Damásio E. de Jesus é advogado e professor de Direito
Penal
CASO DA MORTE DO INDÍGENA PATAXÓ – HÃ-HÃ-HÃE
GALDINO JESUS DOS SANTOS
ENSAIO SOBRE O DOLO EVENTUAL, PRETERDOLO E CULPA CONSCIENTE
DAMÁSIO E. DE JESUS
PROCESSO-CRIME N. 17.901 – TRIBUNAL DO JÚRI DE BRASÍLIA
AUTORA: JUSTIÇA PÚBLICA
ACUSADOS:
MAX ROGÉRIO ALVES,
ANTÔNIO NOVELY CARDOSO VILANOVA,
TOMÁS OLIVEIRA DE ALMEIDA E
ERON CHAVES DE OLIVEIRA
CONSULENTE:
MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS
ÍNDICE: 1. A tutela legal do direito à vida. 2. O fato. 3.
O fato típico. 4. A teoria finalista da ação. 5. A
decisão desclassificatória. 6. O dolo eventual. 7. Crime
culposo e preterdoloso. 8. Culpa consciente. 9. Culpa consciente e dolo
eventual: diferenciação. 10. A hipótese dos autos:
responsabilidade penal a título de dolo eventual. 11. Respostas
aos quesitos. 12. Conclusão.
A solidariedade que mata (“um índio é tão bom quanto
outro”).
Ruth Morris, atualmente Diretora Executiva da Sociedade John Howard de
Toronto e ligada a estudos e programas penitenciários do Canadá,
conta-nos que numa de suas visitas a presídios perguntou ao diretor
local sobre Bill, um indígena seu conhecido. Rindo, o diretor lhe
explicou que Bill, naquela semana, estava cumprindo pena no lugar de seu
irmão, condenado por embriaguez. Recriminando o fato, Ruth recebeu
a seguinte explicação: quando os índios têm
alguma coisa de bom, repartem entre si; quando não têm, pedem
a alguém que tenha; recebendo, distribuem entre si (no Brasil, no
mesmo sentido: FERNANDO PORTELA e BETTY MINDLIN, A questão do índio,
São Paulo, Editora Ática, 1997, p. 23). Da mesma forma, o
mal é coletiva e solidariamente repartido entre eles. A pena criminal
do homem branco é imposta, segundo a Filosofia de vida indígena,
como um mal sobre toda a tribo, não somente sobre o autor do delito.
A infração penal, ensina-nos HANS JOACHIM SCHNEIDER, “não
é tanto um problema individual, é também um problema
que afeta o grupo” (La victimación de los aborígenes en la
Australia Central, Revista de Derecho Penal y Criminología, Madri,
Universidad Nacional de Educación, 1991, n. 1, p. 363, n. 3.3).
A pena não é individual, é coletiva. Logo, repartem
entre eles o seu cumprimento. São solidários no bem e no
mal. E a Justiça aceita a substituição, pois “um índio
é tão bom quanto outro” (“one indian’s as good as another”)
(RUTH MORRIS, Crumbling walls, Why prison fail, Nova York, Mosaic Press,
1989, Native people and the Canadian Justice System, p. 98).
Pataxó - Hã-Hã-Hãe Galdino Jesus dos Santos
morreu porque era indígena, porque era solidário. Estava
em Brasília à procura do bem para sua tribo, tratando do
andamento das ações judiciais relativas à posse e
propriedade das terras onde morava. A solidariedade o matou. E as chamas
que o consumiram não mataram só o homem. Atingiram a tribo
Pataxó, porque “um índio é tão bom quanto outro”.
C O N S U L T A
O Ministério Público
do Distrito Federal e Territórios, por intermédio de seu
Procurador-Geral de Justiça em exercício, Dr. Romeu Gonzaga
Neiva, nos autos do processo-crime n. 17.901, que trata da ação
penal promovida pela Justiça Pública contra Max Rogério
Alves, Antônio Novely Cardoso de Vilanova, Tomás Oliveira
de Almeida e Eron Chaves de Oliveira, por delito de homicídio doloso
qualificado e crime especial de corrupção de menores, remetendo-nos
peças do procedimento, solicita nosso parecer a respeito da respeitável
decisão de fls., que houve por desclassificar a infração
penal mais grave (homicídio qualificado por três circunstâncias)
para lesão corporal seguida de morte, apresentando os seguintes
quesitos:
“1. Quanto à contribuição para o crime:
1.1 Ante as provas apresentadas, pode-se afirmar que algum dos acusados
não contribuiu para o evento criminoso? Qual(is) o(s) acusado(s)?
1.2 Ante as provas apresentadas, há elementos que permitem afirmar
que algum dos acusados concorreu para o crime mediante participação
de menor importância ou quis participar de crime menos grave? Qual(is)
o(s) acusado(s) e qual (is) o(s) crime(s)?
2. Quanto ao elemento anímico:
2.1 Ante as provas apresentadas, os acusados agiram com dolo de homicídio
(animus necandi)?
2.2 Ante as provas apresentadas, se afirmativa a resposta ao quesito anterior,
o dolo se configura em sua modalidade direta ou eventual (os acusados quiseram
ou assumiram o risco de matar a vítima)?
2.3 Ante as provas apresentadas, se afirmativa a resposta ao primeiro quesito,
e estabelecida a modalidade do dolo na resposta ao segundo quesito, sabido
que no Direito Penal brasileiro não há diferenciação
de natureza da responsabilidade de quem quer diretamente (dolo direto)
ou assume o risco de produzir (dolo eventual) um resultado, há justificativa
legal para resposta penal (condenatória, desclassificatória
ou absolutória) diversa em uma ou outra hipótese?
2.4 Ante as provas apresentadas, os acusados poderiam ter agido com culpa
(consciente ou inconsciente)?
2.5 Na eventualidade de se haver afirmado que os acusados agiram com dolo
eventual, quais os elementos que permitem afastar a culpa (consciente ou
inconsciente) e afirmar a existência do dolo eventual?
3. Quanto às questões processuais:
3.1 Ante as provas apresentadas, pode-se afirmar a presença dos
elementos necessários à pronúncia dos réus
para julgamento pelo Tribunal do Júri?”
Passamos a dar nosso parecer.
P A R E C E R
A tutela legal do direito à vida
O direito à vida, juntamente
com diversos direitos humanos fundamentais, há muito foi consagrado
nos textos legais históricos. A Magna Charta Libertatum, outorgada
por João Sem-Terra em 15 de Junho de 1215, previa-o entre seus 61
itens. Da mesma forma, a Petition of Rights de 7 de junho de 1628.
Posteriormente, as históricas
declarações norte-americanas enalteceram definitivamente
o direito à vida. A Declaração de Direitos de Virgínia,
de 16 de junho de 1776, expressamente previa em sua Seção
I: “Todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes
e têm certos direitos inatos de que, quando entram no estado de sociedade
não podem, por nenhuma forma, privar ou despojar a sua posterioridade,
nomeadamente o gozo da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e
possuir a propriedade e procurar e obter felicidade e segurança”.
E a Declaração de Independência dos Estados Unidos
da América, de 4 de julho de 1776, proclamou: “consideramos de per
si evidentes as verdades seguintes: que todos os homens são criaturas
iguais; que são dotados pelo seu Criador com certos direitos inalienáveis;
e que, entre estes, se encontram a vida, a liberdade e a busca da felicidade...”.
A Declaração francesa
dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1.789, proclamava
a defesa solene dos direitos naturais do homem, especialmente à
vida, inalienáveis e sagrados.
Importante destacar um dos considerandos
da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, proclamada
em 10 de dezembro de 1948: “Considerando que o desprezo e o desrespeito
pelos direitos da pessoa resultam em atos bárbaros que ultrajam
a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que as
pessoas gozem de liberdade de palavra, de crença e de liberdade
de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais
alta aspiração do homem comum”. Em seu art. III, previa expressamente:
“Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança
pessoal”.
O Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos, de 16 de dezembro de 1966, ratificado pelo Brasil
em 24 de janeiro de 1992, determina em seu art. 6° que “o direito à
vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá
ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente
privado de sua vida”.
A Convenção Americana
de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de
22 de novembro de 1969, também ratificada pelo Brasil em 25 de setembro
de 1992, estipula em seu art. 4°: “Direito à vida. 1. Toda pessoa
tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido
pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém
pode ser privado da vida arbitrariamente”.
A Declaração sobre
o Direito ao Desenvolvimento, de 4 de dezembro de 1986, em seu art. 5°,
prevê: “Os Estados tomarão medidas firmes para eliminar as
violações maciças e flagrantes dos direitos humanos”.
Por sua vez, a Declaração e Programa de Ação
de Viena, de 25 de junho de 1993, estipula em seu item 31 a necessidade
de garantir-se aos povos indígenas a plena e livre participação
em todos os aspectos da sociedade.
No Brasil, a Carta Política
do Império, de 24 de março de 1824, e a Constituição
da República, de 24 de fevereiro de 1891, respectivamente, em seus
arts. 179 e 72, protegiam todos os direitos civis e políticos dos
cidadãos brasileiros, dentre eles o mais precioso, o direito à
vida. Igualmente, era protegido pelo art. 113 da Constituição
da República de 16 de julho de 1934, ao proclamar a inviolabilidade
dos direitos concernentes à segurança individual e pelo art.
