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O TEMPO DE VIEIRA:
O ESPIRITUAL E O HUMANO NO V IMPÉRIO *
Luís Filipe Silvério Lima
    Pretendemos aqui apresentar algumas reflexões frutos de uma pesquisa de Mestrado, pela pós-graduação em História Social da USP, financiada pelo CNPq. Tentamos investigar como o tempo está articulado à proposta vieirense do V Império e como o tempo pode nos ajudar a compreender essa proposta.
Não estamos aqui entendendo o tempo como categoria estrutural universal, ou melhor, passível de ser universalizada dentro de qualquer obra. Quero com isso dizer que nossa pergunta não é: como Vieira entendeu o tempo? Na verdade, e aqui usamos de uma inversão "barroca": como o tempo entendeu Vieira?

O ponto é: como, pelo tempo, considerado aqui um vértice essencial da construção vieirense, nos é permitido entender o projeto do jesuíta. Resta esclarecer qual foi esse projeto.

    Vieira, em seus escritos variados, desde sua imensa produção epistolar até seus escritos "eminentemente proféticos", passando pelos seus mais de duzentos sermões publicados, traçou um projeto político-teológico para Portugal da Restauração e para o mundo católico. Isso, como observado por Pécora, perpassa seu texto criando uma "unidade teológico-político-retórica" na obra do loiolano. O objetivo do projeto vieirense estaria expresso na realização do V Império.

    5º porque antecedido pelos impérios romano, grego, persa e caldeu. 5º e último, como na visão da estátua monumental, símbolo dos 4 impérios citados, formada por um cabeça de ouro, peito e braços de prata, ventre e coxas de bronze, pés de ferro e argila, esmagada por uma pedra monumental, que ocupou o lugar da estátua. Visão sonhada por Nabucodonosor, desvelada e revelada pelo profeta Daniel (Dn, 2, 44). Vieira, porém, não estava sozinho. Esta passagem bíblica gerou outras propostas de V Império, no século dezesseis, por sinal, uma época marcada por um espírito religioso, pelas Reformas, pela crença na origem divina e no poder do monarca.

    Mas voltemos para Vieira. O V Império seria Portugal e se iniciaria no ano de 1666. Seu líder temporal seria D. João IV, enquanto na esfera espiritual reinaria Cristo. O V Império seria a unificação do mundo, com a redenção do povo hebreu, a aceitação dos indígenas americanos e a aniquilação dos mouros e protestantes. Império católico, universal; "um só rebanho, um só pastor".

    O tempo, dentro disso, seria o palco onde se passaria a ação - passada-presente-futura. Ação humana, necessária enquanto causa segunda da Causa Primeira. Nessa marcação de cena, o tempo era o eixo característico ao homem e à imperfeição, contrapostos ao Perfeito-Divino-Infinito.

Fundamentado na ortodoxia católica, formado nos preceitos neo-escolásticos e tridentinos, leitor crítico de Sto. Agostinho, Vieira estabeleceu uma noção de tempo baseado na separação entre o Perfeito e o imperfeito e de um tempo regulador, ao mesmo tempo que inerente, do seu programa prófetico.

Vamos tentar aqui discutir e indicar possibilidades interpretativas para estes dois aspectos do tempo. Para o primeiro aspecto, o da separação das esferas humana-Divina, traremos aqui o grupo sermônico do Mandato, observando seu tema: o amor. Para o segundo, o tempo e o programas profético, trataremos dos 3 Sermões de São Francisco Xavier dormindo, vendo a questão dos sonhos.

Os seis sermões do Mandato estão dispersos nos 12 (para alguns 14) volumes de seus sermões. Talvez seja necessário falar ainda um pouco mais dessa obra tão conhecida que se inicia em 1670 e só termina dois anos após a morte de Vieira, em 1699: a editio princeps - a publicação dos sermões de forma conjunta e autorizada pelo autor. Para tal feita, o jesuíta dedicou parte de seus últimos anos de vida - dos quais os dez últimos foram passados no Brasil - revisando e rescrevendo sua obra sermônica, e enviando para publicação volume por volume sem "qualquer ordem cronológica ou ideológica" (Cidade, 1985, 109) definida de sermões. Assim, por exemplo, o primeiro sermão do Mandato a sair publicado na coleção, seria o que por último fora pregado. Digo seria pois não se sabe ao certo se as datas e os locais indicados são corretos em relação ao quando e onde foi pregado. Mas isso não é o mais relevante.
    O que temos que ter em conta é que os textos apresentados na primeira publicação e depois reimpressos, rearranjados, atualizados ortograficamente em outras edições posteriores, são textos reelaborados, repensados do alto de quase um século de vida, enriquecidos e aumentados (talvez para compensar a ausência de elementos essenciais para a retórica parenética: a voz, a encenação, em suma, o teatro moral com seus atores, palco e público).

