O NONSENSE
EM L. CARROLL E E. A. ABBOTT:
REFLEXOS MATEMÁTICOS DO
RELATIVISMO NA ERA VITORIANA
OU
DE ALICE AO PROMETEU QUADRADO:
REFLEXOS MATEMÁTICOS DO
RELATIVISMO NA ERA VITORIANA*
RESUMO:Em um momento de quebra das certezas científicas e desmonte das teorias absolutas e unívocas da Matemática, em suas mais variadas disciplinas, são publicadas na Inglaterra Vitoriana as Alices (1865, 1872), de Lewis Carrol, e Flatland (1884), de Edwin A. Abbot. Estas obras mais do que marcadas pelas "revoluções científicas", tiveram como base as Geometrias Não-Euclideanas e a lógica do século XIX, que embebidas no nonsense construíram os corpos dos livros. Dessa forma, abre-se a possibilidade de vermos os mundos de espelhos, do suprareal e geométricos de ‘Alice’ e de ‘Mrs. Square’ enquanto fontes para o estudo da sociedade vitoriana, estratificada e desigual, perturbada pelas agitações dos campos científico-matemáticos e das teorias do conhecimento.No início do século passado, as ‘middle classes’ inglesas iniciaram uma modificação da sociedade, impulsionadas pelo evangelismo e pelo utilitarismo do século XVIII. (1) Houve a delimitação dos papéis sexuais e sociais, a moralização da aristocracia (2), a idealização da família como célula formadora; em suma, houve a transformação das instituições, minimizando a importância da Coroa e da aristocracia na vida social. Ocasionou isto, contudo, uma instabilidade, ou melhor, um sentimento de dúvida e ansiedade na Inglaterra vitoriana (3). Enquanto expandia seu império, a Grã-Bretanha do meio do século XIX sofria transformações internas, buscando constantemente o novo (4) . A laicização e moralização da sociedade mostravam uma dualidade, às vezes hipócrita, entre uma pregação puritana e a proliferação da pornografia e da prostituição, ou ainda, a pobreza social e o individualismo egoísta (5).
Começou-se a refutar a concepção autoritária, da razão e da verdade absoluta, em detrimento de uma visão mais abrangente marcado pelo "espírito relativo". Dentro disso, a publicação da Origem das espécies, em 1859, suscitou uma nova discussão sobre a origem do humanidade. A quebra do paradigma do homem vindo diretamente de Deus ou dos seres vivos, da abiogênese, refletiam uma nova percepção do mundo.
O pensamento moderno se distingui do antigo pelo cultivo do espírito relativo, ao invés do absoluto. A filosofia antiga procurou envolver todos os objetos num contorno eterno, fixar o pensamento numa fórmula necessária, e as variedades de vida em tipos ou gêneros. Para o espírito moderno nada é ou pode ser corretamente conhecido, a não ser relativamente e sob condições (7).
Nesse
panorama, surgiram as obras de Lewis Carroll (pseudônimo de Charles
L. Dodgson) e Edwin A. Abbot (que também usa um pseudônimo:
A. Square). O primeiro, professor de matemática em Oxford, diácono
do ‘Christ Church College’, ficou famoso pelos livros de Alice (In
Wonderland, 1865, Through the looking glass, 1872) , publicações
das histórias que contava para as filhas do Dr. Liddel, deão
do ‘Christ Church’. Abbott, também religioso, schoolmaster com grande
paixão pela matemática, escreveu Flatland: a romance in
many dimensions (8), impresso em 1884.
Nossa proposta é analisar as publicações desses autores,(9) atentando para certos pontos de confluência: o nonsense, formulado e constituído através das renovações matemáticas; e enquanto reflexo humorístico, muitas vezes sardônico, feito através desse nonsense específico, da sociedade e do espírito da época, na Inglaterra.