122 da Constituição de 10 de novembro de 1937. A Carta Magna
de 18 de setembro de 1946, em seu art. 141, caput, assegurava “aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos
concernentes à vida” etc.
O art. 150, caput, da Constituição
do Brasil, de 24 de janeiro de 1967, dispunha “aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à
vida, à liberdade, à segurança e à propriedade”,
redação mantida de forma idêntica pelo art. 153 da
Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969.
Por fim, a Constituição
da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, proclama
em seu art. 5°, caput, que “todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito
à vida...”
O exercício do direito
à vida é protegido indistintamente, independentemente de
cor, raça, religião ou condições pessoais de
procedência. Nossa Carta Magna, dando prevalência à
“dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III), assegura-nos o exercício
do “bem, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação” (art. 3º, IV). Quanto
aos indígenas, dedica-lhes um capítulo inteiro, conferindo-lhes
direitos necessários ao seu “bem-estar” e “reprodução
física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”
(art. 231, § 1º, do Capítulo VIII do Título VIII).
Asseguramos, pois, aos indígenas,
os mesmos direitos que gozamos, respeitados seus usos, costumes e tradições.
2. O fato
Max Rogério Alves, Antônio
Novely Cardoso de Vilanova, Tomás Oliveira de Almeida e Eron Chaves
de Oliveira, jovens, passeando de carro em Brasília, à noite,
por volta das 3h00 da madrugada, resolveram fazer, segundo eles, uma “brincadeira”,
pondo fogo num suposto mendigo que dormia num banco de um ponto de ônibus.
Foram a um posto de gasolina e compraram dois litros de álcool,
colocando-os em dois vasilhames de plástico. Mas não executaram
o fato de imediato. Rondaram pela cidade e, duas horas depois, por volta
das 5h00, dirigiram-se ao local onde a vítima se encontrava. Esconderam
o automóvel. Atravessaram a rua e derramaram líquido em Galdino
Jesus dos Santos, indígena Pataxó - Hã-Hã-Hãe,
que dormia. Riscaram fósforos e o incendiaram, produzindo-lhe a
morte.
3. O fato típico
Para que haja crime é
preciso, em primeiro lugar, uma conduta humana positiva ou negativa. Mas
nem todo comportamento do homem constitui delito. Em face do princípio
de reserva legal, somente os descritos pela lei penal podem assim ser considerados.
Portanto, por exemplo, a subtração de coisa com a simples
intenção de usá-la (furto de uso) é fato irrelevante
para a nossa legislação penal, pois não se subsume
à norma incriminadora do art. 155 do Código Penal. Falta-lhe
o fim de assenhoreamento definitivo (o animus rem sibi habendi), contido
na expressão “para si ou para outrem” do tipo. Sem ele o fato não
se ajusta à norma. É atípico. Desta forma, somente
o fato típico, i. e., o fato que se amolda ao conjunto de elementos
descritivos do crime contido na lei, é penalmente relevante. Não
basta, porém, que o fato seja típico para que exista crime.
É preciso que seja contrário ao direito, antijurídico.
O legislador, tendo em vista o complexo das atividades do homem em sociedade
e o entrechoque de interesses, às vezes permite determinadas condutas
que, em regra, são proibidas. Assim, não obstante enquadradas
em normas penais incriminadoras, tornando-se fatos típicos, não
ensejam a aplicação da sanção. Por exemplo:
A, em legítima defesa, atira em B, matando-o. O fato se enquadra
na descrição legal do homicídio: é típico.
Mas não basta seja típico, necessita também ser contrário
à ordem jurídica. E, no caso, concorre uma causa de exclusão
da antijuridicidade prevista nos arts. 23, II, e 25 do estatuto penal.
Excluída a antijuridicidade, não há crime. Resulta
que são características do crime sob o aspecto formal: 1º)
o fato típico e 2º) a antijuridicidade. Nesse sentido: Manoel
Pedro Pimentel, A culpabilidade na dogmática penal moderna, RJTJSP,
124:19 e 31, n. 7; Celso Delmanto, René Ariel Dotti, Juarez Tavares,
José Frederico Marques e Luiz Flávio Gomes.
Fato típico é o
comportamento humano (positivo ou negativo) que provoca um resultado (em
regra), e é previsto na lei penal como infração. Assim,
fato típico do homicídio é a conduta humana que causa
a morte de um homem. Por exemplo: A incendeia o corpo de B, que vem a morrer
em face dos efeitos das queimaduras. O fato se enquadra na descrição
legal simples do art. 121 do Código Penal: “Matar alguém”.
Assim, o fato típico é composto dos seguintes elementos:
1º) conduta humana dolosa ou culposa (no exemplo: pôr fogo na
vítima para matá-la);
2º) resultado (morte);
3º) nexo de causalidade entre a conduta e o resultado (entre a conduta
de incendiar e a morte);
4º) enquadramento do fato material (conduta, resultado e nexo) a uma
norma penal incriminadora (art. 121 do Código Penal).
Não há controvérsia
nos autos a respeito da presença dos elementos do fato material:
conduta, resultado e nexo de causalidade. Os pontos a discutir residem
no elemento subjetivo-normativo (dolo ou culpa) e na conseqüente tipicidade
(crime doloso ou preterdoloso).
A decisão desclassificatória,
entendendo não existir dolo eventual no tocante ao resultado morte,
desclassificou o crime para lesão corporal seguida de morte (delito
preterdoloso ou preterintencional). Para tanto, seguiu a seqüência
da teoria da ação finalista.
4. A teoria finalista da ação
Realmente, nosso Código
Penal, na reforma de 1984, filiou-se à orientação
finalista da ação, deslocando o dolo e a culpa do terreno
da culpabilidade para o campo do tipo penal. Em face disso, considerado
o crime como fato típico e antijurídico, o primeiro elemento
do primeiro é a conduta dolosa ou culposa. Assim, o comportamento
é considerado como toda ação ou omissão humana,
dolosa ou culposa, conscientemente dirigida a uma finalidade. Assim, para
que um fato seja típico, é preciso que haja dolo ou culpa,
sem o que não há crime.
O art. 18 do Código Penal,
em seus incisos I e II, demonstra claramente esta tendência quando
prevê a existência, sob os aspectos subjetivo e normativo,
de apenas duas modalidades de crime: o doloso e o culposo, desconhecendo
delito que não contenha dolo ou culpa. Do mesmo teor é o
art. 20 do estatuto penal, ao determinar que o erro sobre os elementos
do tipo legal exclui sempre o dolo e, quando inevitável, também
a culpa. Em conseqüência, na última hipótese exclui-se
também o fato típico. Ora, se o dolo e a culpa não
estivessem no fato típico sua ausência jamais o excluiria.
A doutrina finalista, que revolucionou
o Direito Penal moderno e acabou adotada pela nossa legislação,
foi proposta inicialmente por HANS WELZEL em trabalho publicado em 1931
com o título Kausalitat und Handlung (Causalidade e ação).
Considerou que toda ação humana é o exercício
de uma atividade finalista: "La finalidad se basa en que el hombre,
sobre la base de su conocimiento causal, puede prever en determinada escala
las consecuencias posibles de una actividad, proponerse objetivos de distinta
índole y dirigir su actividad según un plan tendiente a la
obtención de esos objetivos" (La Teoria de la Acción
Finalista, Buenos Aires, Editorial Depalma, 1951, trad. de Eduardo Friker,
p. 10). Assim, como os seres humanos são entes dotados de razão
e vontade, tudo o que fazem é fruto de um livre impulso racional
e volitivo. Dissociar a vontade da conduta humana é equiparar o
homem aos animais irracionais ou aos fenômenos da natureza. A vontade
passa a ser a força motriz de toda ação ou omissão
humana, de maneira que, excluída, não existe conduta. A finalidade,
por sua vez, é o leme que dirige e orienta o comportamento até
o objetivo determinado. Baseia-se o finalismo, portanto, na premissa maior
de que o Direito Penal só empresta relevo aos comportamentos humanos
que tenham na vontade a sua força propulsora. As pessoas humanas,
seres racionais, conhecedoras da lei natural de causa e efeito, sabem que
de cada comportamento pode advir um resultado distinto. Assim, conscientes
dos processos causais e sendo dotadas de razão e livre arbítrio,
podem escolher entre um ou outro comportamento. Ex.: se pretende incendiar
alguém, o autor tem opção de adquirir ou não
o combustível inflamável. É precisamente nisso que
se funda o ordenamento jurídico. Assentado no princípio da
evitabilidade, não se preocupa o direito criminal com os resultados
decorrentes do caso fortuito ou da força maior, nem com a conduta
realizada mediante coação física ou mesmo com os atos
derivados de puro reflexo, porque nenhum deles poderia ter sido evitado.
Hoje, não se pode mais
considerar a existência de crimes com desprezo total da vontade,
como se as pessoas não fossem dotadas de razão e de livre
arbítrio e como se todos os resultados, a priori, fossem idênticos.