     Com esses adendos, temos que resolver um outro problema: por que estudar os sermões do Mandato enquanto um bloco se eles não aparecem ligados ou em conjunto dentro da obra? A justificativa ou a razão surgem após a leitura atenta dos sermões.

    Mais do que unidos pelo mesmo rito litúrgico - o Mandato, a lavagem dos pés -, os sermões têm o mesmo tema: o amor de Cristo. Tema talvez fruto da própria passagem bíblica, o capítulo 13 do evangelho de João, ao qual está relacionado a comemoração religiosa. O porém é que mais do que o amor de Cristo, Vieira escreveu-pregou sobre a perfeição do amor de Cristo, contrapondo à imperfeição do nosso amor, do amor humano. E aqui reside nosso interesse: essa diferença e como Vieira demonstrou essa diferença.

    No sermão do Mandato de 1643, Vieira explicitou isso pelos remédios do amor, que seriam quatro: "o tempo, a ausencia, a ingratidão, e sobretudo o melhorar do objeto." (v.IV, 293). Remédios do amor porque o amor foi colocado como doença incurável de Cristo, que por nos amar muitíssimo, morreu. Morreu, o que nos salva, o que nos cura, por estar enfermo de amor, morreu por amar os homens.
    O tempo, e me permitam ir parafraseando Vieira, seria remédio do amor pois é agente destruidor, erosivo: "Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera?". É desvelador de defeitos. É abrandador de paixões e extremos. Porém, o tempo tem esses poderes "sobre o amor humano, que é fraco; sobre o amor humano, que é inconstante; sobre o amor humano, que não se governa pela razão, senão por apetite; sobre o amor humano que, ainda quando parece mais fino, é grosseiro e imperfeito."

    Mas isso não é amor. O amor perfeito "vive imortal sobre a esfera da mudança", "isento da jurisdição do tempo". O amor que é "verdadeiro, tem obrigação de ser eterno; porque se em algum tempo deixou de ser, nunca foi amor". Onde se encontraria este amor? Em Deus. Que ama "desde o princípio sem princípio da eternidade; porque desde então começou o Verbo eterno a amar os homens, ou desde então os amou sem começar".

    Retornamos ao primeiro ponto desta comunicação. Balizado pelo amor, o tempo, em Vieira, pertence à esfera da imperfeição, à esfera humana, e sua ação erosiva geraria a mudança. A mudança não pertence à Eternidade, porque a Eternidade É. Não Foi nem Será. O tempo vieirense-católico implica passado, presente e futuro, onde o diferente marca o tempo. Por outro lado, o igual marcaria o Eterno: "princípio sem princípio"; "amou sem começar". Esse Idêntico (Hansen, 1997) seria o campo do Divino, da Perfeição. Para os homens, restaria a imperfeição temporal, sujeita à corrosão, ao envelhecimento.

    Essa contraposição entre temporal-eterno; imperfeito-perfeito reaparece no mesmo sermão ao tratar dos outros remédios. Como também, no sermão de 1645, por meio da melhor ciência do objeto, que permite amar melhor, contraposta à ignorância. Ou ainda, como no sermão de 1670, com as provas de amor de Adão versus as provas de Cristo. Essas oposições estão encerradas no binômio tempo-eternidade. Mesmo porque, ao colocar os argumentos dos outros sermões, Vieira recorreu, inúmeras vezes, ao tempo e ao espaço qualificado pelo tempo.

    Pode-se dizer que essa contradição havia sido apontada já em Sto. Agostinho, em suas Confissões. O que é verdade. Porém, Vieira, homem de uma época marcada pelo sensível, não só qualificou o tempo contraposto à eternidade. Ele o materializou. O tempo deixou de ser uma dimensão de lembranças, contida na percepção do ser humano, para adquirir estrutura sólida. As construções usadas ao longo da pregação, que permitem ver um tempo-ação, como: "Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera?", eram mais do que meras figuras de linguagem. Elas tinham uma função no discurso.

A retórica se unia a uma prática (Pécora, 1994). A figura tinha como uso criar uma certa sensação no público que o aproximasse da proposição que está querendo ser passada. (Hansen, 1997). A figura servia como transporte para uma realidade simbólica (Bosi, 1997), que na retórica sermônica vieirense tinham  uma razão, um porquê.

