‘‘Não se tem mais dúvida na doutrina constitucional moderna a respeito da existência de normas com conteúdo constitucional que não estejam sediadas na Constituição’’
Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves
Mestrando em Direito pela UFMG, professor de Processo Civil do CEUB e assessor
de ministro do STJ
Dormia em berço esplêndido a discussão a respeito da prisão na alienação fiduciária em garantia até que surgiu no cenário jurídico nova decisão do Supremo Tribunal Federal, por sua Segunda Turma (HC 74.383, Marco Aurélio, DJ 27.6.97), dando pela inviabilidade da privação da liberdade daquele que deixa de pagar o financiamento contratado, com garantia de alienação fiduciária.
Não que se esteja voltando à tona o antigo debate sobre a eliminação da expressão ‘‘na forma da lei’’ da Constituição anterior. Isso foi selado de vez pela jurisprudência, tanto do tribunal intérprete da Constituição (HC 72.131, Moreira Alves, Pleno, j. 23.11.95) quanto da corte guardiã do direito federal (RMS 3.623, Sálvio de Figueiredo Teixeira, Corte Especial, DJ 29.10.96). O que se pretende agora é dar novo enfoque à questão, tendo em vista a constitucionalidade material do artigo 11 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de San José, a que o Brasil aderiu.
Em primeiro lugar, é de salientar-se que não se tem mais dúvida na doutrina constitucional moderna a respeito da existência de normas com conteúdo constitucional que não estejam sediadas na Constituição, como as que dispõem sobre a organização do poder político ou outras, que prescrevem direitos e garantias fundamentais, direitos culturais e sociais.
Assim, a norma ditada pelo artigo 11 do tratado da Costa Rica, embora prevista em texto infraconstitucional (sob o aspecto formal),e estaria alçada a status constitucional, seja pelo princípio exposto, segundo o qual as garantias fundamentais seriam preceitos de supradireito, seja por expressa disposição do parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição de 1988.
Dessa forma, a norma do Decreto-lei nº 911/69 que permitia a prisão civil do depositário infiel, caracterizado após a conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito, não mais subsistiria no ordenamento jurídico brasileiro, ficando revogada, uma vez que se chocaria com preceito constitucional do artigo 11 do Pacto de San José, que veda a prisão por não cumprir com obrigação contratual.
Partindo desse entendimento, cairia por terra o argumento de que a permissão constitucional da prisão civil do depositário infiel abrangiria tanto o depositário judicial quanto aquele outro (da alienação fiduciária) a ele equiparado, já que o comando do referido artigo 11 serviria como norma explicativa daquele inserido no inciso LXVII do artigo 5º da Constituição, a proibir expressamente a prisão por descumprimento de contrato, como é o caso do não-pagamento da dívida que originou a garantia fiduciária.
E nem se diga que o referido tratado que o Brasil subscreveu dependeria de ratificação pelo Congresso Nacional, conquanto tenha sido por meio do Decreto Legislativo nº 226/91. Tendo o direito positivo adotado para essa particular hipótese o sistema monista, os tratados que dizem respeito a direitos e garantias fundamentais se incorporam automaticamente no nosso ordenamento, independentemente de qualquer beneplácito da Casa Legislativa, conforme ensina Flávia Piovesan na obra ‘‘Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional’’, Max Limonad, 1996, cap. IV.
Talvez fosse o tempo, nesse mundo de globalização, ou de mundialização, como preferem os franceses, de fazer valer uma regra adotada não pela comunidade local de determinado país, mas pela comunidade regional continental ou quiçá planetária.
(Artigo publicado no ano de 1997)