Em nosso ordenamento jurídico, é impossível pretender-se
a responsabilidade penal de alguém sem que tenha agido com dolo
ou culpa. Sem dolo ou culpa não há conduta. Sem conduta não
há fato típico e, sem este, não existe crime. Punir
alguém, prescindindo-se do dolo e da culpa, importa sancionar uma
pessoa que não cometeu crime, violando o princípio constitucional
de reserva legal (art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal).
Atualmente, a legislação penal brasileira repele qualquer
forma de responsabilidade objetiva, ou seja, qualquer possibilidade de
se punir o agente sem que tenha concorrido com dolo ou culpa para o resultado.
Atualmente, LUIZ VICENTE CERNICCHIARO reforça a tese democrática:
"O Direito Penal moderno realça, cada vez mais, a importância
da responsabilidade subjetiva, banindo categoricamente a responsabilidade
objetiva" (Direito Penal na Constituição, São
Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2ª ed., p. 75).
5. A decisão desclassificatória
Seguindo os passos da decisão
proferida na fase da pronúncia (fls.), verifica-se que, para considerar
a ausência de dolo eventual quanto à morte da vítima
(homicídio doloso), atribuindo a imputação normativa
à culpa dos acusados, levou em conta os seguintes argumentos para
concluir pela presença de lesão corporal seguida de morte
(Código Penal, art. 129, § 3º):
1º - o fogo normalmente não mata;
2º - os réus adquiriram dois litros de álcool e derramaram
um na grama;
3º - após pôr fogo na vítima, ficaram afobados
e desesperados, atitude interna que não se coaduna com o dolo de
matar;
4º - o caráter dos agentes e seus depoimentos prestados imediatamente
após o fato “demonstram que não havia indiferença
com a ocorrência do resultado”;
5º - o resultado “morte lhes escapou à vontade”, só
podendo a eles ser atribuído pela “previsibilidade” (referindo-se
à culpa);
6º - “Mesmo sabendo perfeitamente das possíveis e até
mesmo prováveis conseqüências do ato impensado, não”
estava “presente o dolo eventual”;
7º - os acusados “nunca anuíram ao resultado morte” (fls. ).
Em suma, apreciando a prova dos
autos, a respeitável decisão entendeu haver, quanto à
morte da vítima, culpa e não dolo eventual.
6. O dolo eventual
Dolo é a vontade de concretizar
as características objetivas do tipo. Constitui elemento subjetivo
implícito do tipo (STF, Inq. 380, rel. Ministro Marco Aurélio,
DJU 18.12.92, p. 24373; STJ, RHC 1.914, DJU 26.4.93, p. 7222; STJ, Recurso
de Habeas Corpus 1.248, 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça,
j. 28.9.92, DJU 26.4.93, p. 7222). Não é simples representação
do resultado, o que constitui um acontecimento psicológico. Exige
representação e vontade, sendo que esta pressupõe
aquela, pois o querer não se movimenta sem a representação
do que se deseja. Assim, não basta a representação
do resultado, exigindo-se vontade de realizar a conduta e de produzir o
resultado (ou assumir o risco de produzi-lo). Possui, pois, dois elementos:
1º - cognitivo: conhecimento dos elementos objetivos do tipo;
2º - volitivo: vontade de comportamento (CARLOS CREUS, Derecho Penal,
Parte Geral, Buenos Aires, Editorial Astrea, 1996, p. 240).
Para a doutrina tradicional,
o dolo é normativo, i. e., contém a consciência da
antijuridicidade (MAGALHÃES NORONHA, Direito Penal, São Paulo,
Editora Saraiva, 1997, n. 79). Para nós, entretanto, que adotamos
a teoria finalista da ação, o dolo é natural: corresponde
à simples vontade de concretizar os elementos objetivos do tipo,
não portando a consciência da ilicitude (DAMÁSIO E.
DE JESUS, Direito Penal, São Paulo, Editora Saraiva, 1997, 20ª
ed., I:234).
O dolo possui os seguintes elementos:
1º) consciência da conduta e do resultado;
2º) consciência da relação causal objetiva entre
a conduta e o resultado;
3º) vontade de realizar a conduta e produzir o resultado (ou assumir
o risco de produzi-lo).
Classifica-se em direto e indireto
(determinado e indeterminado).
No dolo direto, o sujeito visa
a certo e determinado resultado (Código Penal, art. 18, I, 1ª
parte). Por exemplo: o agente desfere golpes de faca na vítima com
intenção de matá-la. O dolo se projeta de forma direta
no resultado morte. Há dolo indireto quando a vontade do sujeito
não se dirige a certo e determinado resultado.
O dolo indireto apresenta duas
formas:
dolo alternativo e dolo eventual.
Há dolo alternativo quando
a vontade do sujeito se dirige a um ou outro resultado. Ex.: o sujeito
desfere golpes de faca na vítima com intenção alternativa:
ferir ou matar.
Ocorre o dolo eventual, também
chamado condicionado, quando o sujeito assume o risco de produzir o evento,
i. e., prevê, admite e aceita o risco de produzi-lo (Código
Penal, art. 18, I, parte final). Nesse sentido: JTJ, 167:312-313. Ele não
o quer, pois se assim fosse haveria dolo direto. Antevê o resultado
e age. A vontade não se dirige diretamente ao fim (o agente não
quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir
aquele (vontade relacionada indiretamente ao evento). Percebe que é
possível causá-lo e, não obstante, realiza o comportamento.
Entre desistir da conduta e poder causar o resultado, este se lhe mostra
indiferente. Como disse o Ministro VICENTE CERNICCHIARO, “o agente tem
previsão do resultado; todavia, sem o desejar, a ele é indiferente,
arrostando” a sua ocorrência (Recurso de Habeas Corpus 6.368, 6ª
Turma do Superior Tribunal de Justiça, j. 12.8.97, v. un., DJU 22.9.97,
p. 46.559). No mesmo sentido: JTJ, 167:313; TJSP, RT, 454:362 e 513:393;
TACrimSP, JTACrimSP, 81:258 e RT, 582:346.
Sobre o tema, existem várias
teorias:
Teoria da representação:
para a existência do dolo eventual basta a representação
do resultado.
Teoria do sentimento (de MAYER):
há dolo eventual quando o sujeito tem sentimento de indiferença
para com o bem jurídico.
Teoria da probabilidade ou da
verosimilhança (de SAUER): não é suficiente a previsão
da possibilidade da ocorrência do evento. É preciso que seja
provável, admita-o ou não o autor da conduta (GUILHERMO SAUER,
Derecho Penal, Parte Geral, trad. de Juan del Rosal e José Cerezo,
Barcelona, Bosch, Casa Editorial, 1995, p. 268).
Teoria do consentimento, também
denominada da vontade, da aprovação ou aceitação,
de FRANK): para ela, formulada pela doutrina alemã, não basta
a representação do evento e a consideração
da possibilidade de sua causação, sendo necessário
que o sujeito consinta em sua produção. Para essa doutrina,
são exigidos dois requisitos: 1º - intelectivo: que o sujeito
preveja a possibilidade de produção do resultado em face
dos meios utilizados e do fim almejado, não se exigindo consciência
da probabilidade; 2º - volitivo: que consinta em sua concretização,
reconhecendo e conformando-se com essa possibilidade (PAULO JOSÉ
DA COSTA JÚNIOR, Curso de Direito Penal, Parte Geral, São
Paulo, Editora Saraiva, 1991, I:83; DIEGO MANUEL LUZÓN PEÑA,
Curso de Derecho Penal, Parte Geral, Madri, Editorial Universitas, 1996,
I:419).
Desdobra-se em duas teorias:
1ª - teoria hipotética do consentimento: atualmente, quase
abandonada, funda-se na previsão da possibilidade do evento, de
acordo com a fórmula 1 de Frank (“a previsão do resultado
como possível somente constitui dolo quando, antevisto o evento
como certo pelo sujeito, não o deteve”). A previsão da possibilidade
do resultado deixa de atuar como freio inibitório da conduta.
2ª - teoria positiva do consentimento: com base na fórmula
2 de Frank, entende que no dolo eventual o sujeito não leva em conta
a possibilidade do evento previsto, agindo e assumindo o risco de sua produção
(“seja assim ou de outra maneira, suceda isto ou aquilo, em qualquer caso,
agirei”).
Hoje, a teoria do consentimento
é prevalente na doutrina e nas legislações estrangeiras
(FRANCISCO MUNÕZ CONDE e MERCEDES GARCÍA ARÁN, Derecho
Penal, Parte Geral, Valencia, Tirant Lo Branch Ed., 1996, p. 289; MUÑOZ
CONDE, Teoria Geral do Delito, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris
Editor, 1988, p. 60; DIEGO MANUEL LUZÓN PEÑA, op. e loc.
cits.; EMILIO OCTAVIO DE TOLEDO Y UBIETO e SUSANA HUERTA TOCILDO, Derecho
Penal, Parte Geral, Teoría jurídica del delito, Madri, Rafael
Castellanos Editor, 1986, p. 129; CÁNDIDO CONDE-PUMPIDO FERREIRO,
Contestaciones de Derecho Penal al Programa de Jidicatura, Madri, Editorial
Colex, 1996, p. 151).