    Essa consubstanciação do tempo servia para indicar que o tempo pertence ao Homem, ao corpo. Mais do que isso, que era da responsabilidade do Homem. Que pertencia ao campo das Causas Segundas. Que devia ser escrito para a, em direção a Causa Primeira, que é Deus. O ser escrito passa pela realização de um telos. Para Vieira, esse telos, já anunciado e profetizado, estaria na realização temporal do V Império.

Introduzimos, agora, uma nova personagem para tratar do outro aspecto do tempo: a matéria profética.

Vejamos São Francisco Xavier Dormindo e o produto desse sono: o sonho.

Os sermões de São Francisco Xavier foram publicados em 1694, em um único volume, o oitavo, da editio princeps. São 13 sermões, com duas "propostas" ou "prefações": uma ao bloco dos três sermões de Xavier dormindo, que ainda possui uma conclusão; outra aos dez sermões de Xavier Acordado. Trataremos somente dos sermões de Xavier dormindo, pois nosso interesse é perceber o conteúdo profético e temporal do sonho.
    Para cada um dos três sermões de Xavier dormindo, Vieira tratou de um sonho tido por Xavier. Vamos resumi-los, usando muitas vezes do próprio texto sermônico.

O primeiro sonho mostrava Xavier lutando contra "um índio agigantado e robustissimo", que o esmagava entre o braço e quase o matava por asfixia. Tão real era a dimensão onírica que Xavier acabara asfixiado. Depois, no mesmo sonho, Xavier trazia o imenso índio aos ombros. E do mesmo modo, Xavier, ao acordar , estava dolorido e cansado. "A lucta e o peso era sonhado mas os effeitos eram verdadeiros". Esse índio era a Ásia que Xavier viria a converter.

    No segundo, Xavier, dormindo em um hospital de Roma, gritara, no meio da noite, "mais, mais, mais". Deus revelara à Xavier, por meio de um sonho, as desgraças que o santo "havia de padecer por seu amor [por Deus].". E por ser o amor de Xavier por Cristo tão grande, "e com serem tão grandes, tão excessivos, tão inumeraveis, era tão generoso o animo de Xavier, e a sêde de padecer por Cristo tão fervorosa, tão ardente, tão insaciável, que nada o intimidava, nada o satisfazia, nada o fartava, tudo [todas as desgraças, os trabalhos, as doenças, as perseguições, os combates] lhe parecia pouco; e assim pedia mais."

No último sonho, o Diabo, vendo Xavier cansado, pensou que o Santo estaria descuidado. Assim, mostrou ao Santo "uma representação menos decente, que sua virginal pureza lhe permitia", e tão fervorosos foram os sentimentos de repúdio de Xavier que suas veias estouraram e ele "acordou com o rosto todo banhado em sangue".

    Assim Vieira introduziu dois assuntos fulcrais para nossa comunicação e para entender o tempo: a profecia e os cuidados.

Antes de tudo, é necessário falar um pouco mais sobre Profecia e também sobre o Tempo, Para tanto, vamos apresentar dois textos. Ambos publicados na edição do ano passado da Revista da Biblioteca Mario de Andrade. O primeiro, que fala explicitamente sobre profecia, é do Prof. Alfredo Bosi, onde ele se detém na Defesa perante o Tribunal do Santo Inquérito de Vieira e sua defesa de que Bandarra era um verdadeiro profeta. O segundo, tratando do tempo e combatendo o uso de termos  anacrônicas para entender ou explicar Vieira, é do Prof. João Adolfo Hansen.
    Para Bosi, a profecia no limite estaria circunscrita ao campo da fé: a profecia é Verdade para quem nela acredita, para quem tem fé. Fé em um telos. Que teria sido anunciado pela profecia. E que, com o passar do tempo, com a proximidade da resolução do telos, haveria sinais comprobatórios dessa profecia.

Assim, indica Bosi, Vieira advogava o novo - o passar do tempo - como eterna melhora (no sentido de uma compreensão do Divino), pois mais perto do acontecer profetizado, como numa metáfora da História do Futuro: mesmo tendo os antigos melhor lume, hoje se ilumina melhor pois estamos mais perto do que vai acontecer. Ou ainda, no caso dos dois amores, presente no Sermão do Mandato de 1645, onde o segundo amor, por se ter mais ciência do objeto, adquirida com o decorrer da experiência e do tempo, é melhor que o primeiro. Bosi conclui que a visão de tempo do jesuíta é "progressiva e (arriscaria dizer) progressista" (Bosi, 1997, p.166).