A literatura nonsense inglesa teve como possível predecessor As viagens de Gulliver (1733), no qual Jonathan Swift criticava a sociedade inglesa, empirista e individualista, do século XVIII, parodiando-a através de mundos fantásticos(10). Sua origem mais direta, entretanto, veio das poesias infantis e da literatura popular da Grã-Bretanha, que muitas vezes se limitavam a trocadilhos, a jogos de palavras sem nexo algum, a não ser a própria dinâmica dos versos. Quando havia histórias, eram supra-reais, e, em grande parte, com situações violentas. Essas cenas, porém, não eram colocadas com repulsa, muito menos tinham sentido punitivo, como no caso extremo dos versos "pedagógicos" de Struwwelpeter.
Esses elementos foram primeiramente formalizados e desenvolvidos por Edward Lear, com a publicação, em 1846, de The book of Nonsense, compilação de seus poemas contados para crianças. Suas poesias se formavam a partir de e se restringiam a um humor de um "clown who finally became unable to prevent his emotions from spilling into his writing" (11).
O nonsense de Carroll e Abbott continha um elemento a mais na formação do texto: a Matemática. A obra de Carroll foi constituída através de jogos de linguagem, baseados na Lógica (Dodgson, desde criança, entretinha suas irmãs com esses jogos), nos quais os capítulos só terminam quando as proposições se esgotam (12).
Com inúmeras publicações sobre Lógica, puzzles, acrósticos, Carroll usou de seus conhecimentos matemáticos e da Lógica Booliana para construir proposições em Alice in Wonderland, sendo muitas vezes o significado particular da frase suplantado pela forma, proporcionando brincadeiras tais como: "Do cats eat the bats?(...)Do bats eat cats?" (13).
Se trocarmos
as palavras por símbolos matemáticos (‘cats’ por x , ‘bats’
por y e a ação, ‘eat’ , por R,), perceberemos o seguinte:
x R y e y R x estão formalmente, internamente corretas.
O que irá determinar o sentido particular da frase serão
as naturezas particulares dos componentes x, y e R. Num mundo onde as regras
são diferentes, o sentido interno das frases poderá ser outro
qualquer, mas os silogismos ainda são coerentes por si só.
O diálogo entre ‘Alice’, com pescoço esticado pelo pedaço
de cogumelo, e o ‘Pigeon’ exemplifica isso:
"I-I’m a little girl" said Alice, rather doubtly, as she remembered the number of changes she had gone through, that day.
"A likely history indeed" said the Pigeon in a tone of the deepest contempt. "I’ve seen a good many little girls in my time, but never one with such a neck as that! No, no! You’re a serpent; and there’s no use denying it. I suppose you’ll be telling me next that you never tasted an egg!"
"I have tasted eggs, certainly" said Alice, who was truthful child; "but little girls eat eggs quite as much as serpents do, you know"
"I don’t believe it," said the Pigeon; "but if they do, why , then they’re a kind of serpent; that’s all I can say.
O ‘Pigeon’,
formalmente, teria razão: ‘serpents’(s) têm pescoço
comprido; ‘Alice’(a) também o tem, portanto é uma
s.
Entretanto, a é uma ‘girl’(g), mas g comem ‘eggs’,
tal como s, portanto por subordinação s >g>a(14).
Além dessa questão, surge no exemplo acima (tal como: nas suas constantes mudanças de tamanho, na suas discussão com a ‘Catterpillar’ ou com o ‘Cheschire Cat’) uma dúvida de ‘Alice’ sobre sua própria natureza. Sob outros parâmetros, em um novo mundo, suas certezas se tornam inconsistentes, e pode-se questionar a existência humana.