Nosso Código Penal adotou
a teoria positiva do consentimento (JUAREZ TAVARES, Espécies de
dolo e outros elementos subjetivos do tipo, Revista de Direito Penal, Rio
de Janeiro, Instituto de Ciências Penais da Faculdade de Direito
Cândido Mendes, 1972, 6:29; LUIZ RÉGIS PRADO e CÉZAR
ROBERTO BITENCOURT, Elementos de Direito Penal, Parte Geral, São
Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1995, p. 87).
7. Crime culposo e preterdoloso
Culpa é a abstenção
do cuidado objetivo necessário na realização de uma
conduta que causa um resultado danoso. São elementos do fato típico
culposo:
1º) conduta humana voluntária, de fazer ou não fazer;
2º) inobservância do cuidado objetivo necessário manifestada
na imprudência, negligência ou imperícia (Código
Penal, art. 18, II);
3º) previsibilidade objetiva (RT, 599:343 e 606:337);
4º) ausência de previsão;
5º) resultado involuntário;
6º) nexo de causalidade (RT, 601:338); e
7º) tipicidade.
O fato se inicia com a realização
voluntária de uma conduta de fazer ou não fazer. O agente
não pretende praticar um crime nem quer expor interesses jurídicos
de terceiros a perigo de dano. Falta, porém, com o dever de diligência
exigido pela norma, descumprindo o dever de cuidado no trato das relações
sociais (2º elemento). Nesse sentido: RT, 700:383.
Exige-se a previsibilidade objetiva,
que significa a possibilidade de antevisão do resultado (do ponto
de vista objetivo de um homem comum). Nesse sentido: ACrim 495.163, JTACrimSP,
97:231; STJ, REsp 40.180, 6ª Turma, rel. Ministro Adhemar Maciel,
RJ, Porto Alegre, 1996, 224:110 e 112.
Outro elemento é a ausência
de previsão. É necessário que o sujeito não
tenha previsto o resultado. Se o previu, não estamos no terreno
da culpa, mas do dolo (salvo a culpa consciente). O resultado era previsível,
mas não foi previsto pelo sujeito. Daí falar-se que a culpa
é a imprevisão do previsível.
O quinto elemento é a
produção involuntária do resultado. Sem evento não
há falar-se em crime culposo.
O último elemento é
a tipicidade. Acrescendo a ilicitude temos um crime culposo.
O legislador, algumas vezes,
após descrever o crime em sua forma fundamental, acrescenta-lhe
um resultado que aumenta abstratamente a pena imposta no preceito sancionador.
São os crimes qualificados pelo resultado. Explos.: Código
Penal, arts. 127; 129, § 1º, II, § 2º, V, e §
3º; 133, §§ 1º e 2º; 134, §§ 1º
e 2º; 135, parágrafo único etc. Esses crimes são
punidos, em sua maioria, a título de preterdolo ou preterintenção.
Entre nós, crimes qualificados pelo resultado e delitos preterdolosos
não são categorias diferentes e autônomas, como acontece
em outros países. Na doutrina nacional, salvo exceções
de pensamento, todo crime preterintencional é qualificado pelo resultado,
embora nem todo delito qualificado pelo resultado seja preterdoloso.
Crime preterdoloso ou preterintencional
é aquele em que a conduta produz um resultado mais grave que o pretendido
pelo sujeito (JUAN ANTONIO MARTOS NÚÑEZ, La preterintencionalidad,
Madri, Revista de Derecho Penal y Criminologia, Universidad Nacional de
Educación, 1993, n. 3, p. 557). É a chamada “preterintencionalidade
substitutiva”. O agente quer um minus e seu comportamento causa um majus,
de maneira que se conjugam o dolo na conduta antecedente e a culpa no resultado
(conseqüente). Daí falar-se que o crime preterdoloso é
um misto de dolo e culpa: dolo no antecedente e culpa no conseqüente.
No crime preterdoloso, não
é suficiente a existência de um nexo de causalidade objetiva
entre a conduta antecedente (que constitui o primum delictum) e o resultado
agravador. Assim, a mera imputatio facti (relação entre a
conduta e o resultado — art. 13 do Código Penal), embora necessária,
não é suficiente para o processo de adequação
típica, uma vez que se exige a imputatio juris (relação
de causalidade subjetivo-normativa). É necessário que haja
um liame normativo entre o sujeito que pratica o primum delictum e o resultado
qualificador. Este só é imputado ao sujeito quando previsível
(culpa).
A culpa do delito preterdoloso
exige os mesmos elementos do crime culposo: especialmente conduta culposa,
descumprimento do cuidado objetivo necessário, previsibilidade do
resultado e ausência de previsão.
8. Culpa consciente
A culpa pode ser consciente e
inconsciente.
Na culpa inconsciente o resultado
não é previsto pelo agente, embora previsível. É
a culpa comum, que se manifesta pela imprudência, negligência
ou imperícia. Na culpa consciente, também denominada “negligência
consciente” e “culpa ex lascivia”, o resultado é previsto pelo sujeito,
que confia levianamente que não ocorra, que haja uma circunstância
impeditiva ou que possa evitá-lo. Por isso, é também
chamada culpa com previsão. Esta é elemento do dolo, mas,
excepcionalmente, pode integrar a culpa. A exceção está
exatamente na culpa consciente. Ex.: numa caçada, o sujeito verifica
que um animal se encontra nas proximidades de seu companheiro. Prevê
que, atirando na caça e errando o alvo, poderá matá-lo.
Confia, porém, em sua pontaria. Atira e mata a vítima. Não
responde por homicídio doloso, mas sim por homicídio culposo
(Código Penal, art. 121, § 3º). Note-se que o agente previu
o resultado, mas levianamente, acreditou que não viria a ocorrer.
9. Culpa consciente e dolo eventual: diferenciação
No dolo eventual o agente tolera
a produção do resultado, o evento lhe é indiferente,
tanto faz que ocorra ou não, acomoda-se. Ele assume o risco de produzi-lo.
Na culpa consciente ou com previsão, ao contrário, o sujeito
não quer o resultado, não assume o risco de produzi-lo e
nem ele lhe é tolerável ou indiferente. O evento lhe é
representado (previsto), porém confia sinceramente em sua não-ocorrência
(SALVATORE PROSDOCIMI, Dolus eventualis, Milão, Giuffrè,
1993, p. 9). No sentido do texto: TJSP, RT, 548:300 e 589:317; TACrimSP,
JTACrimSP, 82:374; ACrim 22.911, RT, 429:426; TFR, RCrim 990, DJU 28 ago.
1986, p. 15005; TARJ, ACrim 15.957, RF, 287:363.
10. A hipótese dos autos: responsabilidade penal a título
de dolo eventual
Os acusados agiram com dolo eventual
e não com preterdolo.
Nos termos do art. 18, I, parte
final, do Código Penal, age com dolo eventual quem “assume o risco”
de produzir o resultado. A fórmula é imprecisa e não
indica, exatamente, o conceito pretendido pelo legislador, não esclarecendo
o assunto (HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, Lições de Direito
Penal, A nova Parte Geral, Rio de Janeiro, Editora Forense, 1985, 8ª
ed., p. 178, n. 150; JUAREZ TAVARES, artigo cit., p. 28). Na verdade, o
tipo subjetivo quer dizer que o sujeito prevê o resultado como possível
e aceita ou consente em sua ocorrência. Não basta, pois, a
simples representação do evento (teoria da representação).
Exige-se que seja alcançado pela vontade. Mas não de forma
direta, como no dolo determinado, e sim de maneira indireta, tolerando-o,
anuindo à sua superveniência, consentindo em sua produção
(teoria do consentimento), sendo-lhe indiferente. Ao prever como possível
a realização do evento, ensina PAULO JOSÉ DA COSTA
JÚNIOR, o agente “não se detém. Age, mesmo à
custa de produzir o evento previsto como possível” (op. e loc. cits.).
Apesar de não querer o evento como razão de sua ação,
dizia MAGALHÃES NORONHA, “o prevê e não obstante age,
aceitando sua realização” (Do crime culposo, São Paulo,
Edição Saraiva, 1974, p. 117, n. 21). Como consignamos, é
a chamada “teoria positiva do consentimento”, adotada pelo nosso Código
Penal.
E como se manifesta essa anuência
à produção do resultado?
Não se exige consentimento
explícito, formal, sacramental, concreto e atual. Como ensinava
WELZEL, não é necessária uma consciência reflexiva
em relação às circunstâncias, sendo suficiente
uma “co-consciência” não reflexiva, “uma consciência
de pensamento material e não de pensamento expresso” (Derecho Penal
Aleman, trad. de Juan Bustos Ramírez e Sérgio Yáñez
Pérez, Santiago do Chile, Editorial Jurídica de Chile, 1992,
p. 78). Se o sujeito mentaliza o evento e pensa “para mim é indiferente
que ocorra, tanto faz, dane-se a vítima, pouco me importa que morra”,
não é necessário socorrer-se da forma eventual. Se
essa atitude subjetiva passa pela mente do sujeito durante a realização
da conduta, trata-se de dolo direto, uma vez que a previsão e o
acrescido consentimento concreto, claro e atual, não se tratando
de simples indiferença ao bem jurídico, equivalem ao querer
direto. O consentimento que o tipo requer não é o manifestado
formalmente, o imaginado explicitamente, o “meditado”, “pensado cuidadosamente”.
