresso - conceitos anacrônicos se
aplicados ao século dezessete. O que não significa que
não há mudanças. As mudanças são
dadas na refiguração do ser representado no passado.
Apesar de mais simpáticos ao
argumento de Hansen - por assim dizer, mais "histórico" - fica a
pergunta: como estaria definida a vinda do V Império,
senão como superação do império anterior e
espaço a ser construído para o reino de Cristo na Terra?
A resposta resida talvez em um telos definido, baseado não na
superação mas na volta, no religare. Uma
redenção final que não é fruto da melhora
progressiva mas sim, anúncio já feito e já
realizado no espaço Divino. Redenção que depende
do homem, pelas Causas Segundas, mas que corresponde ao pagamento de
nossa salvação pelos nossos pecados (originais).
Voltando aos sonhos, Vieira
escreveu que se sonha com o que se cuida. Os sonhos são
"relíquias dos cuidados", reflexo de como se vive. Dentre estes,
há os que se distinguem dos normais, são os
proféticos, nos termos de Vieira: "esclarecedores" ou
"clarificadores". Mas porque a profecia se manifesta nos sonhos?
Porque quando se dorme, aproxima-se da morte, portanto,
vai-se para longe do corpo; fora do corpo só há alma, que
é infinita e portanto mais próxima de Deus. E Deus
é que revela.
Mas não se pode sonhar com o
futuro, ou seja, ter um sonho clarificador, enviado por Deus, quando
não se está cuidando do presente. Precisa-se estar
cuidando de uma matéria no presente (dia) para profetizar o
futuro (sonho) da mesma matéria. Aqui ocorre a
injunção do Eterno na temporalidade, que revela o que vai
acontecer, o SERÁ do É presente. Mas para isso o É
precisa SER, ou melhor, ESTAR SENDO.
Aqui retomamos e rearranjamos a discussão dos
dois textos sobre os quais falamos à pouco. O sonhar com o
futuro, ou seja, a revelação, o profetizado, depende dos
cuidados do Presente, das Causas Segundas.
E como isto foi colocado por Vieira?
O exemplo principal, nessa sua definição do
onírico, foi o sonho de Nabucodonosor, fundamento também
principal da formulação profética do V
Império vieirense junto às Trovas de Bandarra.
Nabucodonosor só pôde sonhar com Impérios pois era
Imperador e estava cuidando de seu Império. Xavier, exemplo
máximo da vigilância, cuidando da virtude e da
pregação, sonhou com o futuro da conversão da
Ásia. Tivera anunciadas suas lutas e seus trabalhos em sua
missão para o Oriente.
Em resumo, a matéria destes Sermões
seria: seja vigilante, seja cuidadoso, tenha cuidados com o que
é seu, pois assim poderá sonhar e confirmar a profecia
futura. Obviamente que aqui existe um sentido subjacente ligado
à própria teoria do V Império. Não era
à toa o uso do sonho de Nabucodonosor. Há uma mensagem
político-teológica dada através da retórica
sermônica. Uma mensagem endereçada para o
público-ouvinte: os portugueses. E a mensagem, no limite, seria:
é necessário cuidar do Reino Português para a
realização do V Império.
Quando nós cuidávamos
do nosso reino-império, diria Vieira, no tempo da
expansão, tivemos as Trovas de Bandarra, que profetizaram a
vinda de D. João IV - não D. Sebastião - para o
evento do Império Católico. Agora, é
necessário atuar para realizar o Destino português. E o
tempo será o palco da realização dos nossos
(lusitanos e vieirenses) sonhos.
Obrigado.
BOSI, A. "Vieira e o reino
deste mundo", Revista da Biblioteca Mário de Andrade.
55, jan./dez. 1997, pp. 163-184.
CIDADE, H.. Padre António Vieira. Lisboa,
Presença, 1985.
HANSEN, J.A. "Vieira, forma e função", Revista
da Biblioteca Mário de Andrade. 55, jan./dez. 1997, pp.
185-197.
MEIHY, J.C.S.B., "Introdução", In:
VIEIRA, A., S.J.. Escritos instrumentais sobre os índios.
São Paulo, Loyola, 1992.
PÉCORA, A.. O teatro do sacramento. A
unidade teológico-retórico-política dos
sermões de Antonio Vieira. São Paulo, Unicamp/Edusp,
1994.
* Comunicação
apresentada no simpósio "Sujeito na História;
práticas e representações", XIV Encontro Regional
de História/ANPUH, em 11 de outubro de 1998, na PUC/SP, e
publicada nos Cadernos de
Criação, 27, Março, 2002, pp. 200-207