Isto foi ressaltado em Alice through the looking-glass: a reflexão do espelho conflui com a inversão dos jogos de linguagem carrollianos. Os elementos que conduzem a história, o jogo de xadrez e suas regras (15)(aparentemente o espelho foi acrescentado depois), se enquadram também perfeitamente (16). Se traçarmos uma reta no tabuleiro, a partir dos lados que inicialmente se põem as peças, dividindo-o em duas partes iguais, teremos uma relação de assimetria entre as figuras, como se refletidas num espelho. A duplicidade das peças brancas ou vermelhas (excetuando o ‘rei’ e a ‘rainha’) é a mesma que, por exemplo, ordena as ações de ‘Tweedledum’ e ‘Tweedledee’, a de imagens espelhadas (17) . Todas essas construções criam um clima de incertezas, onde o absoluto não existe, refletindo, talvez, o clima intelectual que vivia a Inglaterra da época.
Fazendo comparações desse tipo, podemos encontrar nos livros de Carroll, uma crítica ou uma descrição da época. A poema do ‘The Walrus and the Carpenter’, em Alice through the looking-glass, poderiam ter representado as eleições políticas, onde os Torys e Whigs seduzem os eleitores para depois jantá-los. Ou ainda, ‘Humpty Dumpty’, com sua roupa engomada, representaria extratos da ‘middle class’ que se elevaram na hierarquia social de forma artificial e sem bases, podendo cair a qualquer momento (18). Houve ainda paródias à vida acadêmica de Oxford, como o caso da ‘Mock Turtle’ e do ‘Gryphon’ ( o Grifo é o símbolo do ‘Trinity College’) satirizando o sentimentalismo e saudosismo dos alunos (19).
Doze anos
depois de Through the window-glass, Edwin A. Abbott publicou Flatland.
O livro é narrado por ‘A. Square’ (pseudônimo que Abbott usou
para publicar o livro), habitante de Flatland, um mundo de duas dimensões.
A descrição de seu mundo, suas viagens ao mundo unidimensional
(‘Lineland’) e ao de 3 dimensões (‘Spaceland’) compõem a
obra.
Os moradores da Bidimensão são figuras geométricas e a hierarquia da sociedade é baseada no número de lados que cada ser possui: os homens do povo são triângulos isósceles; as ‘middle classes’ são equiláteros; os membros da ‘gentry’ são quadrados e os aristocratas são polígonos regulares com mais de 5 lados. O topo da hierarquia é ocupado pelos ‘Circulars’, polígonos com tantos lados que arrendodaram sua forma. Essa hierarquia, entretanto, é muitas vezes quebrada por uma lei natural: os filhos de uma classe ganham um lado a mais que seus pais. Só que essa lei é freqüente apenas no extratos acima das ‘middle classes’, acontecendo raríssimas vezes entre esses equiláteros e raramente ocorrendo entre os ‘Isocels’.
No mais baixo nível, ou melhor, sem possuir ‘lados’, estão as linhas retas: as mulheres. As fêmeas, por serem retas, são frágeis, mas ao mesmo tempo nocivas, às vezes mortais. Seu corpo é na visão (20) de um habitante de ‘Flatland’ simplesmente um ponto, que pode furar um incauto transeunte. Para evitar isso, as mulheres são obrigadas a balançar sua extremidade traseira para serem identificadas.
Flatland
foi lançado em meio a longas discussões sobre as possíveis
outras dimensões e mundos, sobre o fim do paradigma Euclidiano,
da construção de uma nova visão geométrica.
Abbott usou essas novas posições dentro de seu romance. O
grande ponto da história é a tentativa de ‘Mrs. Square’ explicar
a terra tridimensional para seus pares. A personagem, entretanto, não
obtém êxito e é encarcerado pelas declarações
revolucionárias, mas, mesmo assim, lança um grito pela lucidez:
Prometheus up in Spaceland was bound for bringing down fire for mortals, but I - poor Flatland Prometheus - lie here in prison for bringing down nothing for my countrymen. Yell I exist in the Hope that these memoir, in some manner, I know not how, may find their way to the minds of humanity in Some Dimension, and may stirp up a race of rebels who shall refuse to be confined to limited dimension. (21)
Podemos
encarar o mundo bidimensional como a descrição da sociedade
vitoriana das últimas décadas do século XIX, onde
as novas descobertas estavam rompendo o paradigma da verdade absoluta (no
caso do livro, a bidimensionalidade), colocando a questão do relativismo
da verdade (a existência de outras dimensões), e com isso
a formulação de uma nova ética, e a reação
da sociedade, que, ao nosso ver, teria sido hiperbolizada por Abbott na
paródia.