Não se exige fórmula psíquica ostensiva, como se o
sujeito pensasse “consinto”, “conformo-me com a produção
do resultado”. Nenhuma justiça conseguiria condenar alguém
por dolo eventual se exigisse confissão cabal de que o sujeito psíquica
e claramente consentiu na produção do evento; que, em determinado
momento anterior à ação deteve-se para meditar cuidadosamente
sobre suas opções de comportamento, aderindo ao resultado.
Jamais foi visto no banco dos réus alguém que confessasse
ao juiz: “no momento da conduta eu pensei que a vítima poderia morrer,
mas, mesmo assim, continuei a agir”. A consciência profana da ilicitude,
na teoria finalista da ação, não faz parte do dolo,
que é natural.
Cuida-se da “indiferença
do agente em relação ao resultado” (HELENO CLÁUDIO
FRAGOSO, op. e loc. cits.), que revela não ter a previsão
de sua possível produção impedido a ação,
evitando a travessia do Rubicon, na expressão de NÉLSON HUNGRIA.
Não obstante passar o evento pela mente do sujeito, ainda assim
continua a agir. Como diz ASSIS TOLEDO, “é como se pensasse: vejo
o perigo, sei de sua possibilidade, mas, apesar disso, dê no que
der, vou praticar o ato arriscado” (Princípios básicos de
Direito Penal, São Paulo, Editora Saraiva, 1982, p. 96, n. 46).
Nessa forma de dolo, ensina LUIZ LUISI, “o agente se propõe determinado
fim” (no caso, pôr fogo na vítima), “e na representação
dos meios a serem usados, bem como na forma de operá-los, prevê
a possibilidade de ocorrerem determinadas conseqüências. Quando
o agente, apesar de prever essas conseqüências como possíveis
– e embora não as deseje – tolera, consente, aprova ou anui na efetivação
das mesmas, não desistindo de orientar sua ação no
sentido escolhido e querido para atingir o fim visado, consciente da possibilidade
das conseqüências de tal opção, o dolo, com relação
às conseqüências previstas como possíveis, é
eventual” (O tipo penal e a teoria finalista da ação, Porto
Alegre, A Nação Editora, 1979, p. 74). O sujeito não
recusa, tanto que continua agindo, e por isso, tacitamente, aceita, de
antemão, “qualquer dos resultados possíveis” (JOSÉ
MARIA RODRIGUEZ DEVESA e ALFONSO SERRANO GOMES, Derecho Penal Español,
Parte Geral, Madri, Dykinson Editor, 18ª ed., 1995, p. 468), “conformando-se”
com a sua ocorrência, na expressão de JESCHECK (Tratado de
Derecho Penal, trad. de José Luis Manzanares Samaniego, Granada,
Comares Editorial, 1993, p. 269).
A sentença reconhece que
os acusados sabiam “perfeitamente das possíveis e até mesmo
prováveis conseqüências do ato impensado” (fls. ). Que
efeitos possíveis e prováveis seriam esses? Somente queimaduras?
Lesões corporais? Certamente, não. Qualquer pessoa comum
neles incluiria a morte. E eles também, jovens retratados nos autos
como estudantes inteligentes, estudiosos e espertos. Não obstante,
não recuaram no propósito de queimar a vítima. E nisso
reside a aceitação da possibilidade da ocorrência do
evento. Na palavra de EDUARDO CORREIA, “o agente, com efeito, representando
o resultado como conseqüência de sua atividade e não
renunciando a ela, pode dizer-se que o aceita, e revela, igualmente, falta
de repugnância pela realização consciente de fatos
que representam um dano ou perigo de dano que o Direito reprova. Mostra,
da mesma forma, que sobrepõe a satisfação dos sentimentos
ou interesses próprios à produção daquele dano
ou perigo de dano” (Direito Criminal, Coimbra, Livraria Almedina, 1993,
p. 377). No caso, os réus não renunciaram à realização
da “censurável” e “selvagem diversão”, “reprovável
brincadeira”, “ignóbil” e “irresponsável conduta”, “ato impensado”,
segundo expressões da sentença, “podendo dizer-se”, na esteira
do pensamento de EDUARDO CORREIA, “que aceitaram” o resultado fatal, “sobrepondo
a satisfação” de seus sentimentos e interesses de diversão
à possível causação da morte da vítima.
A aceitação do resultado está implícita no
atuar, diz SANTIAGO MIR PUIG, nos casos em que o agente tem consciência
do perigo e dos riscos da ação, não se resignando
à sua realização (Derecho Penal, Parte Geral, Barcelona,
PPU, 1995, p. 265). E revelaram, da mesma forma, “falta de repugnância
pela realização consciente” de um fato dos mais macabros
que os olhos humanos podem ver: a queima de um homem vivo. Ajusta-se à
lição de RAFAEL DÍAZ ROCA: “há dolo eventual
quando o sujeito representa o resultado como possível sem que a
circunstância de o mesmo vir a produzir-se impeça de prosseguir
realizando a ação delitiva, já que a concretização
do resultado ilícito lhe é indiferente em face do objetivo
que o levou a agir” (Derecho Penal General, Madri, Tecnos Edit., 1996,
p. 115). A intenção era pôr fogo no suposto mendigo:
a previsão de eventuais resultados danosos não os deteve.
Eram-lhes, por isso, indiferentes. Se pesassem em suas consciências,
não teriam prosseguido.
A doutrina exige que o autor
tenha “conhecimento dos efeitos práticos” dos meios empregados (EDUARDO
CORREIA, op. cit., p. 374; JOSÉ DE FARIA COSTA, Tentativa e dolo
eventual, separata do número especial do Boletim da Faculdade de
Direito de Coimbra intitulado Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo
Correia (1984), Coimbra, Almedina Editora, 1995, p. 40, nota 64). No caso
em tela, - repita-se - os acusados, conforme reconhece a sentença,
“sabiam dos perigos de mexer com fogo”; “sabiam que o fogo queima, ainda
mais álcool combustível, líquido altamente inflamável”;
“sabiam que iriam ferir a vítima”; sabiam “perfeitamente das possíveis
e até mesmo prováveis conseqüências do ato impensado”
(fls.). Foram subjetivamente além do exigido pela lei, que se contenta
com a “possibilidade” de produção do evento, não requerendo
sua “probabilidade”. Se sabiam das “possíveis e até mesmo
prováveis conseqüências do ato impensado”, como até
a sentença considera, inclusive “sabiam que iriam ferir a vítima”,
sabiam também que podiam matá-la, um dos efeitos possíveis
do “incêndio humano”.
Note-se que a sentença
menciona “conseqüências prováveis” no plural, em consonância
com a teoria do dolo eventual. Com efeito. Na mente do sujeito, quando
se propõe a realizar um comportamento arriscado, não se depara
somente um efeito, mas vários. JOSÉ DE FARIA COSTA, analisando
esse fenômeno psíquico, ensina que “um dos pontos nevrálgicos
do dolo eventual reside na projeção da possibilidade de virem
a ocorrer, em qualquer circunstância, dois ou mais resultados” (op.
cit., p. 28). E isso aconteceu no caso dos autos, uma vez que os acusados,
segundo seus depoimentos, pensaram até na reação da
vítima como uma das conseqüências menores do fato, deixando
o mais jovem entre eles longe do sujeito passivo (fls.). E ainda assim,
não obstante conscientes das possíveis conseqüências,
prosseguiram na premeditada conduta. Não se detiveram em face do
perigo possível e até mesmo provável do dano maior.
E tiveram tempo para isso. A respeitável sentença considera:
“Acrescento que a reprovabilidade da conduta mais se avulta quando estreme
de dúvidas que os acusados tiveram muitas e variadas oportunidades
de desistir da selvagem diversão” (fls.).
Como diz JOHANNES WESSELS, há
dolo eventual quanto o autor não se tenha deixado dissuadir da execução
do fato pela proximidade da ocorrência do resultado e sua conduta
justifique a afirmação de que ele, por causa do fim pretendido,
se tenha conformado com o risco da realização do tipo do
que renunciando a prática da ação (Direito Penal,
Parte Geral, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1976, p.
53). Essa “conformação”, explica GÜNTER STRATENWERTH,
ocorre quando o autor, tendo duas opções de conduta, prosseguir
na realização do comportamento perigoso ou desistir, prefere
a primeira alternativa (Derecho Penal, trad. de Glays Romero, Caracas-Madri,
Edersa, 1982, p. 111).
No caso dos autos, os autores
não se deixaram dissuadir da execução do fato (incendiar
a vítima) pela possibilidade, e até mesmo probabilidade,
deles conhecidas de acordo com a decisão, de causar danos pessoais
à vítima, entre os quais inclui-se a morte, justificando
a assertiva de que eles, por causa do fim pretendido (pôr fogo na
vítima a título de brincadeira), conformaram-se com o risco
do trágico fim ao invés de desistir da realização
da conduta.