    Rebatendo essa leitura, está o texto de Hansen. Hansen coloca o tempo do jesuíta como linear, pois católico ortodoxo, no qual "não há progresso" (Hansen, 1997, p.186), sendo suas diferenças marcadas pela repetição do Idêntico. Ou seja, pelo dobramento do Infinito, da esfera perfeita e Divina, no eixo imperfeito e humano do tempo. Não a superação do passado, portanto, não pode haver progresso - conceitos anacrônicos se aplicados ao século dezessete. O que não significa que não há mudanças. As mudanças são dadas na refiguração do ser representado no passado.

    Apesar de mais simpáticos ao argumento de Hansen - por assim dizer, mais "histórico" - fica a pergunta: como estaria definida a vinda do V Império, senão como superação do império anterior e espaço a ser construído para o reino de Cristo na Terra? A resposta resida talvez em um telos definido, baseado não na superação mas na volta, no religare. Uma redenção final que não é fruto da melhora progressiva mas sim, anúncio já feito e já realizado no espaço Divino. Redenção que depende do homem, pelas Causas Segundas, mas que corresponde ao pagamento de nossa salvação pelos nossos pecados (originais).

Voltando aos sonhos, Vieira escreveu que se sonha com o que se cuida. Os sonhos são "relíquias dos cuidados", reflexo de como se vive. Dentre estes, há os que se distinguem dos normais, são os proféticos, nos termos de Vieira: "esclarecedores" ou "clarificadores". Mas porque a profecia se manifesta nos sonhos?
Porque quando se dorme, aproxima-se da morte, portanto, vai-se para longe do corpo; fora do corpo só há alma, que é infinita e portanto mais próxima de Deus. E Deus é que revela.

    Mas não se pode sonhar com o futuro, ou seja, ter um sonho clarificador, enviado por Deus, quando não se está cuidando do presente. Precisa-se estar cuidando de uma matéria no presente (dia) para profetizar o futuro (sonho) da mesma matéria. Aqui ocorre a injunção do Eterno na temporalidade, que revela o que vai acontecer, o SERÁ do É presente. Mas para isso o É precisa SER, ou melhor, ESTAR SENDO.

Aqui retomamos e rearranjamos a discussão dos dois textos sobre os quais falamos à pouco. O sonhar com o futuro, ou seja, a revelação, o profetizado, depende dos cuidados do Presente, das Causas Segundas.

    E como isto foi colocado por Vieira? O exemplo principal, nessa sua definição do onírico, foi o sonho de Nabucodonosor, fundamento também principal da formulação profética do V Império vieirense junto às Trovas de Bandarra. Nabucodonosor só pôde sonhar com Impérios pois era Imperador e estava cuidando de seu Império. Xavier, exemplo máximo da vigilância, cuidando da virtude e da pregação, sonhou com o futuro da conversão da Ásia. Tivera anunciadas suas lutas e seus trabalhos em sua missão para o Oriente.

Em resumo, a matéria destes Sermões seria: seja vigilante, seja cuidadoso, tenha cuidados com o que é seu, pois assim poderá sonhar e confirmar a profecia futura. Obviamente que aqui existe um sentido subjacente ligado à própria teoria do V Império. Não era à toa o uso do sonho de Nabucodonosor. Há uma mensagem político-teológica dada através da retórica sermônica. Uma mensagem endereçada para o público-ouvinte: os portugueses. E a mensagem, no limite, seria: é necessário cuidar do Reino Português para a realização do V Império.

    Quando nós cuidávamos do nosso reino-império, diria Vieira, no tempo da expansão, tivemos as Trovas de Bandarra, que profetizaram a vinda de D. João IV - não D. Sebastião - para o evento do Império Católico. Agora, é necessário atuar para realizar o Destino português. E o tempo será o palco da realização dos nossos (lusitanos e vieirenses) sonhos.

Obrigado.

 


BOSI, A. "Vieira e o reino deste mundo", Revista da Biblioteca Mário de Andrade. 55, jan./dez. 1997, pp. 163-184.
CIDADE, H.. Padre António Vieira. Lisboa, Presença, 1985.

HANSEN, J.A. "Vieira, forma e função", Revista da Biblioteca Mário de Andrade. 55, jan./dez. 1997, pp. 185-197.

MEIHY, J.C.S.B., "Introdução", In: VIEIRA, A., S.J.. Escritos instrumentais sobre os índios. São Paulo, Loyola, 1992.

PÉCORA, A.. O teatro do sacramento. A unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antonio Vieira. São Paulo, Unicamp/Edusp, 1994.



* Comunicação apresentada no simpósio "Sujeito na História; práticas e representações", XIV Encontro Regional de História/ANPUH, em 11 de outubro de 1998, na PUC/SP, e publicada nos Cadernos de Criação, 27, Março, 2002, pp. 200-207

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