Nos outros exemplos dados aqui, podemos fazer paralelos com a realidade inglesa da época. No caso das mulheres bidimensionais, lembram a própria situação da inglesa vitoriana: vista como sexo frágil, ao mesmo tempo que se iniciava o movimento feminista e sufragista (22). A digressão pode ir mais longe: podemos unir essa divisão hierárquica-geométrica (entre os homens-homens; homens-mulheres), a da sociedade vitoriana (23), onde os papéis sociais e sexuais estavam delimitados, fruto de um processo que começara com o utilitarismo e o evangelismo no final do século XVIII. Um dos resultados desse processo, como já falamos, foi uma sociedade estratificada, dual, na qual reinavam pobreza e desigualdade, mas sendo o individual e espaço privado muito importantes.
Em
Flatland, a casa dos ‘Square’ (figura ao lado) é dividida em inúmeros
cômodos, cada qual com sua função. Há um quarto
para cada filho, para os netos, um para a filha, um para a esposa, um para
os criados e outro para o dono da casa. Há duas entradas - uma para
as mulheres e uma para os homens. Essas divisões de espaço,
buscando o privado, ocorreram, similarmente, nas casas da aristocracia
e das ‘middle classes’ britânicas (24).
Voltando, entretanto, ao ponto central do livro, o contato com novas dimensões produziu na personagem uma necessidade de estabelecer novos parâmetros, repensando até a existência de um deus ou um ser divino. Entretanto essas novas reflexões, ao contrário de ‘Alice’, foram encaradas como frutos de uma grande revelação.
‘Alice’ fica angustiada com uma nova perspectiva, ou melhor, com a falta de uma verdade absoluta (25). Nos finais das Alices, porém, crescendo novamente ou se tornando rainha, ela se revolta, se rebela, porque não se sente mais intimidada ou amarrada pelas dúvidas, percebendo que todos não passam de cartas ou peças de xadrez. ‘Mrs. Square’, ao contrário, é preso pela sua revelação.
Até que ponto a trajetória das personagens pode transmitir um otimismo de Carroll ou negativismo de Abbott, em relação às novas propostas, é difícil determinar. Abbott escreveu uma década depois, quando as discussões estavam muito mais avançadas. Quando publicou-se Alice in Wonderland, as Geometrias Não-Euclidianas não tinham ganhado sua importância na vida intelectual inglesa. Além disso, de longe, a vida de Carroll foi muito mais biografada, discutida e relacionada com a obra. Abbott teve algum sucesso na época para cair posteriormente no esquecimento. Pouco se sabe além de sua profissão, de sua paixão pela matemática e dos anos que nasceu e morreu (1838-1926)(26).
Podemos entretanto, ver nesses autores representantes de um questionamento da teoria do conhecimento e das definições de ‘Verdade’ e ‘Ciência’. Dentro disso, espelhadas nas suas obras, estavam suas posições diante do relativismo (27) . Seja a insegurança e angústia, esperança, a incompreensão da sociedade burguesa, derrota ou vitória
Essas posturas estão formuladas dentro de um nonsense específico, construído a partir da matemática. Desse modo, podemos pensar que esta forma só pode surgir, para os autores, enquanto representante desse momento, dessas transformações. O nonsense está ligado à quebra da verdade científica absoluta, não só pelo momento no qual é escrito, mas por externar as reflexões de Carroll e Abbott, e ainda mais, por ser ele intrinsecamente expresso dentro desses novos preceitos matemáticos.
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