Como deve proceder o juiz na
investigação do dolo eventual?
Apreciando as circunstâncias
do fato concreto e não perquirindo a mente do autor. Como ficou
consignado, nenhum réu vai confessar a previsão do resultado,
a consciência da possibilidade ou probabilidade de sua causação
e a consciência do consentimento. Na lição de PAULO
JOSÉ DA COSTA JÚNIOR, os elementos do dolo eventual “não
podem ser extraídos da mente do autor, mas deduzidos das circunstâncias
do fato” (Comentários ao Código Penal, Parte Geral, São
Paulo, Editora Saraiva, 1986, I:174, n. 1). Não era outro o ensinamento
de NÉLSON HUNGRIA: “Como reconhecer-se a voluntas ad necem? Desde
que não é possível pesquisá-lo no ‘foro íntimo
do agente, tem-se de inferi-lo dos elementos e circunstâncias do
fato externo. O fim do agente, se traduz, de regra, no seu ato” (Comentários
ao Código Penal, Rio de Janeiro, Forense, 1955, V:49, n. 9). Elementos
e circunstâncias que MUÑOZ CONDE denomina “indicadores objetivos”
de uma “decisão contra o bem jurídico” (Derecho Penal, em
co-autoria com MERCEDES GARCÍA ARÁN, op. cit., p. 290).
Incluem-se, entre os indicadores
objetivos, quatro de capital importância:
1º - risco de perigo para o bem jurídico implícito na
conduta (no caso, a vida);
2º - poder de evitação de eventual resultado pela abstenção
da ação;
3º - meios de execução empregados; e
4º - desconsideração, falta de respeito ou indiferença
para com o bem jurídico (MUÑOZ CONDE e MERCEDES GARCÍA
ARÁN, op. e loc. cits.).
Como diz MARÍA LUIZA MAQUEDA
ABREU, o dolo eventual contém sempre o risco da produção
de um resultado (La relación ‘dolo de peligro’ – ‘dolo (eventual)
de lesión’, Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Madri,
Centro de Publicaciones, 1995, tomo 48, fasc. I, p. 434). Consciente do
risco resultante da conduta, apresenta-se ao autor a opção
de comportamento diverso. Prefere, porém, sem respeito à
objetividade jurídica a ser exposta a perigo de dano, realizar a
ação pretendida. Como diz JOSÉ DE FARIA COSTA, a ordem
jurídica não só quer que o sujeito não tenha
uma atitude de repúdio e de negação “para com os valores
que a norma penal cristaliza como também não quer que ele
assuma uma posição de indiferença” (op. cit., p. 31).
Na hipótese, concordes
com a idéia de incendiar a vítima, procuraram um posto de
gasolina. Conversaram com o frentista, afirmando que havia um veículo
parado por falta de combustível. Apanharam dois recipientes de plástico
sujos. Lavaram-nos e os encheram com dois litros de álcool combustível,
altamente inflamável. Mas não agiram em seguida. Rodaram
pela cidade com seu automóvel por quase duas horas, certamente esperando
que o local onde se encontrava a vítima ficasse deserto, sem testemunhas,
propício para o fato. Acercaram-se do lugar. Esconderam o veículo.
Atravessaram a avenida. Aproximaram-se da vítima em silêncio.
Repartiram os palitos de fósforo. Um deles derramou líquido
no corpo da vítima. Riscaram fósforos e lhe atearam fogo.
E fugiram com o automóvel em alta velocidade para esconder-se em
suas residências. Esse comportamento, certamente, é altamente
revelador da ausência de qualquer freio inibitório em relação
ao fim visado (incendiar a vítima por brincadeira) e de consciente
desprezo para com a vida e a incolumidade física do semelhante,
indígena ou mendigo. Como disse a sentença, “um ser humano
não é coisa, seja índio ou mendigo”.
Os acusados podiam agir de modo
diferente, tanto que a sentença lhes reconheceu a “culpabilidade”.
Tinham “poder de evitação”, i.e., condições
de optar por conduta diversa. Rodaram com o veículo pela cidade,
como ficou consignado, durante quase duas horas. Podiam ter desistido da
ação. Não existia, na expressão de GÜNTHER
JAKOBS, “dificuldade de evitação” da conduta incriminada
(Derecho Penal, Parte Geral, trad. de Joaquin Cuello Contreras e José
Luiz Serrano Gonzales Murillo, Madri, Marcial Pons, Ediciones Jurídicas,
1995, p. 326).
E quanto ao meio empregado?
De acordo com citação
da sentença, “queimadura” (por fogo) “não mata”. Ora, se
assim fosse, não haveria razão para existir a figura típica
do homicídio qualificado pelo “fogo” (Código Penal, art.
121, § 2º, III, 2ª fig.). Além disso, “as queimaduras
extensas”, ainda que superficiais, “podem determinar o evento”, sendo incluídas
entre as “lesões mortais”, segundo a doutrina (FLAMÍNEO FÁVERO,
Medicina Legal, Belo Horizonte-Rio de Janeiro, Villa Rica Editora, 12ª
ed., 1991, ps. 252 e 255; ERNESTINO LOPES DA SILVA JÚNIOR, Manual
de Medicina Legal, São Paulo, Escola de Polícia de São
Paulo, 2ª ed., 1959, p. 26). Quanto à extensão, explica
ODON RAMOS MARANHÃO, “é de se notar que, no adulto, se 50%
da área corpórea foram atingidos, mesmo com lesão
de primeiro grau, há possibilidade de morte entre 6 e 16 horas”
(Curso Básico de Medicina Legal, São Paulo, Malheiros Editores,
1997, ps. 309 e 310). No caso em tela, queimaram-se 95% do corpo da vítima,
só restando ilesos o couro cabeludo e as plantas dos pés
(laudo de fls.).
Como fundamento, a decisão
afirmou que, tendo dois litros de álcool, os acusados somente jogaram
um na vítima. Era o suficiente. Se o sujeito tem dois projéteis
no revólver e, antes de disparar um, joga fora o outro, não
se pode dizer que não a quis matar.
O álcool (assim como a
gasolina) é altamente inflamável. A jurisprudência
espanhola, apreciando a existência de dolo eventual em caso de emprego
de combustível inflamável, já entendeu pela presença
de crime doloso com dolo eventual, “respondendo o sujeito pelas conseqüências”,
assentando que a experiência comum indica que o “fogo, uma vez iniciado,
por intermédio de um meio de potência adequada, pode fugir
ao controle e vontade do agente, que eventualmente aceita e responde pelos
seus efeitos” (Actualidad Penal, Revista de Derecho Penal, Madri, La Ley
Actualidad Ed., 1996, 2:745). O meio empregado pelos réus apresentava
“potencialidade lesiva”, na expressão da sentença.
Mede-se a quantidade de álcool
pela extensão do dano pessoal. Os acusados não lançaram
na vítima um simples cálice de álcool, destes de vender
pinga em bar, o que justificaria um crime de lesão corporal qualificada
pelo resultado. Foi grande a quantidade de álcool que ensopou Galdino,
tanto que lhe queimou quase todo o corpo, sobrando ilesos somente 5%.
LUÍS JIMÉNEZ DE
ASÚA dizia, com muita propriedade, que, para se saber se um delito
é doloso ou preterintencional, analisando a presença ou falta
de dolo quanto à morte, “a justiça só tem um recurso:
examinar o meio que o sujeito empregou” (Princípios de Derecho Penal,
La ley y el delito, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1962, ps. 385/6). Os
acusados, para “brincar” com a vítima, podiam ter escolhido meios
menos potencialmente lesivos, embora ainda ilícitos: fogo em folha
de jornal, lançamento de óleo, tinta, produto ou material
fétido, água gelada ou suja etc.
A afobação e o
desespero com que se houveram em seguida ao fato não desnatura o
dolo. Não podia ser diferente. A visão de uma tocha humana
é um fato objetivo dantesco. Aliada ao aspecto anímico do
autor do fato, causa mesmo alteração emotiva. E a emoção,
ainda mais quando manifestada depois da conduta, não exclui o delito
(Código Penal, art. 28, I).
Afirma a sentença que
a ausência de indiferença, caracterizadora de dolo eventual,
decorre do caráter dos acusados e de seus depoimentos prestados
imediatamente após o fato (fls.). A presença do dolo eventual,
entretanto, como ensina a doutrina, não pode ser extraída
do caráter do agente. Caso contrário, estaria restaurado
o “Direito Penal do autor”, “de caráter” ou o “pelo modo de vida”
(EMILIO OCTAVIO DE TOLEDO Y OBIETO e SUSANA HUERTA TOCILDO, op. cit., p.
132). Como diz EDUARDO CORREIA, o sujeito não é censurado
ou não censurado “por ter uma certa personalidade, mas sim por ter
ou não tomado posição em face da representação
do resultado possível” (op. cit., p. 383).
Como ficou assinalado, entendemos
que os acusados agiram com dolo eventual. A sentença desclassificatória
não fala em crime culposo como entidade autônoma, com culpa
consciente ou inconsciente. Considera a presença do preterdolo.
Ocorre que neste, conforme ensina RAFAEL DÍAZ ROCA, “há a
representação de um resultado menor como seguro e o que ocorre
é que se produz outro de maior gravidade e, naquele (dolo eventual),
o resultado” “é conseqüência indeclinável da ação
do sujeito” (op. cit., p. 116). No caso em tela, como ficou consignado,
não houve por parte dos réus somente “a representação
de um resultado menor”, uma vez que, de acordo com a própria sentença,
“tinham consciência das conseqüências” (no plural) da
ação, entre elas não podendo faltar o resultado maior,
a morte da vítima.
No crime preterintencional, lecionam
CARLOS GANZENMÜLLER, JOSÉ FRANCISCO ESCUDERO e JOAQUÍN
FRIGOLA, há incongruência entre o “aspecto objetivo do resultado
e o subjetivo do propósito” (Homicidio y asesinato, Barcelona, Bosch,
Casa Editorial, 1996, ps. 71/2). A preterintencionalidade, afirma JUAN
ANTONIO MARTOS NUÑEZ, supõe uma desproporção
entre a intenção e o resultado (op. cit., p. 561). No caso
do processo, entretanto, não há essa incongruência,
encontrando-se a morte da vítima na mesma linha harmônica
do propósito: queimá-la. A “brincadeira”, segundo alegaram
os acusados, é simples motivo, incapaz de descaracterizar o dolo.
Nos termos da sentença,
afastado o crime de homicídio culposo, restavam “somente o homicídio
com dolo eventual e o crime de lesões corporais seguidas de morte,
denominado ‘preterdoloso’, em que há dolo quanto à lesão
corporal e culpa quanto ao homicídio” (fls. ). A seguir, a decisão
passou a distinguir dolo eventual de culpa consciente, dela constando:
“na culpa consciente o agente não quer o resultado e nem assume
o risco de produzi-lo. Apesar de sabê-lo possível, acredita
sinceramente poder evitá-lo, o que só acontece por erro de
cálculo ou por erro na execução”.
A sentença reconheceu
haver crime de lesão corporal seguida de morte. Trata-se de crime
complexo, composto de lesão corporal dolosa e homicídio culposo.
Há dois crimes, reunidos num terceiro, que adquire autonomia típica.
Verifica-se, pois, que a decisão considerou existir, quanto à
morte, homicídio culposo, absorvido pela entidade complexa. E como
fez a distinção entre dolo eventual e culpa consciente, afastando
aquele, conclui-se: reputou a presença de lesão corporal
seguida de morte com culpa consciente. Realmente, a sentença repudiou
a culpa inconsciente, rechaçando o homicídio culposo. Restou,
pois, a consciente como circunstância normativa do resultado agravador.
Quer dizer, julgou ter sido praticado um crime preterintencional com culpa
consciente quanto à circunstância qualificadora (morte). A
hipótese é possível, tendo sido mencionada por NÉLSON
HUNGRIA ao apreciar o art. 129, § 3º, do Código Penal
(lesão corporal seguida de morte), no que tange à previsibilidade
ou imprevisão do evento qualificador, obviamente referindo-se à
culpa consciente: “é de notar-se que a imprevisão, excludente
do dolo, é equiparada à previsão do resultado como
improvável ou impossível, ou com a esperança de que
o resultado não sobrevenha” (op. cit., V:356, 2º parágrafo).
Pois bem. A culpa, ainda que
integrante do tipo qualificado e preterintencional, guarda os elementos
do crime culposo, entre eles, na forma consciente, a “inobservância
do cuidado objetivo necessário”, a “previsão do resultado”
e a “confiança que não ocorra” (ou a presença de circunstância
potencialmente impeditiva de sua superveniência).
Resta difícil afirmar-se,
na hipótese, que os acusados simplesmente deixaram de “observar
o cuidado objetivo necessário” nas relações do trato
social. Ora, colocaram fogo na vítima! Os casos de culpa consciente
são aqueles em que o comportamento inicial é normalmente
lícito, como no exemplo clássico da caçada. Aqui sim,
pode-se falar em infringência do dever de diligência. Veja-se,
a propósito, CÁNDIDO CONDE-PUMPIDO FERREIRO, ligando os casos
de culpa consciente à inobservância da obligatio ad diligentiam
(op. cit., p. 151).
Se a sentença entendeu
haver, quanto ao resultado morte, culpa consciente, implicitamente reconheceu
que os acusados agiram com “previsão do resultado”, um de seus elementos.
Significa: previram o resultado morte. E isso está de acordo com
sua fundamentação, tendo em vista ter afirmado que tinham
consciência das conseqüências possíveis e prováveis
da conduta. Ora, se puseram fogo na vítima, em tal quantidade de
álcool combustível que se queimaram 95% de seu corpo, a previsão
do resultado se inclina na direção do dolo eventual, não
da culpa.
A consideração
de que houve lesão corporal qualificada pela morte com culpa consciente
é de difícil compreensão. Com efeito. Essa aceitação
leva a que os acusados:
1º - agiram com dolo de dano quanto às lesões corporais
(queimaduras);
2º - previram o resultado morte.
Ora, se agiram com dolo de lesão
corporal, tinham a previsão do resultado e lançaram na vítima
tal quantidade de álcool que causou a queima de 95% de seu corpo,
é muito difícil afirmar-se que não agiram pelo menos
com dolo eventual.
Repita-se: na culpa consciente
devem estar presentes, dentre outros requisitos comuns:
1º - vontade dirigida a um comportamento que nada tem com a produção
do resultado ocorrido. Ex.: atirar no animal que se encontra na mesma linha
da vítima (na hipótese da caçada);
2º - crença sincera de que o evento não ocorra em face
de sua habilidade ou interferência de circunstância impeditiva,
ou excesso de confiança. O sujeito, segundo CARLOS CREUS, propõe-se
a interpor uma habilidade que o evite (excelência na direção
de veículo; perícia no tiro etc.) ou acredita na existência
de uma circunstância impeditiva (que não haverá transeuntes
na rua altas horas da madrugada, crendo que ninguém atravessará
seu caminho) (op. cit., ps. 254/5).
A culpa consciente contém um dado importante: a confiança
de que o resultado não venha a produzir-se, que se assenta, como
dissemos, na crença em sua habilidade na realização
da conduta ou na presença de uma circunstância impeditiva.
No exemplo da caçada, o sujeito confia em sua habilidade (é
um campeão de tiro). A necessidade de “sinceridade” da crença
é normalmente referida na doutrina (ASSIS TOLEDO, op. cit., p. 290,
n. 247) e foi citada na sentença;
No caso em debate, não há nenhuma circunstância em
que os acusados pudessem apegar-se para acreditar que, jogando um litro
de álcool na vítima, e ateando fogo, não houvesse
conseqüências desastrosas.
3º - erro de execução. Exs.: o agente atira no animal
e, por defeito da arma, o projétil mata uma pessoa; defeito de pontaria,
em que confiava.
Como ensina FRANCISCO DE ASSIS
TOLEDO, o agente, na culpa consciente, “não quer o resultado, mas,
por erro ou excesso de confiança (imprudência), por não
empregar a diligência necessária (negligência) ou por
não estar suficientemente preparado para um empreendimento cheio
de riscos (imperícia), fracassa e vem a ocasioná-lo” (op.
e loc. cits.).
No caso, como dizer-se que se
encontravam presentes esses requisitos se o comportamento dirigiu-se à
queima da vítima? Como acreditar sinceramente que o evento não
ocorreria jogando um litro de álcool em Galdino e lhe ateando fogo,
queimando 95% de seu corpo? Como dizer que houve erro de execução
ou simplesmente excesso de confiança? Confiança em quê?
Por fim, o delito preterdoloso
é excluído “quando o meio empregado é objetivamente
idôneo ou adequado para causar o resultado efetivamente produzido”,
ocorrendo “somente quando presente absoluta inidoneidade do meio empregado
para a agressão e o resultado obtido” (RODRÍGUEZ DEVESA,
op. cit., p. 380; JUAN ANTONIO MARTOS NUÑEZ, op. cit., p. 560).
NÉLSON HUNGRIA já observava que, para se saber, na lesão
corporal seguida de morte, se esta é dolosa ou culposa, “deve ter-se
em conta o meio empregado. Já os práticos ensinavam que o
agente devia ser condenado somente pelo ferimento, de que haja resultado
a morte, quando fez uso de um meio tal ‘ex quo verisimiliter non debuit
sequi mors’, como, “via de regra, o soco, o pontapé, a mordedura,
a cabeçada etc.” (op. cit., p. 354). Não se enclui entre
os meios de execução que “via de regra” não causam
a morte a queima de 95% do corpo da vítima. No caso dos autos, o
meio empregado era francamente idôneo à produção
do evento morte.
Por essa razão técnica,
referente ao meio executório, prosseguia NÉLSON HUNGRIA,
o juiz deve “orientar-se sempre no sentido de apurar, em face das circunstâncias
apreciadas em , conjunto, se se trata daqueles casos em que, não
obstante o emprego de violência, o evento ‘morte’ accidit insolenter
ac raro, ou como dizia SÃO TOMÁS DE AQUINO, ‘per accidens
et ut in paucioribus’. Eis a lição de IMPALLOMENI” – concluia:
“Insistíamos, pois, no dizer, para evitar sutilezas curiais e moralísticas,
que, ao distinguir-se um delito preterintencional de um delito intencional,
a via mestra é a de considerar a relação em que a
conduta do agente está para com o resultado ocorrido: se este é
a conseqüência, não só natural, como ordinária
da ação inicial dolosa, é força concluir que
foi querido; se não é conseqüência ordinária,
isto é, de tal modo que, segundo a experiência comum, não
se deva inferir que tenha sido prevista pelo agente, só então
é lícito concluir que o delito é preterintencional”
(op. cit., ps. 355/6).
11. Respostas aos quesitos
1. Quanto à contribuição
para o crime:
1.1 Ante as provas apresentadas, pode-se afirmar que algum dos acusados
não contribuiu para o evento criminoso? Qual(is) o(s) acusado(s)?
Resposta:
Não. Todos contribuíram
para o crime.
Dá-se a co-autoria quando
várias pessoas realizam as características do tipo. Ex.:
A e B embebedam a vítima C de álcool e a incendeiam, causando-lhe
a morte. Ambos praticam o núcleo do tipo do crime de homicídio
doloso (Código Penal, art. 121), que é o verbo “matar”. As
condutas cometidas em co-autoria caracterizam-se pela circunstância
de que os cooperadores, conscientemente, conjugam seus esforços
no sentido da produção do mesmo efeito, de modo que o evento
(salvo nos crimes formais e de mera conduta) se apresenta como o produto
das várias atividades. Co-autoria é divisão de trabalho
com nexo subjetivo que unifica o comportamento de todos. Não existe
um fato principal a que acedem condutas acessórias; cada um contribui
com sua atividade na integração da figura típica,
realizando a conduta descrita ma norma penal incriminadora. E não
é necessário que todos realizem exatamente a conduta descrita
no núcleo do tipo. Ex.: no homicídio mediante fogo uns podem
embededar a vítima de combustível inflamável e outros
riscarem fósforos.
Ocorre a participação
quando o sujeito, não realizando atos executórios do crime,
concorre de qualquer modo para a sua realização (Código
Penal, art. 29). Ele não realiza a conduta descrita pelo preceito
primário da norma, mas atividade que concorre para a formação
do delito.
“Concorrer” significa convergir
para o mesmo ponto, cooperar, contribuir, ajudar e ter a mesma pretensão
de outrem. O verbo expressa claramente a figura do concurso ( ato de se
dirigirem muitas pessoas ao mesmo lugar ou fim, segundo os léxicos.
A expressão é conseqüência lógica da adoção
da teoria da equivalência dos antecedentes contida no art. 13, caput,
do Código Penal: “O resultado, de que depende a existência
do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se
causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não
teria ocorrido”. Concorre para o crime aquele que realiza uma ação
ou omissão sem a qual o evento não teria ocorrido. É
do princípio da causalidade que decorre o conceito do concurso de
pessoas: todos os que empregam, de qualquer forma, suas atividades para
um crime, cooperam com uma causa para a sua produção e, assim,
da indivisibilidade de fato criminoso decorre a responsabilidade de todos
os sujeitos. Se o resultado de que depende a existência do crime
é imputável a quem lhe deu causa e se o crime, como qualquer
outro fenômeno, é produto da reunião de causas que
o determinam, responsável por ele é todo aquele que concorreu
com uma ação ou omissão sem a qual o evento não
teria ocorrido.
No caso dos autos, todos os acusados
devem ser considerados participantes responsáveis pelo crime. A
idéia de queimar a vítima foi aceita por todos (acordo prévio);
todos compraram o combustível; todos lavaram os vasilhames; todos,
menos um, acercaram-se da vítima; um derramou álcool em Galdino
e outro acendeu o fogo. Pouco importa saber quem exatamente jogou álcool
e riscou o fósforo: a empreitada era de todos. O empreendimento,
realizado em comum com repartição de tarefas, torna-os responsáveis
pelo fato global.
1.2 Ante as provas apresentadas, há elementos que permitem afirmar
que algum dos acusados concorreu para o crime mediante participação
de menor importância ou quis participar de crime menos grave? Qual(is)
o(s) acusado(s) e qual (is) o(s) crime(s)?
Resposta:
Nosso Código Penal, embora
mantendo a teoria unitária, adotou a teoria restritiva de autor,
distinguindo nitidamente autor de partícipe. Além disso,
mitigando o rigorismo da doutrina monística, reza, na parte final
do caput do art. 29, que todos os participantes incidem nas penas cominadas
ao crime, “na medida de sua culpabilidade”. E, nos termos do § 1º
do mesmo dispositivo, “se a participação for de menor importância,
a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço”.
O termo “participação”
deve ser entendido em sentido amplo, abrangendo as formas moral e material.
A disposição só tem aplicação quando
a conduta do partícipe demonstra leve eficiência causal. Refere-se
à contribuição prestada por ele e não à
sua capacidade de delinqüir. Nesse sentido: TJSP, RvCrim 71.305, RJTJSP,
117:474; STF, HC 68.336, rel. Ministro Celso de Mello, RT, 685:383 e 385.
No caso em debate, todos contribuíram
de maneira uniforme para o resultado comum, mesmo o acusado que, no momento
do fato, não estava no ponto de ônibus, permanecendo à
espera dos companheiros. Sua conduta anterior, nas fases do acordo prévio,
procura do posto de gasolina, compra do combustível, lavagem do
vasilhame e acompanhamento até as proximidades do local do fato,
apresentava eficiência causal. Não é de menor importância,
p. ex., concordar com a queima de um homem.
Nenhum deles quis participar
de crime menos grave, uma vez que, nos termos do parecer, e isso se encontra
na própria sentença, todos tinham consciência das conseqüências
possíveis e prováveis do fato, incluindo-se a morte.
2. Quanto ao elemento anímico:
2.1 Ante as provas apresentadas, os acusados agiram com dolo de homicídio
(animus necandi)?
Resposta:
Sim, conforme a fundamentação
do parecer.
2.2 Ante as provas apresentadas, se afirmativa a resposta ao quesito anterior,
o dolo se configura em sua modalidade direta ou eventual (os acusados quiseram
ou assumiram o risco de matar a vítima)?
Resposta:
Agiram com dolo eventual (assumiram
o risco de produzir a morte da vítima).
2.3 Ante as provas apresentadas, se afirmativa a resposta ao primeiro quesito,
e estabelecida a modalidade do dolo na resposta ao segundo quesito, sabido
que no Direito Penal brasileiro não há diferenciação
de natureza da responsabilidade de quem quer diretamente (dolo direto)
ou assume o risco de produzir (dolo eventual) um resultado, há justificativa
legal para resposta penal (condenatória, desclassificatória
ou absolutória) diversa em uma ou outra hipótese?
Resposta:
Não há justificativa
legal fora do homicídio doloso consumado, conforme amplamente exposto
no parecer.
2.4 Ante as provas apresentadas, os acusados poderiam ter agido com culpa
(consciente ou inconsciente)?
Resposta:
Não, nos termos das razões
apresentadas no parecer.
2.5 Na eventualidade de se haver afirmado que os acusados agiram com dolo
eventual, quais os elementos que permitem afastar a culpa (consciente ou
inconsciente) e afirmar a existência do dolo eventual?
Resposta:
Quesito já respondido
na fundamentação do parecer. A própria decisão
afastou a possibilidade de ter havido simplesmente crime de homicídio
culposo. Presente, inegavelmente, na conduta dos acusados, dolo de lesão,
reconhecido na sentença, tanto que considerou a presença
de lesão corporal seguida de morte, em que o primum delictum é
doloso, fica afastada a figura do crime culposo, pois neste a conduta inicial
não pode ser dolosa (com dolo de dano, de lesão). Quanto
à culpa consciente e à preterintenção, de ver-se
os fundamentos do parecer.
3. Quanto às questões processuais:
3.1 Ante as provas apresentadas, pode-se afirmar a presença dos
elementos necessários à pronúncia dos réus
para julgamento pelo Tribunal do Júri?
Resposta:
Sim. Os autos contêm elementos
necessários para a pronúncia dos réus por homicídio
doloso.
12. Conclusão:
Segundo nosso entendimento, os
acusados cometeram crime de homicídio doloso qualificado com dolo
eventual.
Para os índios, os homens
se acabam num incêndio e renascem num único casal que restou
(A questão do índio cit., p. 18). Que a morte do Pataxó
– Hã-Hã–Hãe Galdino Jesus dos Santos, num incêndio,
faça brotar a chama renascida do respeito e da solidariedade humana.
É o parecer.
São Paulo, 13 de outubro de 1997.
Damásio E. de Jesus
OAB 95.195
Colaboração:
Vandir da Silva Ferreira
PROMOTOR DE JUSTIÇA - DF